ENTREVISTA: Promotora Cleonice Rodrigues Aires - “O Estatuto não foi uma normativa de acomodação, mas de transformação”

Promotora fala dos avanços trazidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 33 anos esta semana

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Promotora Cleonice Rodrigues Aires - FOTO: MPRSPromotora Cleonice Rodrigues Aires - FOTO: MPRS
Promotora Cleonice Rodrigues Aires - FOTO: MPRS
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Após três décadas de criação do Estatuto da Criança de do Adolescente (ECA), muito se avançou nas ações de proteção à infância, porém há muitos entraves a ser enfrentados e situações que perpassam questões de idade e se referem a dignidade humana, afinal, como se garantir proteção, quando muitas crianças não têm o que comer, como garantir aprendizado, quando não há condições básicas de moradia. Avançar nas ações do Estatuto também significa melhorar as condições sociais e econômicas que essa criança está inserida. 

De acordo com a Promotora da Infância e da Juventude de Passo Fundo, Cleonice Rodrigues Aires, o estatuto apontou a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado de garantir condições para o desenvolvimento das crianças. “O Estatuto está assentado na Constituição Federal de 1988, que incorporou a doutrina da proteção integral, abandonando a então doutrina da situação irregular de menores havida por um século não somente no Brasil, mas no mundo em geral. O que se quer dizer com isso? As normativas e a atenção das redes de proteção não devem mais ser dirigidas à crianças e adolescentes situadas no binômio carência-delinquência, mas a todos, independentemente do contexto social e familiar”, disse.

Cleonice destaca que dessa forma, o Estado e a Sociedade são corresponsáveis com a formação desse indivíduo, que isso deve ser observado nas suas demandas de saúde, educação, convivência familiar e comunitária e de toda a complexidade que circunda o sentido de felicidade a que todos têm direito. 

 “Há muitos exemplos da incorporação da doutrina da proteção integral, desde a proibição de qualquer distinção entre filhos havidos dentro ou fora de um casamento, entre filhos biológicos ou não, até o direito (incorporado na normativa) de a criança ser ouvida e o adolescente anuir aos casos de alteração de guarda ou em adoção, em reconhecimento da sua condição de sujeitos. O lazer, o acesso à cultura, o direito de crescer em família – e não em instituições – são alguns exemplos básicos de direitos que devem ser garantidos a todos”, explicou. 


Estatuto da Criança de do Adolescente completou neste mês 33 anos de existência. Foto: Dvilguação/Freepik

Unicef

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 60% da população de até 17 anos vive na pobreza no Brasil, o que demonstra a complexidade do panorama atual. 

“Houve evoluções, tanto nas normativas como na implementação de políticas públicas para a instauração dessa nova concepção sobre a infância. Em que pese incompreendido, o Estatuto permitiu, ao trazer desconforto (como toda normativa promovedora de direitos), provocar um pensar sobre a infância. Portanto, um pensar civilizatório. O Estatuto não foi uma normativa de acomodação, mas de transformação, o que impõe muitas dificuldades em qualquer área do Direito, que não se efetiva sem uma recepção cultural e social. O Direito não inserido socialmente e não compreendido culturalmente passa a ser uma norma vazia, de existência formal e – o mais grave - deturpada pelas conveniências”, pontuou a promotora.


Debate sobre a infância em Passo Fundo precisa ser mais amplo 

Quando observamos a infância em Passo Fundo, é preciso pontuar que o acesso à educação e saúde evolui muito nos últimos anos, porém há outras questões que necessitam de um debate mais amplo. “É uma cidade que apresenta muitos desafios para a infância. É uma cidade de crescimento significativo, com alguns bons modelos de gestão na área, mas que enfrenta dois grandes problemas que tendem a debilitar alguns avanços: a carência de debates sobre a complexidade do fenômeno da violência nos espaços políticos e na sociedade civil para a compreensão exata da amplitude das demandas e das ações necessárias que as contemplem”, disse a promotora pontuando que as discussões têm sido fragmentados ou afastados de espaços sensíveis para que essas ações ocorram.

Outra questão destacada pela promotora é a importância da conscientização, possibilitando que as pessoas saiam de suas “bolhas” sociais para conhecer o que acontece em outros espaços e realidades. “ O sentido de comunidade não alcança a maioria, pois as pessoas estão fechadas em seus nichos sociais ou se interessam apenas aos que lhes afeta diretamente. Com isso, a extrema violência em alguns bairros - e que está trazendo irreparáveis prejuízos à infância -, sequer é percebida por pessoas de outros bairros (há uma ignorização ou banalização dessa violência), o que compromete não só o sentido de comunidade, mas as próprias ações necessárias ao enfrentamento disso. É preciso entender que a gestão pública atua a partir de demandas apresentadas como essenciais a todos. Se o todo não existe porque é fragmentado, não há gestão que irá alcançar tais demandas”, observou. 


Para mudar é preciso conhecimento 

Para ações de maior enfrentamento e proteção à infância é necessária uma ampla discussão, pois segundo a promotora é fundamental o conhecimento da realidade por todos e a compreensão não do que se alcançou, mas do que não se conseguiu, como processo necessário para uma efetivação do Estatuto. “Essa seria uma premissa em qualquer lugar do mundo para um debate sobre a infância. Mas num país em que há crianças que sequer tem segurança alimentar, ou que não tem o mínimo em dignidade habitacional, a situação é muito mais grave, pois ela implica na ruptura ou negação de muitos direitos fundamentais à própria formação do indivíduo. Não há olhar minimamente adequado à infância sem um compromisso político e ético com essa realidade social”, finalizou.

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