Aprender a ler para “se virar melhor no dia a dia e não depender de ninguém” é o objetivo da recicladora Eva de Fátima Godois. Da mesma forma, Rosmari Alves, também recicladora, não almeja muito, quer, ao menos, “escrever o próprio nome e ler o básico”, pois, sem isso, sempre “tem que sujar o dedo quando precisa assinar papéis”. As duas moradoras de Passo Fundo exemplificam um grande contingente de brasileiros - cerca de 11,4 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade - que não foram alfabetizados. Elas, porém, estão estudando, e logo devem deixar esse contexto.
Aqui no município, conforme os dados mais recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao Censo Demográfico 2022, há 4.123 pessoas com a mesma dificuldade, o que representa 2,46% das 167.921 pessoas com 15 anos ou acima. O Rio Grande do Sul tem média de 3,11%, e no país, por sua vez, chega aos 7%.
Há uma semelhança quando se analisa a realidade tanto na cidade quanto no estado e no país: a maior taxa de analfabetos está concentrada no grupo dos adultos mais velhos. Em Passo Fundo, o maior contingente de pessoas que não sabem ler e escrever está concentrado no grupo de 65 anos ou mais (1883 pessoas, entre 65 e 74 anos de idade).
Alfabetização avança
O esforço de dona Eva para aprender a ler e escrever, assim como de Rosmari, também pode exemplificar outro aspecto do levantamento censitário, que aponta para uma queda contínua na taxa de analfabetismo brasileiro em todas as faixas etárias, sobretudo, mais intensamente entre os mais velhos. Em 2022, apesar do grupo de 15 a 19 anos ter atingido a menor taxa de analfabetismo (1,5%) e o grupo de 65 anos ou mais ter permanecido com a maior taxa (20,3%), esse último teve a maior queda em três décadas, passando de 38,0% em 2000, para 20,3% em 2022.
As duas recicladoras são alunas do Projeto de Extensão da Universidade de Passo Fundo “Alfabetização e Saúde: direitos de todos”, que envolve cooperados que trabalham com materiais recicláveis vinculados à Cooperativa dos Amigos do Meio Ambiente (COAMA).
A coordenadora, prof. Dra. Rosangela Hanel Dias, que é professora do curso de Pedagogia, retoma que o projeto surgiu a partir de demandas oriundas dos cursos de graduação, em especial, de Pedagogia e Odontologia, que perceberam a necessidade de promover o acesso à leitura e à escrita, potencializando o direito aos bens culturais e sociais, bem como a melhores condições de saúde a sujeitos em situação de vulnerabilidade social. “A metodologia utilizada parte de diagnósticos e diálogos com a comunidade, especialmente crianças, adolescentes e adultos/idosos e, conforme as necessidades, são realizadas oficinas e encontros sistemáticos pelos cursos de Pedagogia e Odontologia, focados na potencialização da alfabetização dos participantes do projeto e na saúde oral”, resume a coordenadora. Além dela, atuam no projeto os professores colaboradores: prof. Dr. João de Carli (curso de Odontologia) e a profa. Dra. Adriana Bragagnolo; e duas acadêmicas bolsistas do curso de Pedagogia e uma do curso de Odontologia.
Público-alvo exige metodologia adequada
Outro aluno do projeto, Luiz Carlos Oliveira dos Santos, assim como as duas colegas, tem mais de 50 anos, entretanto, apresenta especificidades. Ele já sabe ler e escrever, mas estuda para ir além. Adepto à leitura de livros de faroeste e romance, percebe que, quanto à escrita, tem dificuldades com a formação de palavras. Uma frustração que logo espera superar a partir das aulas que tem frequentado na cooperativa.
