Embora detenha a administração dos mais de 7,2 mil quilômetros da rede férrea que conecta os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná até o ano de 2027, a Rumo Malha Sul ingressou com um pedido antecipado para prorrogar a outorga por mais 30 anos enviando um novo plano de negócios à comissão da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) sem incluir o trecho de 15 quilômetros de domínio da área Beira-Trilhos em Passo Fundo.
Ainda em fase de estudo, a avaliação de inviabilidade compreende 1,1 mil quilômetros de via férrea, cuja área corresponde a 37% das linhas em apreciação, abrangendo também algumas extensões em Erechim, Santa Rosa, Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga e Carlos Barbosa. Na justificativa apresentada pela empresa para uma possível devolução à União dos trechos mencionados, a continuidade de operação nos 807 quilômetros de malha ferroviária em Santana do Livramento já foi declarada inviável sob alegação econômico-financeira.
Interesse social
Com movimentações processuais iniciadas em 2017, através de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) de Passo Fundo, a ligação férrea que corta o município em cinco pontos da linha, nos bairros Valinhos, Victor Issler, Cruzeiro e Isabel, se tornou um foco de interesse social em razão das mais de 1,6 mil famílias que residem no entorno. “O município vem pedindo que a Rumo devolva para a União os trechos que ela tem a concessão no nosso município e que não utiliza para que sejam feitos empreendimentos habitacionais nesses locais”, afirmou o secretário municipal de Habitação, Paulo Caletti.
À espera de uma definição sobre a inclusão da área no novo pedido de concessão encaminhado pela companhia de logística sediada em Curitiba, Caletti mencionou novamente a intenção do governo municipal em indicar a zona ao Programa Aproxima do Governo Federal, que irá ceder terrenos e prédios públicos desocupados para leilões voltados à habitação. “Quando a Rumo se manifestar, teremos certeza se houve a renovação e em quais termos", destacou.
Em 9 de junho deste ano, os advogados que representam a empresa responderam à intimação judicial alegando que ainda não havia uma renovação no contrato de concessão na área de domínio no município. “O projeto está em fase de estudos entre a Rumo Malha Sul, o DNIT e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), conforme as informações públicas disponibilizadas pela ANTT e pelo Governo Federal”, argumentaram.
Na Justiça
Segundo lembra o advogado membro da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo e da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP), Leandro Scalabrin, desde 2017 a ação ajuizada pelo Ministério Público Federal busca assegurar a construção de 500 moradias populares anuais na região da Beira-Trilhos para realocar os moradores. “O fundamento do pedido é o direito humano à moradia adequada, erigido como direito fundamental no art. 6º da Constituição Federal, o qual deve ser assegurado pelo Estado, União e Município de Passo Fundo, no caso”, ressaltou.
Apesar da Beira-Trilhos ser um dos pontos sensíveis na discussão, Scalabrin destaca que os pedidos de reintegração de posse nas áreas ocupadas às margens das ferrovias chegam às mesas de juízes gaúchos, catarinenses e paranaenses. “Os dados divulgados pelo Sistema de Conciliação (Sistcon) do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) informam que somente em Cruz Alta, há 124 ações de reintegração de posse envolvendo imóveis de Cruz Alta, Panambi e Tupanciretã, bem como que, no Rio Grande do Sul, seriam mais de 1,3 mil processos; no Paraná, mais de 900 processos e em Santa Catarina mais de 180 processos”, salientou.
Desde 2020, a possibilidade de remoção forçada das famílias residentes no entorno das vias férreas no território gaúcho está suspensa até que sejam implantados estudos sobre a concessão da Malha Sul. “O levantamento preliminar de cidades e situações revela a importância da questão beira-trilhos para essas cidades e o impacto que a renovação da concessão da malha sul da rede ferroviária federal pode ter no direito à moradia de milhares de pessoas”, frisou Scalabrin.
Décadas de contestação
De acordo com o relatório produzido pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), as primeiras construções habitacionais na zona de domínio iniciaram há cerca de quatro décadas por moradores em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “Se esta solução fosse viabilizada, ao menos para parte dos trilhos, seria uma grande vitória porque a imensa maioria sempre afirma a preferência pela saída dos trilhos”, relatou um dos membros da coordenação do CDHPF, Paulo César Carbonari. “No entanto, é preciso ter sempre ciência de que se tudo caminhar para manter os moradores, haverá a necessidade de projetos de regularização da ocupação, que não é somente fundiário, mas especialmente precisa de projeto de urbanização pois o que se quer é que o direito à moradia adequada seja garantido para todos os ocupantes”, prosseguiu.
Por isso, considera, não se trataria de uma devolução do trecho e, sim, de uma transferência. “As áreas que hoje são da União passariam para o Município que, por sua vez, teria que fazer a regularização fundiária para as famílias que ocupam a Beira-Trilhos. Mas, tudo isso, precisa da resolução de algumas preliminares”, justificou Carbonari citando a não inclusão de determinados trechos ferroviários no processo de concessão em curso, a habilitação no programa federal, aludido pelo secretário municipal de Habitação, e a concordância da União em ceder a área. “O fato é que há trechos inteiros inativos e que poderiam perfeitamente ser transferidos, mas isso depende de uma decisão do governo federal no processo de concessão”, reiterou.
Ainda sem datas fixadas no calendário da ANTT, está prevista uma audiência pública para debater o novo plano de concessão pretendido pela Rumo. "Qualquer solução para a situação precisa ter a participação direta dos moradores. Eles são os sujeitos centrais e sua participação em todo o processo nunca pode ser dispensada. Afinal, é de suas vidas, da vida das suas famílias, que se está tratando. Ninguém melhor do que eles para saber de suas necessidades e para colaborar com a resolução de suas demandas”, observou Carbonari.
Em 2018, funcionários do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) estiveram percorrendo o trecho da Beira-Trilhos para fazer um levantamento dos 15 quilômetros de linha férrea para identificar as famílias em situação de risco para embasar a busca por soluções.