As listras azuis deixadas na parede outrora branca, em um galpão abandonado às margens da BR 285, no bairro Valinhos, são o único vestígio de que, em um passado não tão distante, recostavam-se ali dezenas de estantes fortes o suficiente para aguentar o peso de mais de 12 mil livros. No espaço que antes abrigava a biblioteca comunitária do papeleiro Valdelírio Nunes de Souza, conhecido como Chicão, restam agora somente os escombros. Nada de livros, prateleiras ou computadores. Apesar da promessa do Município, durante a gestão anterior, de criar um espaço adequado na Escola Guaracy Barroso Marinho para abrigar a biblioteca do Chicão, depois do falecimento do papeleiro, em novembro de 2016, o acervo construído por um homem que passou grande parte dos seus 72 anos de vida garimpando do lixo obras literárias e didáticas acabou sendo extinto pelo descaso e retornou, por fim, de onde havia sido retirado: o lixo.
O destino da biblioteca comunitária criada e mantida pelo papeleiro por quase uma década já era motivo de preocupação para o próprio Chicão, que morreu vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Muito antes de adoecer, em uma entrevista dada à reportagem de ON no ano de 2013, as palavras de Chicão já transpareciam sua consternação com o acervo que reunia, além de livros, revistas, discos e computadores, atraindo estudantes das escolas do bairro. “Já estou em uma idade avançada. Espero que isso tudo fique de recordação”, divagara na ocasião, referindo-se ao espaço montando com muito esforço dentro de um pavilhão do Estado, onde ele morava com a mulher e o enteado. A viúva, Antônia Lima Silva de Souza, hoje com 52 anos, lembra do falecido marido como um apaixonado pelas letras. “A biblioteca era a vida dele. Uma vez ele me falou ‘se eu ficar doente, você pode terminar com a biblioteca, mas só depois que eu morrer’. E eu dizia pra ele ‘não vai acontecer nada, você vai viver muito mais’. Ele estava em casa quando faleceu”, relembra.
Falta de apoio inviabilizou a manutenção da biblioteca
Sem recursos para custear as despesas da família, em 2016, pouco menos de um mês após a perda do companheiro com quem ficou por quase 20 anos, Antônia chegou a vender parte do acervo como uma alternativa para driblar as dificuldades financeiras. À época, a situação comoveu a comunidade e mobilizou a ação de voluntários, que iniciaram uma campanha nas redes sociais, na tentativa de encontrar uma solução definitiva para o caso. O ato resultou na realização de uma reunião entre as secretarias de Gestão, Cultura e Educação da Prefeitura de Passo Fundo, também no ano de 2016, onde ficou estabelecido que o Poder Público ampliaria o espaço físico da Escola Municipal de Ensino Fundamental Guaracy Barroso Marinho para abrigar um museu em homenagem ao papeleiro e o acervo bibliográfico deixado por ele. Ainda neste encontro, as secretarias concordaram também em oferecer um auxílio financeiro mensal para a família de Chicão enquanto as obras não fossem levadas para o novo espaço, em um acordo para que a viúva não precisasse mais amargar a tristeza por precisar vender os bens que o falecido companheiro juntara em seus 30 anos como papeleiro.
O acordo, no entanto, teve somente uma de suas partes concretizadas. Em 2017, a Prefeitura de Passo Fundo encaixou Antônia em um programa de trabalho remunerado e, durante alguns meses, ela seguiu recebendo também a ajuda financeira da comunidade, mas o projeto de ampliação da Escola Guaracy Barroso Marinho nunca saiu do papel. “Tinha um professor que me ajudou durante um tempo e eu disse para ele que eu ia fazer o máximo que eu pudesse para manter a biblioteca, mas se eu não conseguisse, eu ia ter que desistir. Não tinha como eu me manter e cuidar de tudo aquilo sem ajuda”, revela a viúva. Antônia conta que ficou por mais três anos no pavilhão onde estava a biblioteca, sem nunca ter sido procurada novamente pelo Município para transferência dos livros. A persistência acabou sendo vencida pelo cansaço. O galpão oferecia pouca proteção para os moradores e, além de a família ter sofrido furtos constantes nos últimos anos, as condições inadequadas do espaço que abrigava o acervo bibliográfico acabaram por danificar boa parte das obras. “Os ladrões me roubavam de tudo, até um rádio que era do Chicão e que eu guardava. Na biblioteca, os ratos roeram tudo. O resto a chuva estragou. Eu vendi o que conseguia, outros repassei para papeleiros venderem na reciclagem, mas muita coisa foi direto pro lixo. Tinha pouca coisa que dava pra usar. Tinha estragado tudo”. Sem carregar mais nada do antigo marido além de fotos, Antônia passou a morar em uma casa com a mãe.
