“Ouve primeiro” é o tema da campanha proposta para o Dia Internacional da Luta Contra o Uso e Tráfico Ilícito de Drogas, que acontece neste domingo. A intenção é chamar a atenção para a necessidade de ouvir as crianças e os jovens para que cresçam saudáveis e em segurança. Ainda no domingo, a Organização das Nações Unidas (ONU), deve divulgar o Relatório Mundial da Droga.
Para marcar a data, O Nacional registrou o depoimento de dois ex-usuários de drogas que encontraram nos grupos de apoio, e no ensinamento de que é preciso ficar longe das drogas “Só por hoje”, a mesma porta de saída. Carlos, (nome fictício), 53 anos, está há 17 sem fazer uso de substância entorpecente. Ele foi um dos fundadores dos Narcóticos Anônimos Salva Vidas, de Passo Fundo. Entidade que completou 14 anos no último final de semana. No outro depoimento, Marcel Conterno Bueno, 31, natural de Marau, há oito anos 'limpo' revela como conseguiu 'virar sua vida ao avesso' para escapar do vício e sua intenção em seguir trabalhando com dependentes assim que concluir a faculdade de psicologia. Ambos dividem a mesma opinião sobre o primeiro passo no processo de recuperação. “Começa quando a pessoa reconhece que tem um grave problema com as drogas'.
“Enxerguei o inferno em que havia me metido”
Encerrado em um pequeno barraco na periferia de Novo Hamburgo, consumindo crack por horas a fio, juntamente com outras 20 ou 30 pessoas, o jovem Marcel Conterno Bueno, à época com 23 anos, olhou ao seu redor e constatou que estava se matando lentamente. A percepção, acompanhada por uma crise de choro, no gélido 13 de agosto de 2007, se transformou em um divisor de águas na vida do rapaz. Desde lá, ele se mantém limpo (sem fazer uso de qualquer tipo de droga).
Aluno do último ano da faculdade de psicologia, Bueno, 31 anos, cumpriu um roteiro semelhante ao de milhares de jovens. Natural da cidade de Marau, o estudante tímido, com dificuldades para se enturmar, gostava de admirar 'os caras mais descolados da escola'. Em pouco tempo já era um deles. Entre os 13 e 14 anos, passou a acompanhar a turma nos primeiros experimentos com bebida alcóolica. Logo veio a maconha.
“Não foi por falta de informação. Eu já sabia o que era errado. Tinha noção. Minha mãe sempre conversava comigo sobre isso. Ninguém me levou para as drogas. Foi um caminho que a turma buscou junto” revela. Em pouco tempo, o uso esporádico no final se semana já não saciava mais o vício. Além da frequência, a turma queria novas experiências. Por volta dos 15 anos, Marcel conheceu a cocaína. Nesta época, já cumpria jornada em um trabalho de meio turno. O dinheiro recebido a cada final de mês tinha sempre o mesmo destino: juntar com o dos amigos para comprar a droga.
O uso continuo somente teve a primeira pausa no ano seguinte com início de um namoro. Mesmo longe da cocaína, o estudante não abria mão do álcool nem da maconha. Como o rendimento na escola era satisfatório, nesse período, as atitudes de Marcel praticamente não levantavam suspeitas. “Muitos pais acreditam que desempenho escolar é sinônimo de estar bem. Se está bem na escola, o problema não é tão grave. Minha mãe pensou por um bom tempo assim” conta.
Mas a situação era grave e ficaria ainda mais. O recontro com a cocaína aconteceria em Porto Alegre, onde o pai residia. O jovem mudou-se para a Capital para realizar o curso de tecnólogo em mecatrônica. Longe de casa e já sem a namorada, não teve dificuldades em se envolver com uma nova turma de usuários.
Formado e de volta para sua cidade natal, Bueno conseguiu emprego em uma das grandes empresas daquele município. Com um bom salário, e já sem a necessidade de dar satisfação como antes, o ‘pó’ foi ficando cada vez mais presente. “Primeiro era só nos finais de semana. Depois passei a usar todos os dias, inclusive, no trabalho. Meu desempenho começou a ser prejudicado” revela. Mesmo com um consumo elevado, ainda conseguia manter o emprego, situação que não seria mais possível pouco tempo depois, quando o crack entraria em sua vida.
“Naquela noite eu casei com o crack”
Marcel já havia tido uma experiência com o crack, mas disse não ter gostado dos efeitos provocados pela pedra. Em um determinado final de semana, após uso contínuo de cocaína (três dias), a droga chegou ao fim. Mas como a festa tinha de continuar, o grupo decidiu peregrinar por ‘bocas’ de Passo Fundo, Carazinho e Erechim. Sem sucesso em nenhuma destas cidades, a alternativa foi apelar para o crack. “Compramos algumas pedras. Nesta noite eu praticamente casei com o crack” revela.
Foram pelo menos dois anos de consumo intenso. Período em que o jovem mergulhou na fase mais devastadora. O emprego ficou para trás durante um carnaval. “Eu tinha trabalho para acompanhar na empresa. Fiquei quatro dias sem aparecer. Quando voltei acabei demitido” diz.
