Vulnerabilidade social: Só doar não adianta

Muitas das famílias tem dificuldade de aceitar entrar na rede de atendimento pública para sair da vulnerabilidade social e acabam vivendo de doações ou esmolas

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A casa de madeira tem apenas um cômodo e abriga sete pessoas. Uma cama de casal, uma de solteiro e um colchonete servem para acomodar toda a família. As roupas ficam espalhadas pelos vãos entre as camas e as paredes. Não há banheiro e a água e a luz são “emprestadas”. Os alimentos recebidos através de doações nas últimas semanas são a boa notícia para a família. 


A má notícia é que os donativos deverão terminar em cerca de dois meses, conforme experiência da família, que vive de doações e esmolas em Passo Fundo há mais de dez anos. Essa ainda é uma realidade no município, que possui mais de 2,5 mil famílias na extrema pobreza, e que devido a situação de vulnerabilidade em que se encontram, muitas não conseguem perceber que ingressar na rede de atendimento para programas de geração de renda, de auxílios e demais encaminhamentos nas áreas da saúde, habitação e educação, por exemplo, são alguns dos caminhos para sair da vulnerabilidade.

A identidade da família foi preservada. O que pode-se dizer é que a matriarca da família, tem 42 anos, não é alfabetizada, e teve seis filhos. A mais velha tem 17 anos e o mais novo tem um ano. O primeiro marido já é falecido e agora vive com um companheiro de 36 anos, pai das últimas duas crianças. “Por enquanto não estou trabalhando, porque estou amamentando no peito meu filho de um ano. Tenho seis filhos, mas um eu dei bem novinho quando nasceu”, disse a mãe das crianças.

A renda da família é baseada na catação de materiais recicláveis na rua, do bolsa família e de doações ou esmolas. “Meu marido junta sucata, às vezes se machuca e começa a juntar papel e litro. Daí ele cansa e junta sucata de novo. De vez em quando, as crianças vão junto pra ajudar na renda, mas as meninas da assistência disseram que isso não pode. Ganho 225 reais do bolsa família e não sei muito bem quanto meu marido ganha juntando sucata, mas acho que quando junta bastante deve dar uns cem reais”, disse a mulher.

Depois de alguma insistência da rede de atendimento do município, dois filhos estão na escola. A filha mais velha de 17 anos parou na terceira série e os outros ainda não vão na creche. “Minha filha tem 17 e vai fazer 18. Na terceira série, ela se encrencou com uma coleguinha e não quis mais voltar para a escola. Agora ela pediu pra mim achar um emprego pra ela. Ela tem que voltar a estudar, mas de noite ela corre perigo, né”, justificou a mãe.

Nas últimas semanas, a família ganhou doações da comunidade. “Ganhamos bastante coisas. Muitas pessoas vieram ajudar. Vai durar uns três meses. O pessoal até ofereceu mais coisas, mas não temos onde colocar”, disse a mulher.

A ideia da família neste momento é que o município arrume um terreno e empregos. “Quero que eles me arrumem um terreno. Já trabalhei no PAC na limpeza, posso voltar também. A minha filha também pode trabalhar”, disse a mãe.

A Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (Semcas) informou que esta família é atendida pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) desde 2002 onde recebeu vários benefícios sociais. A mãe e as crianças foram pegas várias vezes, através de denúncias, em situação de mendicância nas ruas e praças de Passo Fundo.

Todo mês, a família busca na Semcas alimentos, passagens, bolsa família, mas não aderem aos programas de profissionalização e de trabalho oferecidos na rede. “Eles recebem os benefícios, foram incluídos no Programa Apoiar e Comprometer (PAC), mas não quiseram mais trabalhar em função de acharem o valor muito pouco. Conversei na semana passada com o marido dela e ele me disse que no mínimo teria que ganhar mil reais e que ela amamenta no peito e queria amamentar até os seis anos. É uma família que vive de esmolas e as coisas que a gente oferece eles não querem aderir”, revelou a psicóloga do PETI, Patrícia de Lima.

O PAC oferece remuneração aos trabalhadores de R$ 579,00 e uma sacola econômica de 60 Kg, além de cursos profissionalizantes na rede pública. Já o PETI compreende transferência de renda – prioritariamente por meio do Programa Bolsa Família –, acompanhamento familiar e oferta de serviços socioassistenciais, atuando de forma articulada com estados e municípios e com a participação da sociedade civil. O Programa articula um conjunto de ações para retirar crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos da prática do trabalho precoce, exceto quando na condição de aprendiz, a partir de 14 anos. No mês de setembro, o PETI realizou 224 atendimentos em Passo Fundo.

A família também foi contemplada anos atrás com uma casa no Parque Recreio, através dos programas habitacionais do município. “Eu já ganhei uma casa, mas vendi. Não sabia que não dava pra vender. O bairro lá tinha muito marginal. Assaltavam os ônibus e como morava sozinha com as crianças, saí de lá. Agora moramos neste terreno que é invadido. A água e a luz são emprestadas dos vizinhos”, explicou a mãe das crianças.

Atuação do Conselho Tutelar

O caso da família citada nesta reportagem, que vive na situação de mendicância há mais de dez anos, não é novidade para o Conselho Tutelar. A conselheira tutelar da microrregião II, Jussara Gazzola, revelou que a maioria dos casos de mendicância nas ruas de Passo Fundo são de famílias reincidentes. “Acompanhamos a situação dessa família desde 2005. A rede do município se disponibilizou em atender todas as situações de vulnerabilidade, mas a família não se submete a melhorar a qualidade de vida, porque do outro lado tem alguém que alcança a moeda e estimula o ganho”, revelou a conselheira tutelar.