Um legado esquecido
Como se a Capital Nacional da Literatura estivesse (ironicamente) fadada a perder seus maiores símbolos, Passo Fundo pareceu ter deixado em um lugar de esquecimento a biblioteca do papeleiro Chicão. Carecendo de ajuda do Poder Público, o projeto que por quase uma década ofereceu à comunidade o acesso gratuito a computadores e milhares de obras, e que havia sido transformado também em um ponto de doação de livros, sumiu página por página, até praticamente deixar de existir por completo. Antes de localizar a viúva do papeleiro e descobrir o triste fim dado ao acervo de Valdelírio Nunes, na última quarta-feira (27), a reportagem de ON chegou a visitar a Escola Municipal de Ensino Fundamental Guaracy Barroso Marinho, na esperança de encontrar na infraestrutura da instituição qualquer sinal de execução do projeto que começara a ser desenhado pela prefeitura em 2016. Não havia nada. “Nós ficamos esperando um retorno, mas o projeto nunca saiu do papel”, explicou a diretora do educandário.
Filha guarda as últimas obras do acervo de Chicão
Em meio a uma série de descasos que decretaram o fim da biblioteca de Chicão, a filha mais nova do papeleiro, Luciana Souza, 45, é a única pessoa que ainda guarda um pequeno montante do que antes formava um acervo de mais de 12 mil livros. Moradora de Passo Fundo, a caçula mantém em casa um “cantinho”, como ela mesma chama, com mais de 30 livros que eram do pai. Quando percebeu o destino iminente que teria o acervo de Chicão, Luciana fez questão de pegar o máximo de obras que conseguiria guardar. “Logo no começo, quando ele faleceu, eu sentia uma dor em ver tudo se acabando”, Luciana conta entre uma pausa e outra, pela qual pede desculpa, justiçando-se com a voz embargada: “eu me emociono muito quando falo dele”. Assim como a viúva de Chicão, Luciana também descreve a antiga biblioteca como “a vida dele”. “Eu senti que precisava dar um lugar para os livros dele. Se tivesse espaço, faria algo melhor, mas eu não tinha, peguei o que dava”, esclarece, citando especialmente a coleção do escritor brasileiro Jorge Amado, o autor favorito do pai, que ocupa lugar de destaque no espaço organizado por Luciana.
Nascido em Capinzal, Valdelírio veio para Passo Fundo quando ainda era criança e estudou somente até a antiga quinta série. A formação básica incompleta, no entanto, nunca foi um empecilho entre ele e a paixão pelos livros, como relembra a filha. “Meu pai não tinha estudo, mas ele era muito inteligente. Eu dizia: ‘Pai, como você sabe isso? Política, essas coisas, eu não entendo”. Ele me explicava tudo. Eu ficava boba e ao mesmo tempo feliz. Ele era um orgulho para mim. Às vezes, eu me acordo no domingo e penso em ir visitar ele como eu sempre fazia, aí lembro que não tenho mais ele. É muito difícil, mas fico pensando em toda a jornada dele e tento focar nisso. Em tudo que ele ensinou sobre educação, sobre caráter e sobre respeitar as pessoas”, ela compartilha.