Na perspectiva do método de ensino, principalmente o voltado a adultos, as características individuas são levadas em conta. No sistema adotado pelos educadores do projeto que os três participam, os adultos e idosos passam pelo mesmo processo de aprendizagem das crianças, uma vez que, conforme detalha a coordenadora, para aprender a ler e escrever é necessário percorrer uma trajetória cognitiva e conceitual, chamada de Níveis de Conceitualização da leitura e da escrita. Ainda assim, a realidade de cada um é considerada na aplicação da metodologia. “O que é preciso cuidar, nesse contexto, são as necessidades que esse grupo apresenta. Por isso, partimos do contexto real, da vida cotidiana de cada adulto ou idoso. Assim, todo o material oferecido para leitura e escrita tem por base situações e necessidades reais da vida desses sujeitos”, confirma.
Nessa mesma linha - ao analisarem os dados expostos pelo IBGE em Passo Fundo - o secretário municipal de Educação, Adriano Canabarro Teixeira, e a secretária-adjunta, Angelita Scottá, apontam que, para avançar na alfabetização de adultos, a criação de condições favoráveis para este processo é estratégica, passando pela criação de programas de alfabetização que sejam acessíveis em termos de localização e horários e que sejam conduzidas com metodologias adequadas a este público. “Para além disto, é possível citar programas de bolsas ou incentivos para adultos participarem de programas de alfabetização e a parceria com a iniciativa privada para apoiar a alfabetização de seus funcionários”, colocam. A prefeitura, no entanto, não possui ações nesta área desde 2017, quando a Educação de Jovens e Adultos ficou sob responsabilidade do Governo Estadual.
No caso do projeto de extensão desenvolvido pela UPF, as aulas se adequam, inclusive, à rotina de trabalho do público-alvo. O ensino prático para adultos e idosos ocorre uma vez por semana, durante uma hora, junto ao Galpão da COAMA, e são desenvolvidas nos momentos em que os trabalhadores conseguem parar o trabalho e acompanhar. Para as crianças e adolescentes, familiares dos cooperados, acontecem no Projeto Transformação. “Entendemos que as crianças, adolescentes e idosos serão os protagonistas de suas aprendizagens, tendo os bolsistas e professores como mediadores desse processo. Trata-se de uma proposta metodológica que valoriza o contexto, as necessidades e os interesses reais dos sujeitos, implicando, portanto, no respeito aos grupos sociais do território de imersão do Projeto”, reitera Rosangela Dias, ao projetar que a iniciativa deve alfabetizar até 15 pessoas, incluindo crianças, adolescentes, adultos e idosos.
Para a coordenadora, é fundamental respeitar as dificuldades e o tempo de aprendizagem de cada sujeito que está vivendo a alfabetização. “Muitos deles pararam de estudar ainda quando crianças ou nem mesmo chegaram a frequentar a escola, porque a necessidade mais urgente era manter a sobrevivência. Por isso, para muitos deles, iniciamos com a aprendizagem do próprio nome e dos nomes dos familiares. Um trabalho fundamental para reconhecer-se como sujeito que tem uma identidade e, portanto, sua importância no mundo”, entende. Os resultados, muitas vezes, não acontecem num curto prazo, "mas são significativos e podem mudar a vida das pessoas”, finaliza.
Alguns números do Censo
- Dados do Censo Demográfico de 2022 mostram que, dos 163 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade, 151,5 milhões sabiam ler e escrever um bilhete simples e 11,4 milhões não sabiam. Assim, a taxa de alfabetização para esse grupo foi de 93,0% em 2022 e a taxa de analfabetismo foi de 7,0%. No Censo 2010, as taxas de alfabetização e analfabetismo eram de 90,4% e 9,6%.
- O tema é investigado desde o primeiro Censo do país em 1872. Em 1940, menos da metade da população (44,0%) era alfabetizada.
- A queda na taxa de analfabetismo ocorreu em todas as faixas etárias. Em 2022, o grupo mais jovem de 15 a 19 anos atingiu a menor taxa de analfabetismo (1,5%) e o grupo de 65 anos ou mais permaneceu com a maior taxa de analfabetismo (20,3%).
- As pessoas de cor ou raça branca e amarela com 15 anos ou mais de idade tiveram as menores taxas de analfabetismo, 4,3% e 2,5%, respectivamente. Já as pessoas de cor ou raça preta, parda e indígena do mesmo grupo etário tiveram taxas de 10,1%, 8,8% e 16,1%, respectivamente.