Um diálogo muito peculiar entre um educador em idade avançada e suas memórias e um noviço rebelde e suas tentações, eis a essência do livro “Vim, Vivi, Escrevi”. Nessa obra recém-lançada (apesar de constar 2020 na ficha catalográfica), Agostinho Both, o professor de escol, resolveu mostrar (escrevendo) o que viu e viveu. Aos olhos dos leitores, revela-se, em tom de confissão, quem ele, efetivamente, é e quem foram os responsáveis pela sua caminhada já não tão breve por esse mundo.
Eram tempos difíceis para o casal Júlio e Genoveva Both em Santa Lúcia das Missões (hoje Caibaté), quando Agostinho Both chegou, em 1941, para fazer companhia aos irmãos Cecília, Sílvio e Bento. Algumas desavenças com o padre motivariam a dispensa dos serviços do professor paroquial Júlio Both, que eram pagos pela comunidade onde ministrava aulas. Júlio Both, um ex-beneditino e ex-marista, cujos motivos de ter deixado a vida seminarística nunca foram revelados à família, arrumaria nova ocupação em Linha Divisa de Santo Cristo. Nessa comunidade de alemães católicos e de poucas falas, o núcleo familiar seria completado com mais quatro filhos (Otília, Leda, Carlos e Antônio) e Genoveva se tornaria, de fato, uma poliglota, dominando o italiano, por origem na Serra Gaúcha, e o alemão e o português por necessidade.
Os Both foram alojados, inicialmente, em uma espécie de galpão abandonado, até que a comunidade construísse uma moradia decente. A família fincaria raízes em Linha Divisa. Ali, Agostinho e os irmãos seriam criados sob um regime familiar que primava mais pela disciplina do que pela afetividade. Entenda-se, Júlio Both fora forjado em seminários e seminários não cultuam sensibilidades. A religiosidade imperava na comunidade e no seio familiar. Em especial, ao menino Agostinho agradavam os padres de Santo Ângelo, ligados aos Missionários da Sagrada Família, que vinham atender a paróquia de Santo Cristo. Nessa época, anos 1940 e 1950, irmãos maristas, lassalistas e padres de outras congregações saiam pelo interior do Estado “recrutando” meninos para serem “Soldados de Deus”. Em uma das cenas mais patéticas do livro, Agostinho descreve o momento que, na frente da sua casa, parou uma Kombi “atulhada” de meninos, e o irmão que os levava perguntou se ele não gostaria de acompanhá-los. Agostinho conta que se apiedou daqueles meninos de olhares assustados, parecidos com ele, e disse que não. Imaginava ser mais do que um irmão. Queria ser como os padres de Santo Ângelo, os MSF, que davam atendimento à paróquia de Santo Cristo. Os “arautos de Deus”, que perdoavam pecados, batizavam crianças e mandavam os velhos para o céu.
E assim, em 1953, Agostinho escreveu uma carta para os padres de Santo Ângelo manifestando a intenção de ser seminarista. Até hoje ele desconfia se essa vocação teria sido autêntica pelo amor a Deus ou apenas interesse de fugir da pobreza. Em Linha Divisa, a fé em Deus era grande e o mato maior ainda, rememora Agostinho.
Em 1954, para orgulho dos Both, Agostinho partiu para o seminário em Santo Ângelo, ligado aos Missionários da Sagrada Família. As visitas a Linha Divisa escassearam, restritas aos períodos de férias, e uma nova vida iniciaria, no meio de 120 meninos e rapazes em absoluto silêncio, voltados aos estudos, ao trabalho e a orações, tendo, de tempos em tempos, um dia de “liberdade total” em que tudo era permitido, exceto cometer qualquer pecado.
Agostinho ficaria de 1954 a 1959 em Santo Ângelo. De lá seguiria para o noviciado em Palma Sola, SC, onde sobrevieram as tentações femininas ao jovem noviço, a partir do envolvimento com teatro. É chamado para Passo Fundo. E, no Colégio Marista Conceição, concluiu o equivalente do ensino médio de hoje, nos anos 1962 e 1963. Enquanto se decidia pela Pedagogia, Agostinho retornou para seminário de Santo Ângelo e, mais uma vez, o “Demônio”, agora travestido de uma irmã religiosa, tentaria o jovem frater. A alegria de estarem juntos parecia recíproca, apesar dos sentimentos jamais revelados. (...continua na próxima sexta-feira.)