O gosto pelos livros era algo que Chicão fazia questão de passar para suas três filhas — frutos de relacionamentos passados. Luciana lembra que ele constantemente as incentivava a ler e era um dos grandes incentivadores da caçula, que cursava técnico em enfermagem e foi a única das irmãs a continuar estudando após o ensino médio. “Eu lembro até hoje de um dia que eu estava cheia de trabalhos de aula pra fazer. Como eu não tinha internet, eu ia até uma lan house, imprimia o conteúdo e levava para casa para estudar. Era bem cansativo”. Um dia, visitando o pai, Luciana comentou que precisava fazer um trabalho de anatomia, mas não tinha os livros necessários para isso. Sem pestanejar, Chicão disse que tinha a solução. “Ele me disse: ‘Filha, não precisa imprimir, eu tenho livros de alta qualidade aqui, de medicina, tem tudo o que precisa. Diz pro pai o que você precisa, anota pra mim e o pai procura pra ti’. Eu deixei escrito e disse pra ele: ‘Se o senhor achar, me avisa’. Sabe que ele me ligou dizendo que tinha achado o livro e eu fiz todo o trabalho com o livro da biblioteca dele?! Eu fiz muitos trabalhos em cima dos livros dele. Era um lugar onde quem não tinha condição de comprar um livro, poderia procurar lá”.
A filha mais nova de Chicão também faz questão de recordar da vez em que encontrou o apoio do pai enquanto pensava em desistir do curso pelo cansaço que tomava conta dela, enquanto dividia-se entre estudante de enfermagem e faxineira. “Eu tava muito nervosa e disse pra ele que não aguentava mais, que tava pensando em desistir, era muito cansativo. Eu lembro que ele encheu o olho de lágrima e disse: ‘Você já tá no fim, não pode desistir, minha filha. A gente tem que honrar os compromissos. Se quer ser alguém na vida, tem que ter estudo. É sofrido, mas depois o retorno vem’. E veio mesmo. Eu continuei e me formei, hoje trabalho em uma clínica. Eu sonhava em levar ele na minha formatura, mas não deu tempo. Eu estava indo para o estágio quando ele teve o AVC”.
“Me dói muito ter acabado tudo”
A determinação que Chicão tentava fomentar na filha era a mesma que ele cultivava em si para cuidar da biblioteca comunitária. Luciana lembra que ele sempre se emocionava ao contar dos apoios que recebia para ajeitar a biblioteca e chegava a emagrecer de tanta preocupação quando via algo se deteriorar, como os computadores, que ele buscava manter sempre funcionando para que as crianças pudessem utilizar. “A intenção dele sempre foi ajudar as crianças no Zachia. Me dói muito ter acabado tudo. Eu não podia fazer nada, peguei só o que pude. Para mim é uma dor perder ele e ter perdido os livros, ele não gostaria que isso tivesse acontecido. Quando o espaço ainda existia, eu ia lá e quase conseguia enxergar ele dentro organizando tudo. Depois que ele morreu, a biblioteca se destruiu”, observa. Questionada se recebeu qualquer retorno quanto ao andamento do projeto que visava manter viva a biblioteca de Chicão, Luciana nega. De acordo com ela, a última resposta que teve era de que estavam elaborando o projeto. Depois disso, mais nada.
Reconhecimentos
Chicão era uma figura querida e conhecida por toda a comunidade da região. Além da construção da biblioteca comunitária, prestou serviços à comunidade como papeleiro e reciclador por três décadas, tendo sido presidente da Associação Passo-fundense de Papeleiros e o criador da ação “Festa do Natal dos Papeleiros”, que arrecadava brinquedo para as crianças. Em reconhecimento aos serviços prestados, Chicão foi homenageado em 2015 pela Câmara de Vereadores, com a medalha Grão Mérito Fagundes dos Reis; pela Academia Passo-fundense de Letras, com a Menção Honrosa Francisco Antonino Xavier, em 2014; e uma homenagem póstuma na Feira do Livro de Passo Fundo, em 2017. Justamente pelo respeito e admiração conquistado junto à população, por inúmeras vezes, recebeu também o apoio financeiro e o acolhimento dos passo-fundenses, incluindo a doação no ano de 2013 de uma caminhonete Chevrolet, modelo C10, ano 1973, no valor de R$ 11 mil, quando seu antigo veículo ficou em estado precário demais para continuar percorrendo a cidade em busca de papel.