‘Salve nosso guerreiro’ diz a frase escrita em letras garrafais, numa faixa pendurada na sala do apartamento 01, de um prédio no município de Chapada. A homenagem, feita por familiares, amigos, e até mesmo por desconhecidos, era para saudar a chegada do estudante William Brizola Lisboa, 21 anos, que após permanecer 23 dias internado, em razão dos ferimentos sofridos no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, finalmente pôde voltar para casa na última segunda-feira. “É muito bom estar em casa novamente. Estava ansioso. Aos poucos vou retomando a vida normal” disse o estudante da faculdade de fonoaudiologia da UPF, que chegou a ficar 12 dias sedado, entre a vida e a morte, na CTI do hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre.
Enquanto se acomoda na cadeira, entre almofadas, para proteger as queimaduras, o jovem revela que a parada em Santa Maria, na noite da tragédia, não estava no roteiro de uma viagem entre amigos, que segundo ele, começou a ser planejada dias antes, durante a Chapada Fest, tradicional evento do município, e que tinha Punta del Leste, no Uruguai, como destino. Acompanhado dos amigos de infância, Lucas Albert e Fernando Pellin, 23 anos, que acabou falecendo no incêndio, os três partiram de carro dia 22 de janeiro. Após três dias desfrutando das belezas de Punta, retornaram ao Brasil. Como já haviam feito na ida, a intenção era passar a noite em Pelotas, mas resolveram alterar os planos e seguir até Santa Maria para visitar amigos de Chapada que estudam na Universidade Federal.
“Chegamos naquele sábado, no final da tarde. Jantamos fora e depois fomos para a casa do Miguel, que já havia comprado os ingressos para a festa” lembra. Miguel Weber May tinha 23 anos, cursava Agronomia na UFSM e acabou morrendo na boate.
Os quatro entraram na Kiss por volta de meia-noite, e encontraram outro amigo de Chapada. A casa ainda não estava totalmente lotada, mas as filas no lado de fora já eram grandes. “Lembro que naquele momento se apresentava uma banda de rock. Depois começou o som mecânico e, logo em seguida, o show do grupo gaúcho. Eu não estava prestando muita atenção na música, mas o incêndio aconteceu no início do show. Vi a fumaça no teto e gritei fogo” lembra. Distante cerca de 15 metros da única saída da boate, o jovem tentou correr e não viu mais os amigos. “Gritavam para se abaixar por causa da fumaça, o empurra-empurra era demais, eu comecei a rastejar e quando cheguei perto da porta, alguém me puxou para fora” recorda. Já no lado de fora da boate, voluntários que ajudavam nos primeiros socorros, colocaram o estudante sentado e jogaram água sobre ele. Com queimaduras pelo corpo, William embarcou sozinho em um táxi e seguiu até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do município.
Enquanto aguardava atendimento sentado numa cadeira de rodas, acompanhou a chegada de dezenas de feridos nas ambulâncias. Logo depois, a situação de saúde do estudante começou a se agravar. O momento em que foi colocado numa maca e passou a receber massagem cardíaca (teve duas paradas cardiorrespiratória) é a última cena registrada por ele na Unidade. Transferido na segunda-feira à tarde para Porto Alegre, William somente acordou 12 dias depois na CTI do Hospital Cristo Redentor.
Ele sofreu queimaduras pelo corpo, inclusive nas vias aéreas. Durante o período em que esteve internado, precisou passar por duas cirurgias de transplante de pele da perna para o braço esquerdo e parte das costas. Somente no dia em que recebeu alta, William ficou sabendo das mortes dos amigos. “Tínhamos uma banda aqui em Chapada, a Maria Surda, Fred era vocalista e guitarrista, era um amigão, assim como o Miguel” lamentou. Os outros dois amigos conseguiram sair da Kiss sem ferimentos.
Corrente positiva
Antes de ingressar no curso de fonoaudiologia, William cursou durante dois anos, a faculdade de música na UPF. Neste período, foi baterista da banda Texas Storm, com a qual realizou shows pela cidade. Assim que a notícia de que ele estava entre os feridos na boate Kiss, na manhã daquele domingo, se espalhou, amigos de Passo Fundo e de Chapada, cidade natal, passaram a manifestar apoio pelas redes sociais e telefones dos familiares. “Só tenho que agradecer a todos que torceram e rezaram por mim. Fica a lição de que devemos aproveitar bem os amigos enquanto eles estão por perto e deixar as preocupações bobas de lado. Quero voltar a estudar, a tocar bateria” comenta. Nesta segunda-feira, o estudante deve retornar a Porto Alegre para realizar novos exames e dar continuidade ao tratamento.
“No meu coração tinha certeza que encontraria meu filho vivo”
Eram por volta das 4h40min da madrugada de domingo, quando tocou o interfone no apartamento da família Lisboa. O pai do jovem Lucas Albert, que havia viajado com William, disse ter recebido uma ligação do filho contando sobre o incêndio na boate, em Santa Maria, e que não tinha notícias dos amigos.
“Entramos em desespero para tentar falar com William. Ligamos muitas vezes, mas ele não atendia. Quando vi as imagens pela internet, não acreditei que meu filho estivesse lá. Em meia hora arrumamos as coisas e seguimos para Santa Maria, eu, meu marido e nosso outro filho, de 15 anos. Só rezava para não acontecer nenhum acidente e para o carro, que parecia flutuar de tanta velocidade, não quebrar” lembra a mãe, Janete Brizola Lisboa, 44 anos.
A atualização no número de vítimas do incêndio, ainda sem identificação até aquele momento, divulgada pelas emissoras de rádio, só fazia aumentar a angústia da família. “Eu pedia a Deus para encontrar meu filho com vida. Meu coração de mãe me dizia que isso iria acontecer” lembra Janete. E aconteceu. Ainda durante a viagem, uma pessoa atendeu uma das dezenas ligações feitas para o celular do jovem, dizendo apenas ‘que ele estava vivo na UPA e solicitou a presença de familiares’.
Os pais e o irmão encontraram ele deitado sobre uma maca em estado grave. “Sabia que seria difícil, mas pedia a Deus para que ele vivesse” recorda a mãe. A namorada do jovem, Joice Roth, 18 anos, residente em Passo Fundo, soube da notícia por volta das 8horas, e seguiu para Santa Maria com a cunhada, ainda no domingo.
No dia seguinte, o estudante foi transferido de helicóptero para Porto Alegre. Durante os 23 dias, a mãe e a namorada percorreram diariamente o trajeto da casa de parentes, em Gravataí, até o hospital em Porto Alegre. As duas somente retornaram na última segunda-feira trazendo William de volta para casa. “Pessoas das mais diferentes religiões nos apoiavam. Nossos telefones não paravam de tocar. Muita gente querendo ajudar, buscando informações. Várias Ongs prestaram solidariedade no hospital. Em Chapada, fizeram correntes de orações. Tudo o que passamos não chega nem perto da dor das famílias que perderam seus filhos” resume Janete.
Para a namorada, o drama enfrentado foi uma lição de vida. “Muitas vezes, as coisas acontecem para nos ensinar algo. Temos que seguir em frente e agradecer a Deus todos os dias” completa.