Município estuda regularizar ocupações urbanas consolidadas

Avanço nas políticas habitacionais pode colocar fim a conflitos históricos pela moradia

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Processo de regularização deve abranger, ainda, lotes no bairro Victor Issler, Parque do Sol e da antiga viação férrea. Foto: Gerson Lopes/ONProcesso de regularização deve abranger, ainda, lotes no bairro Victor Issler, Parque do Sol e da antiga viação férrea. Foto: Gerson Lopes/ON
Processo de regularização deve abranger, ainda, lotes no bairro Victor Issler, Parque do Sol e da antiga viação férrea. Foto: Gerson Lopes/ON
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Quando a dona de casa, Diocilde Moraes de Oliveira, começou a construir o lar onde mora com a família, no que viria a ser o bairro Jaboticabal, o descampado que existia, à época, era a extensão do pátio. Há 29 anos, lembra, ela e o marido deixaram a cidade de Getúlio Vargas por uma questão de proximidade aos hospitais de Passo Fundo, onde uma das filhas era submetida a tratamento médico.  

Ao integrarem um mutirão, o povoamento da zona iniciou com as obras de casas populares que, neste ano, foram formalmente reconhecidas pelo Poder Público municipal através da entrega das escrituras definitivas. “A gente tinha esperança. Fazíamos as reuniões, mas não saía do papel até que graças a Deus conseguimos”, comentou Diocilde. A segurança jurídica certificada pela assinatura do papel também foi outorgada a outros 154 lotes nos bairros Manoel Corralo e 97 no São José, cujos imóveis foram negociados entre o Município e os moradores ainda na década de 1990, conforme explicou o secretário municipal de Habitação, Paulo Caletti.  

O acordo era uma promessa de compra e venda dos terrenos, diz Caletti, onde os munícipes pagariam em prestações. Sem nenhum tipo de documento que atestasse esse compromisso, muitos não quitaram o débito com a Prefeitura e outros imóveis sofreram modificações de metragem com as revisões do Plano Diretor. “Isso não permitia mais ao Município outorgar a escritura porque esses terrenos tinham alguma inconformidade urbanística ou ambiental que impedia”, justificou o secretário. Mesmo que, desde 2019, uma lei municipal viabiliza a legalização destas propriedades, a adesão ao Programa Nacional de Regularização Fundiária (REURB-S), no começo deste ano, acelerou a entrega dos títulos que permitirá aos moradores ingressar em programas de financiamento habitacional, por exemplo.  

Por meio desta parceria público-privada, uma corporação poderá selecionar os núcleos urbanos informais para apresentar uma proposta de regularização a partir da identificação das áreas de interesse social. “Eu tenho me reunido, nos últimos meses, com várias empresas que prestam este tipo de serviço de georreferenciamento e levantamento cadastral para apresentar a eles esse programa tentando incentivá-los para que nos apresentem proposta”, mencionou Caletti.  

Com mais de 50 ocupações urbanas, Passo Fundo possui um dos maiores conflitos fundiários do Estado. Foto: Gerson Lopes/ON


Ocupações 

Ainda que a entrega das escrituras esteja sendo direcionada aos imóveis com contratos antigos, o secretário de Habitação afirmou que o Poder Público pretende incluir as ocupações urbanas já consolidas neste processo de regularização.  

Alvo de conflitos habitacionais permanentes e históricos, o movimento passo-fundense pela moradia deve ser pensado dentro da crise urbana brasileira constituída pela reinvindicação de acesso à terra, observa a historiadora e professora da Universidade de Passo Fundo (UPF), Ironita Policarpo Machado. “A questão fundiária também diz respeito a concentração de espaços urbanos como legado histórico. Não é um fenômeno exclusivo da cidade de Passo Fundo, é fruto do processo constitutivo da propriedade privada de terras na região Norte do Rio Grande do Sul. Ao longo desse processo, a urbanização se constitui de forma expropriativa pelo mercado de terras, delineando um palco de conflitos”, pontua a docente.  

Tais divergências, aludidas por Ironita, movimentam o Poder Judiciário com mandados de reintegração de posse das áreas ocupadas e inflamam os ânimos das famílias que habitam esses locais. “É um verdadeiro tormento”, atestou o líder comunitário Moisés da Cruz Forgiarini. Junto a outras lideranças, o morador da ocupação Bela Vista, na Avenida Princesa Isabel, bairro Petrópolis, citou uma abertura de diálogo junto à Prefeitura para resolver os problemas centrais das ocupações.  

A intenção de regularizar essas zonas habitadas, particulariza o secretário de Habitação de Passo Fundo, deve abranger, além da Bela Vista, os núcleos Vista Alegre, Valinhos II e Zachia. “Eles estão ocupando um imóvel da Corsan e estamos em negociação para que seja feita uma permuta ou doação. A nossa ideia é, recebendo a área, verificar o número de famílias que poderão ficar no local e quantas terão de ser reassentadas porque há um nuance ambiental para instaurar uma REURB”, esboçou Caletti ao se referir à Ocupação do Zachia.  

Construída em torno de uma zona industrial, a Ocupação Valinhos II, prossegue o secretário, suscita discussões sobre a alteração de área fabril para residencial nesta nova revisão do Plano Diretor. “Não adianta mais manter esses imóveis na informalidade porque não vamos conseguir reverter as ocupações já consolidadas. O melhor é regularizar e trazê-las para a legalidade de forma que elas também possam contribuir com os impostos”, delineou Caletti.  

Mapa apresenta expansão urbana de Passo Fundo em 1968. Fonte: Arquivo Histórico de Passo Fundo.


A tomada das áreas periféricas da cidade, defende a professora da UPF, precisa ser discutida como um direito à cidade, a educação, ao saneamento básico, à saúde e ao trabalho sob políticas específicas de assentamentos populares. “A espacialidade é um elemento ativamente produzido e atuante no processo social. Sendo assim, é preciso evitar a tendência de se abordar o fenômeno rural e urbano como elemento imutável; como se o espaço se tratasse de mero palco para o desenvolvimento dos processos sociais, é preciso lembrar que se trata de um bem não renovável e resultado de uma economia política que impacta na estruturação das cidades”, argumentou a doutora em História.  

Historicidade 

Não restrito ao fenômeno contemporâneo de habitação das áreas à margem das zonas centrais da cidade, Ironita lembra que o acesso à terra na região norte do Estado também pode ser compreendido através dos ciclos de ocupação que ocorreram entre no século XIX e início do XX. “No século XIX, principalmente no período imperial, temos o acesso à terra via ocupação e domínio, na tomada de posse, por milicianos, que obtêm campos via concessões ou apossamento individual direto dos recursos fundiários disponíveis”, contextualiza a historiadora.  

A colonização, prossegue a docente, influenciou a demarcação de posses. “Isso promoveu a ocupação espacial pela privatização desencadeando processos socioeconômicos de produção, de trabalho e de salários que marginalizaram um contingente expressivo de comunidades e trabalhadores”, analisou Ironita.  


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