O NACIONAL 99 ANOS - Um “Almanaque do cotidiano”

Desde junho de 1925, Jornal O Nacional acompanha a rotina dos passo-fundenses

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Entre as poucas ilustrações, anúncio oferecia um veículo Ford. Na mesma página, imagem de um projeto para o “Club União Commercial”. - Foto Édson ColtzEntre as poucas ilustrações, anúncio oferecia um veículo Ford. Na mesma página, imagem de um projeto para o “Club União Commercial”. - Foto Édson Coltz
Entre as poucas ilustrações, anúncio oferecia um veículo Ford. Na mesma página, imagem de um projeto para o “Club União Commercial”. - Foto Édson Coltz
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“O Nacional apparecendo duas vezes por semana constitue uma novidade em P. Fundo. Assim é que muita gente nos tem manifestado certa dúvida bastante compreensível: Manter-se-á um bi-semanário nesta cidade?”. A indagação, na ortografia da época, introduzia um texto na capa da primeira edição deste periódico. Data de 19 de junho de 1925, uma sexta-feira. “Cruz Alta o tem; porque nós, com o nosso notável movimento social e commercial, não o podemos ter?”, retrucava a coluna, ao vislumbrar o significativo desenvolvimento que a ainda jovem Passo Fundo experimentaria num tempo vindouro. A publicação do periódico era um claro sinal de progresso. Quase um século depois, o tempo tratou de dar a resposta. Este escrito aqui materializa isso. Não mais somente bi-semanário, e em multiplataformas, o Jornal O Nacional segue acompanhando a rotina do passo-fundense. Viu e registrou com o passar das décadas o avanço econômico e social de sua cidade-sede, da mesma forma do país. E continua fazendo.

O exemplar mais antigo desse periódico integra o rico acervo do Arquivo Histórico Regional, no Campus I da Universidade de Passo Fundo. Foi nesse ambiente - dividido em amplas salas com estantes e outras para trabalho e estudo - que, para uma visita da reportagem de ON, numa mesa própria para a manipulação do material, foi posto o que parecia um grande livro de capa dura. Naquele encadernado, além da primeira de todas, estão anexadas outras edições do mesmo ano. Todas amareladas, naturalmente, mas muito bem tratadas, estando unidas a um papel japonês fino e branco, específico para proteger a folha original.

Quem folheia cuidadosa a primeira edição a passar pelas prensas é a coordenadora do AHR, Gizele Zanotto. Ao mesmo tempo em que indica esmero - usando luvas de borracha e virando página por página lentamente -, deixa visível o entusiasmo por ter em mãos registros da história da nossa cidade. “É uma edição muito especial!”, exclamou, quando contou que a retiraria da prateleira naquela ocasião. “É uma paixão lidar com um documento antigo, com fontes para produção de conhecimento. É muito legal!”.

A cada virar de página, surpreendia-se com as chamadas e as poucas ilustrações distribuídas entre as colunas de texto. “O seu Ford anunciava bastante”, brincou, ao apontar para uma imagem que ilustrava o anúncio de um veículo da época. Já no fim daquele volume, atentou para outro aspecto percebido com o toque: as folhas do papel-jornal já estavam mais finas. Sinal singelo de um avanço tecnológico que o O Nacional acompanhava.

Coluna na primeira página da edição número 1 do Jornal O Nacional: “Manter-se-á um bi-semanário nesta cidade?”, indagava, seguida pela crença certeira de que a cidade comportava tal símbolo de progresso.


Reflexo da sociedade

O Arquivo Histórico Regional tem todas as edições do Jornal O Nacional, resultado de uma parceira longeva entre as duas instituições. Parte do acervo já foi digitalizada, as compreendidas pelo período entre 1925 e 1957. Para Zanotto, historiadora, especialista em gestão de acervos e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, os impressos podem ser entendidos como almanaques do cotidiano. “Em geral, os estouros daquela comunidade estarão ali no jornal, além de notícias mais reflexivas, algumas indicações pensando na cidade para o futuro e tudo mais. Mas o jornal é uma expressão muito viva do cotidiano de uma comunidade. Para mim, é das fontes mais interessantes. Pois, por mais que eu vá buscar, por exemplo, entender o contexto social de Passo Fundo a partir do Jornal O Nacional, para esse propósito, eu vou olhar notícias de política, ali do ladinho, de esporte, cultura, do círculo social da cidade. Então, é um tipo de material dos mais ricos e dos mais próximos ao cotidiano das pessoas”, considera.

A coordenadora do AHR, Gizele Zanotto, folheia cuidadosa a primeira edição publicada do Jornal O Nacional - Foto Édson Coltz

As circunstâncias que afetam a comunidade também se refletem no próprio veículo, como na recente pandemia de COVID-19, quando o afastamento social limitou as interações humanas, as rotinas de trabalho, e a circulação de jornais por meio físico – demandando mais o uso da ferramenta digital para a disseminação da informação. O hiato maior entre edições nas ruas tornou-se, por consequência, mais um registro histórico daquela realidade momentânea. “Por isso um almanaque do cotidiano. Em que outro tipo de material você pegaria tantas informações não só do o porquê da mudança de circulação de diário para [menos edições] semanais, por exemplo, mas também quando a gente tem, no caso agora, os desastres climáticos. Jornais de Porto Alegre certamente foram lesados, a sua materialidade vai ser comprometida nesse tempo, e isso estará refletido lá nas edições impressas depois. Interessantíssimo, né?”, indaga Gizele Zanotto.