A situação da família já foi levada ao Ministério Público. “Quando a família não adere aos encaminhamentos da rede, o Conselho Tutelar tem como atribuição representar contra os genitores. Eles já passaram por audiências”, disse Jussara.
De acordo com a conselheira tutelar, os pais costumam utilizar as crianças para sensibilizar as pessoas. “Fica mais fácil expor o filho e ganhar 30 ou 40 reais do que ir trabalhar, acordar cedo, como qualquer outro trabalhador”, exemplificou a conselheira.

Denunciar é o melhor caminho
A promotora da Infância e da Juventude, Clarissa Machado, salientou a importância das pessoas denunciarem situações de mendicância ou de qualquer outra situação de violação dos direitos da criança. “O cidadão tem que denunciar. O Conselho Tutelar fará o estudo de caso e articulará ações com a rede de integração para inserir essas famílias em programas de geração de renda, de auxílio a família, encaminhamentos para a Secretaria de Saúde para avaliações médicas, para a de Habitação para inserir nos programas habitacionais, para a de Educação para conseguir vagas na escola, ou seja, a rede vai articular ações para melhorar a vida daquela família e consequentemente das crianças”, explicou a promotora.

Caso seja detectada a violação de direitos graves e que determine prejuízos para a integridade física e psíquica da criança, medidas mais rígidas poderão ser tomadas. “Quando se esgotarem todas as maneiras, a rede de proteção por meio do Conselho Tutelar pode representar ao Ministério Público para avaliar a necessidade de afastamento do convívio familiar e acolhimento institucional. Num primeiro momento haverá a tentativa de reestruturar a família para que as crianças voltem para casa. Caso for inviável, o destino pode ser uma família substituta”, esclareceu Clarissa.
Fazer campanhas ou expor imagens de crianças na rede social, por exemplo, não é o melhor caminho para ajudar a sair das situações de vulnerabilidade. “Por mais que a intenção seja a melhor possível, há uma violação do direito de imagem dessa criança. Viola os princípios da dignidade. A exposição de toda a pobreza também é uma violação de direito”, enfatizou a promotora.

Doar é importante, mas não resolve o problema
Em Passo Fundo, conforme dados do Ministério de Desenvolvimento Social, há 2.673 famílias em situação de extrema pobreza que vivem com uma renda per capita abaixo de R$ 77,00. São casos de grande vulnerabilidade social onde as famílias residem precariamente, em situação de risco, não possuem renda fixa e não conseguem acessar os serviços de educação, saúde, habitação, por exemplo.
Muitas famílias, como a citada nesta reportagem, possuem uma dificuldade e, muitas vezes, uma resistência em aderir aos serviços da rede. O secretário da Semcas, Saul Spinelli, disse que aceitar os serviços da assistência social é um passo importante para a família sair da situação da vulnerabilidade. “A assistência social consolida os direitos, oferece caminhos, cursos, encaminhamentos, para que a família saia da vulnerabilidade”, explicou Spinelli.

O problema é que muitas vezes as famílias que vivem de doações enxergam mais vantagens em permanecer nesta situação. “O assistencialismo é importante, mas as doações não resolvem o problema, porque daqui alguns meses a doação termina e a pessoa continua vulnerável. É preciso que as famílias aceitem entrar na rede de assistência e aproveitem as oportunidades de benefícios, profissionalização e de trabalho para que consigam se emancipar”, disse o secretário.

Para acessar o Bolsa Família famílias precisam atender requisitos
No município, há cerca de 17,3 mil famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) que é o primeiro passo para as famílias de baixa renda acessarem os programas e serviços da rede. O CadÚnico permite conhecer a realidade socioeconômica das famílias, trazendo informações de todo o núcleo familiar, das características do domicílio, das formas de acesso a serviços públicos essenciais e, também, dados de cada um dos componentes da família.

O Bolsa Família, por exemplo, é um dos programas oferecidos para ajudar as famílias a saírem da situação de vulnerabilidade. Para acessar o programa é necessário estar inscrito no CadÚnico. Em setembro deste ano, havia 3.738 famílias beneficiárias do programa em Passo Fundo onde foram repassados pelo governo federal R$ 504 mil. A média de benefício por família é de R$ 134,00. Entre as condições impostas para o programa está a educação e a saúde. “Os filhos tem que estar matriculados e frequentando a escola e na saúde, as crianças tem que estar com a vacinação em dia e as mulheres também”, disse o secretário da Semcas.


Superação
Eliane Silveira, 52 anos, teve o filho Alessandro Silveira, na época com 13 anos, assassinado. Ele foi a primeira das 12 vítimas do Adriano da Silva. O assassino costumava utilizar dinheiro e presentes para atrair as crianças. Alessandro era engraxate nas ruas de Passo Fundo e ajudava na renda da família. A morte do menino completou nove anos. “Na época eu estava no hospital e ele engraxava sapato para ajudar em casa. Se ele não estivesse na rua, meu filho estaria vivo. Foi uma lição. Hoje faço tudo para criar meus nove netos e para eles não ficarem na rua. Tenho carteira assinada, renda fixa, pago as despesas da casa e compro alimentos, roupas, calçados e material escolar pros meus netos”, disse Eliane.

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