Com tempo e dinheiro disponíveis, a situação ficou ainda mais favorável para o consumo. Em único dia chegou a usar 40 pedras. O corpo definhava e a mente pedia mais. “Cheguei aos 56 quilos. Acordava com uma dor terrível no corpo pela abstinência. Enquanto não usava, não passava. Minha família tinha uma loja, por várias vezes tirei dinheiro do caixa. Qualquer coisa era moeda de troca” diz.
Junto com o emprego também ficaram para trás o respeito e a confiança no jovem. Empréstimos bancários e dívidas com traficantes se acumulavam. A promessa de não ir atrás da droga era quebrada na primeira esquina. “Na sexta-feira, eu saía arrumado para a festa, prometendo que não iria usar, mas desviava na primeira oportunidade. Voltava pra casa com roupa trocada, deixava o celular empenhado, era um inferno”.
O recomeço
Marcel começou a perceber que precisava de ajuda após passar duas noites consumindo quantidades absurdas de crack, sozinho em um matagal. Mesmo assim, ainda acreditava ser o ‘dono da situação’. “Na minha mente eu só precisava dar um tempo”.
O rapaz pediu ajuda para a mãe, que sempre esteve ao seu lado. Não sabiam a quem recorrer. Procuraram um médico particular que determinou a internação. Marcel cumpriu 10 dias de abstinência. O tratamento seguiu por mais 20 dias em uma clínica de Passo Fundo. O pensamento ainda era o mesmo. “Só preciso dar um tempo”.
A guinada mais significativa começou com a decisão de ir para a comunidade terapêutica Fazenda Renascer, em Novo Hamburgo. O tempo de tratamento previsto era de nove meses, mas em razão de duas fugas, aumentou para pouco mais de um ano.
“Lá dentro minha cabeça pensava o tempo todo em usar. Passava 24 horas pensando nisso. Quando recebi o primeiro auxílio saúde, consegui fugir e recaí. Minha mãe me deu um ultimato dizendo que eu não tinha mais casa para voltar. Aquilo me revoltou” revela.
No mês seguinte, Marcel saiu novamente para receber o auxílio e voltou a procurar a droga. Era 13 de agosto de 2007. “Fui parar numa favela. Estava num barraco, usando por horas. Quando acabou, olhei ao meu redor, vi 20 ou 30 homens e mulheres empoleirados numa peça 2x2. Cara estou me matando. Comecei a chorar. Saí dali, achei o escritório no centro. Mandaram eu voltar a pé para a fazenda, são 26 quilômetros. Foi o dia em que enxerguei o inferno em que havia me metido. Não tenho religião, mas alguma força superior me fez ver. Desde lá nunca mais usei” diz.
“O problema está em ti”
De volta a Marau, Marcel buscou ajuda nos grupos de apoio para se manter afastado das drogas. Entre eles, o Narcóticos Anônimos de Passo Fundo (NA) e os Alcóolicos Anônimos de Marau. Para manter a cabeça ocupada, frequentava reuniões em ambos durante todos os dias da semana. “Nos grupos de terapia as pessoas me receberam como se eu fosse amigos de infância deles”.
Os hábitos também foram modificados. Passou a evitar certas pessoas e lugares. “Minha vida virou do avesso” conta, sem deixar de mencionar a dificuldade deste processo. “Eu dormia e sonhava que estava usando. Acordava com o gosto da droga na boca, assustado imaginando que havia recaído. Isso já havia dois anos que estava limpo. Tu tem que querer. A vontade dá e passa. Por muitas vezes recorri aos amigos nesta hora. Nos momentos mais difíceis eu ligava para um companheiro e ele me fortalecia. Passar um tempo limpo já te dá ferramentas para escolher o caminho a ser seguido. Uma vez desembarquei na rodoviária de Passo Fundo. Fiquei 15 minutos paralisado. Não sabia se ia para o centro, ou procurava alguma 'boca'. Abri um livro do NA, li algumas passagens e segui para o centro” recorda.
Prestes a se formar em psicologia, Marcel, que atua numa empresa de Passo Fundo, na área de sua primeira formação, pretende trabalhar com dependentes assim que concluir a segunda faculdade. Fundador do NA de Marau, o jovem troca mensagens de apoio diariamente com seus afilhados e amigos. Sobre o apoio recebido da família nestes anos todos ele resume. “Tirei o sono da minha mãe por muito tempo. Minha obrigação hoje e deixá-la dormir”, conclui.
O mantra da libertação
Todas as manhãs Carlos (nome fictício) acorda e repete, como uma espécie de mantra, a seguinte frase: “Só por hoje”. Após, apanha o celular e se comunica com dezenas de pessoas enviando a mesma mensagem de coragem e fortalecimento. “Só por hoje companheiro, estamos juntos”. Para quem se embriagou pela primeira vez aos nove anos, conheceu a maconha aos 13 e, aos 20, mergulhou numa viagem quase sem volta na cocaína e no crack, permanecer as próximas 24 horas afastado das drogas é o grande desafio de mais um dia que começa. E assim tem sido. Nos últimos 17 anos, o personagem deste depoimento está limpo (sem uso de drogas).