Trato delicado

Enquanto essa reflexão acontecia, na sala ao lado, o trabalho dos profissionais responsáveis pelo recebimento e arquivamento dos documentos continuava. Numa mesa bem iluminada, a estudante de História e estagiária no AHR, Karine Calza Costa Curta, utilizava uma broxa para retirar eventuais impurezas de um material a ser guardado. Para durar incontáveis anos – há no acervo, por exemplo, publicações da década de 1830– é adotado um protocolo rígido no tratamento.


A estudante de História e estagiária no AHR, Karine Calza Costa Curta, utiliza uma broxa para retirar eventuais impurezas de um material recebido- Foto Édson Coltz


Logo que chega à unidade, o impresso (desde jornais, livros, fotos, documentos de órgãos públicos ou de acervos particulares) passa por um tempo de quarentena. Conforme explica a coordenadora do local, pode haver algum tipo de elemento biológico deteriorante, por isso, fica de 30 a 40 dias separado, sem contato com o acervo. Após, página por página passa pela higienização mecânica (o trabalho que Karine realizava). Se for identificado algum tipo de fungo ou mofo, por exemplo, aí o tratamento é mais complexo, sendo que, eventualmente, produtos químicos podem ser utilizados. Depois de catalogado, fica à disposição do pesquisador. “Essa salvaguarda, além de ser uma documentação de um patrimônio público, tem que ser acessível e acessada. Quanto mais condição de descrever o que temos melhor é para o pesquisador”, pontua Gizele Zanotto.

Pode ser trabalhoso e delicado para armazenar, e demandar espaço, ainda assim, entende ela, é um meio seguro de “guardar” também a história. “Estamos com uma moda muito perigosa, me parece, como pesquisadora e como arquivista, que é da publicação de muito material de excelente conteúdo só no digital, só que a efemeridade de uso e de acesso desses materiais me preocupa. Já o impresso é a nossa garantia de ter várias cópias distribuídas em vários lugares, a sua manutenção física que dá uma continuidade, e aí a importância dos acervos, arquivos, casas de cultura, centros de memória, e, claro, uma compreensão mais apurada do que significou aquele impresso em cada momento”.

Publicando

Ao longo de 99 anos, O Nacional registrou por meio de máquinas de escrever, computadores e celulares, e publica nas páginas que passam pela prensa, via www ou @ nas redes sociais os fatos noticiosos de uma Passo Fundo em constante avanço. De início perguntaram: “Manter-se-á um bi-semanário nesta cidade?”. “Cremos que sim. Boa vontade de nossa parte não falta; boa acolhida da população não faltará”, respondeu a publicação, fundada pela Família Annes e poucos anos depois assumida pelo jornalista Múcio de Castro – hoje dirigida por Múcio de Castro Filho. E assim foi. 

Obviamente que os desafios foram muitos. Da política, às crises econômicas brasileiras e mudanças sociais. Nada, entretanto, que, com muito trabalho, não tenha sido superado. E se tomar por base aquela mesma primeira página da edição número 1 do Jornal O Nacional, o que veio não foi de todo uma surpresa: “Havemos de lutar com dificuldade e se há de notar muitos senões em nossa folha; tudo, porém, corrige-se com o tempo. […] iremos avante com facilidade e proveito para o ambiente em que vivemos”.

Para visitar e pesquisar no AHR

O Arquivo Histórico Regional (AHR) iniciou suas atividades com a denominação de Museu e Arquivo Histórico Regional, no Campus I, em 1984. Após uma reorganização física e nominativa, recebeu a designação atual e foi alocado no Campus III da UPF, no centro de Passo Fundo. Em dezembro de 2020, após anos de discussão acerca de um novo espaço para abrigar o setor, o AHR recebeu designação para retorno ao Campus I, no Prédio do B4/IHCEC. A partir de dezembro de 2021 o setor voltou a receber pesquisadores e a comunidade interessada.

O AHR está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da UPF e ao curso de graduação em História, servindo de local de guarda, conservação e restauro e, sobretudo, de laboratório para pesquisadores da cidade e região, vetor para a produção do conhecimento.

Arquivo Histórico Regional funciona no Campus I da UPF, no Prédio do B4/IHCEC- Foto Édson Coltz

Em junho, durante as atividades da 8ª Semana Nacional de Arquivos, dedicada ao tema dos Arquivos Acessíveis, o Arquivo Histórico Regional (AHR) e o Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF) divulgaram o Catálogo da Imprensa Periódica de Passo Fundo, publicação que traz um levantamento dos jornais publicados em Passo Fundo entre os séculos XIX e XXI, que estão disponíveis para pesquisa nos acervos das duas instituições.

A pesquisa nos fundos documentais e a produção do relato síntese dos periódicos que circularam no município, cujos exemplares estão salvaguardados e disponíveis gratuitamente à pesquisa em ambas as instituições, busca promover o acesso aos interessados e pesquisadores e, em decorrência, potencializar as pesquisas e produção de conhecimento sobre os jornais, ou sobre seus conteúdos.

O atendimento é de segunda a sexta-feira das 08 às 11h30min e das 13h30min às 17h20min. Deve ser realizado agendamento pelo email [email protected] ou telefone (54) 3316-8516. Em caso de agendamento prévio, é possível o atendimento a grupos em horários alternativos.

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