Em recente (03/07/2021) artigo (https://doi.org/10.1007/s10460-021-10241-x) publicado na revista Agriculture and Human Values, Lídia Cabral, Poonam Pandey e Xiuli Xu apresentam, na visão deles, o que chamam de “narrativas épicas da Revolução Verde”. Usam como referências, para embasar a tese, os estudos de caso do Brasil, da China e da Índia.
Revolução Verde, expressão que, dependendo do interlocutor, pode suscitar paixões ou ódios exacerbados, é uma mera referência a um período histórico da agricultura no mundo. Para alguns, dependendo dos marcos que se adote, começou nos anos 1940 e terminou nos1980, para outros, foi de 1960 a 1980, e ainda há quem diga que começou e nunca acabou, uma vez que se tornou a prática padrão na agricultura mundial.
A Revolução Verde, expressão cunhada em 1968 por William S. Gaud, diretor da United States Agency for Internacional Development (USAID), representou uma nova era para a pesquisa agrícola mundial. A base: princípios modernos de genética e melhoramento de plantas, manejo de cultivos e economia. O alvo: desenvolver soluções tecnológicas para os problemas dos agricultores. Esse era o entendimento de Norman Borlaug, o cientista símbolo do movimento e Prêmio Nobel da Paz 1970.
Lídia Cabral e colaboradores adotam como marco inicial da Revolução Verde os anos 1940. Começam pela China, com a conversão ao socialismo da República Popular da China, em 1949, e as chamadas “Fazendas Científicas”, que ganhariam impulso nos anos 1950 e 1960, pelo uso da mecanização, fertilização química e eletrificação rural. Passam pela Índia, uma nação recém-liberada das amarras do Império Britânico e lutando contra a fome endêmica da sua população, acirrada pelas secas de 1965 e 1966, que culminou com a chamada “Revolução do Trigo”, em 1968. E finalizam com o Brasil, período do regime militar, anos 1970, criação da Embrapa e expansão da agricultura no Cerrado, dando curso à chamada “Revolução da Agricultura Tropical”.
A construção conceitual do arcabouço analítico usado pelos autores do artigo supracitado pode e, em alguns aspectos, até merece ser questionada. Usam um modelo que se presta bem para justificar a conclusão previamente tirada da tese “narrativa épica”. A adjetivação “épica” é enfatizada, e sobre isso não se pode discordar, pela peculiaridade de essas narrativas não serem necessariamente neutras. Na maioria das vezes incorporam interesses velados. O mesmo se pode dizer sobre as críticas à Revolução Verde. Mas, sim, insistem Lídia Cabral e colaboradores, há nessas histórias, que são construídas, multiplicadas e atualizadas constantemente, a mitificação de atores e de instituições. O culto a heróis e a chancela de uma instituição científica dão legitimidade a ações do passado, são usadas para justificar o presente e, pela influência sobre o imaginário, prestam-se para influenciar seguidores.
Na China, o marco temporal 1950 a 1980, a instituição líder a Academia Chinesa de Ciências Agrárias, o imperativo a soberania nacional, a autossuficiência em grãos e a modernização no meio rural, a cultura símbolo o arroz híbrido e a figura heroica o cientista Yuan Longping (o pai do arroz híbrido). Na Índia, anos 1960 e 1970, O Conselho Indiano de Pesquisa Agrícola, a soberania nacional e o combate à fome, o trigo anão e M. S. Swaminathan (o pai da Revolução do Trigo). E no Brasil, anos 1970 e 1980, a Embrapa, a modernização do interior, a industrialização e a segurança alimentar, a tropicalização da soja e “O Milagre do Cerrado”. Não foram indicadas figuras heroicas da Revolução Verde no caso brasileiro, embora Alysson Paulinelli e Edson Lobato tenham recebido o World Food Prize 2006 pela transformação do bioma cerrado em terras agrícolas produtivas.
O problema da fome no mundo não foi resolvido pelas métricas produtivistas da Revolução Verde, por envolver distribuição de renda (riqueza) e não produção de alimentos. É por isso que um mundo sem fome continua sendo uma utopia, na essência da definição de Quevedo: Um lugar que não existe!