Hoje, aos 53 anos, ele conta que sua primeira experiência marcante aconteceu muito cedo com o álcool. Tinha apenas nove anos quando foi até o bar comprar meia garrafa de cachaça para seu pai. No caminho de volta, parou e tomou a bebida. A maconha veio um pouco depois, através da turma da escola. Com pouco mais de 20 anos, já casado, passou a fazer uso da cocaína. A droga que mudaria para sempre sua vida.
Os reflexos do consumo intenso não demoraram para aparecer. O primeiro casamento, de onde nasceu um casal de filhos, ficou para trás. A empresa em que era proprietário faliu. Esteve mais de uma vez preso ou envolvido com a polícia. Durante uma discussão em um bar, sacou de um revólver para atirar em outra pessoa. Só não matou o desafeto porque um amigo impediu. Ele bateu em seu braço e a bala atingiu um dos dedos de seu pé, que precisou ser amputado.
“Sempre arrumava uma desculpa para usar. Comecei a mentir, roubar. Cheguei a vender o estepe do meu carro, minhas roupas. Me humilhava na frente de traficantes implorando para conseguir mais uma dose. A gente vivia para morrer. Eu estava comprando minha morte a prestação” recorda.
Carlos foi percebendo que o tiro no próprio pé tinha um duplo sentido em sua vida. Após estar à beira da morte, em razão de uma overdose, decidiu que precisava mudar. Para isso deu o passo considerado decisivo. Reconheceu que tinha um problema sério com as drogas. “Tem que entrar na realidade. Todo mundo está vendo o problema, só você que não. Saber que quem perdeu para a droga fui eu. Este caminho só tem três destinos: a morte, o hospício ou virar mendigo nas ruas. Eu estava bem perto de algum deles” enfatiza.
O processo de recuperação iniciou em uma fazenda em Panambi. Depois passou a frequentar os Alcoólicos Anônimos (AA), de Carazinho. Mais tarde, ajudou a fundar, juntamente com outros três amigos, o Narcóticos Anônimos Salva Vidas, de Passo Fundo. Entidade que completou 14 anos na semana passada.
Luta diária
Perto de completar duas décadas sem fazer uso de qualquer tipo de droga (lícita ou ilícita), Carlos diz que a luta para se manter limpo é um exercício diário. “A doença é traiçoeira. Ela vem travestida de várias maneiras. Um problema no trabalho, com a esposa em casa, o time que perdeu. A lembrança de uma música. A propaganda de uma cerveja. Tudo pode ser desculpa para uma recaída se a pessoa não estiver atenta. Tu arruma um motivo. Tu perde o domínio da vida e ela te afunda” afirma.
É nesse momento que entra em cena uma das ferramentas mais importantes no processo de recuperação: a terapia do telefone. Receber uma palavras de incentivo de um companheiro de grupo naquela segundo de insegurança é decisivo para se manter limpo. Durante muitos anos Carlos utilizou deste recurso. Hoje, é ele quem liga para seus afilhados, retribuindo a mesma preocupação.
“Com a ajuda do grupo, dos companheiros, a gente vai se fortificando. A cada reunião vamos aprendendo a lidar com as situações. A luta é diária. As vezes passo por um posto de combustíveis e vejo um cara lá tomando cerveja. Sei que aquilo não é mais para mim, porque uma cerveja não chega e mil não bastam, tenho que me abster. Não posso mentir pra mim, tenho sempre de estar no propósito de evitar a primeira dose. Amanhã eu não sei, mas hoje eu não quero. Meu propósito é só por hoje”.
Não foram poucas as vezes em que Carlos acordou assustado no meio da noite. As imagens de estar indo em alguma 'boca' ou fazendo uso da droga eram frequentes em seus pesadelos. Hoje diz que costuma agradecer a Deus por ir dormir e acordar sóbrio. Aos poucos, Carlos foi readquirindo a confiança dos familiares, principalmente dos cinco filhos, de três relacionamentos. No lado profissional, conseguiu abrir uma nova empresa. Sempre que tem a oportunidade, costuma reparar os erros do passado, seja com um pedido de desculpas, ou pagando dívidas contraídas durante as madrugadas de festa. “Uma vez cheguei num lugar e encontrei o proprietário de um bar, um senhor de idade. Ele me reconheceu e perguntou como eu ainda estava vivo. Em seguida, puxou um caderninho, com as folhas amareladas e mostrou uma conta minha ainda daquela época. Deu uns R$ 1,2 mil” lembra. No entanto, Carlos sabe que nem todos os erros podem ser pagos em dinheiro.
“O ontem não volta mais. Nem se tu pegar todo o ouro do mundo não consegue comprar o ontem. O amanhã a Deus pertence, ele não chegou ainda. A gente sabe que vivendo o hoje está bom para nós. Para quem não vivia um dia sem usar. De 24 em 24 horas já se passaram 17 anos”.