O cultivo das flores de diversas cores, plantadas em pequenos potes de plástico, é um dos passatempos preferidos da dona Tereza, que há 14 anos reside no Lar da Vovó. A enfermeira Alice Duarte da Rocha recomenda: “a senhora não pode descer escada”. Mas, Tereza rebate: “é exercício”. Aos 84 anos, sem dificuldade de fala ou locomoção, tem muita lucidez e convicção ao conversar. Sem furo de brinco nas orelhas, relembra do voto de pobreza para viver com Jesus, que fez no tempo de convento. Entre divagações, a idosa rememora que saiu da instituição religiosa depois de ter convulsionado duas vezes. Trabalhou, então, durante 31 anos no ofício de empregada doméstica. Apesar de ter abdicado da vida no convento, não casou nem teve filhos. Quando o irmão faleceu, seu destino foi o lar. É uma das moradoras mais antigas da Instituição de Longa Permanência (ILP).
A instituição que abriga Tereza Irene Marques da Silva, de conversa fácil, também hospeda dona Osvaldina. Idosa de poucas palavras, ela reforça que não é muito de conversar. Porém, quando o assunto é crochê – o seu passatempo favorito – ela logo se solta e mostra com empolgação as peças já confeccionadas no tempo ocioso. Filha de ferroviário, ela é praticamente uma passo-fundense. Está na cidade desde os sete anos. Foi costureira e do lar durante toda vida. Aos 84 anos, é mãe de quatro filhos. “As duas gurias trabalham no comércio e o guri é técnico de enfermagem. Minha outra filha faleceu já”.
Viúva, com todos os filhos ocupados com suas tarefas diárias, ficava sozinha em casa. Quando começou a apresentar dificuldades para se movimentar, há mais ou menos cinco anos, decorrente do desgaste do corpo e da pressão alta, Osvaldina Pereira Flores e os filhos viram na instituição, a solução para evitar qualquer acidente doméstico. “Se eu fico sozinha lá [na casa] e caio, quem me junta? Não tem né”. Apesar dos passos tímidos, ela se orgulha ao contar que “caminho sozinha, me visto sozinha, tomo banho sozinha. Tudo eu faço sozinha, não dependo de ninguém, graças a Deus”. Tereza e Osvaldina são duas das 22 senhoras que vivem no Lar da Vovó. A instituição foi fundada em maio de 1968.
Há aproximadamente três quilômetros do Lar da Vovó, reside no Abrigo São José e João XXII, da Fundação Lucas Araújo, a mulher que saiu de Santiago, passou pela capital e hoje, em Passo Fundo, carrega tantas histórias de vida consigo, que parecem não ter espaço na senhora de baixa estatura física que mede aproximadamente 1,5 m. Na ânsia de compartilhar suas experiências, Zeli Vulff que ainda possui sotaque característico de porto-alegrenses, acaba resumindo “eu sou viajada minha filha, conheço muita coisa”.
Se aposentou após muitos anos trabalhando em um grande fábrica de Porto Alegre, desempenhando um serviço repetitivo de medir peças em exaustivas 12 horas diárias. Lembra-se dos tempos de juventude, em que alugavam um ônibus e iam para as praias próximas à capital nos fins de semana. “Era bom, a gente aproveitava porque trabalhávamos muito também”.
Com o óbito de sua mãe, Zeli que constituiu uma família pequena, com apenas uma filha, hoje com dois netos, mudou-se para Passo Fundo. Por razões adversas, há quatro anos reside na instituição. Apesar de fazer uso continuo de remédio para a pressão, a idosa, de 76 anos, é muito ativa, caminha por todos os cantos da propriedade sem dificuldade e até ajuda nas atividades do abrigo. Sempre acostumada à rotina dos lugares por onde passou, afirma não ter enfrentado dificuldades para se adaptar as regras e horários do abrigo. “É tudo com horário, como se fosse um colégio interno. Não é como a casa da gente, mas é bom”. Apesar de seguir a rotina, não abre mão da sua autonomia e lava suas próprias roupas.
No mesmo recinto em que dona Zeli ocupa o tempo fazendo tricô, na outra ponta da sala de estar, em uma cadeira de rodas, o homem que durante 20 anos foi o Rei Momo dos carnavais de rua de Passo Fundo joga cartas. Hedo Prante, há dois meses no local, conversa sem inibição alguma, questiona política e já se sente em casa. É piloto desde a década de 50, mas trabalhou a maior parte da vida com propagandas em carros de som. Se indigna com alguns acontecimentos políticos, afirma assistir e prestar atenção em todas as promessas que os candidatos fazem no horário eleitoral.
Com uma grande barba branca, promete fazer jus a ela no Natal desse ano. “Sempre fiz a alegria dos pequenos, agora quero fazer a alegria dos velhinhos. Fui Papai Noel três anos no outro abrigo”. Apesar do pouco tempo na instituição, ele conhece bem a rotina dos residenciais já que residiu outros dois anos no Abrigo Nossa Senhora da Luz. Foi para a ILP depois de complicações de saúde no coração e crises renais.
A instituição, que abriga Prante, Zeli e outros 56 idosos, era a residência da mulher, que até dia 4 de setembro, data em que faleceu, foi a mulher mais velha do Brasil. Maria Domingas Vaz de Lima, carinhosamente conhecida por Minga, pelos funcionários e hóspedes, havia completado 117 anos em 15 de agosto.
Além de Minga e dos idosos que residem hoje no São José e João XXIII, pela instituição já passaram milhares de vida, desde 1928. A responsável pela instituição, irmã Carmela Casanova, que trabalha na Fundação Beneficente Lucas Araújo há 29 anos, conta que tudo começou com o tenente que leva o nome da entidade. Em 1915, o Tenente Coronel Lucas José de Araújo doou em testamento suas terras para a primeira entidade que criasse um asilo para crianças órfãs e desvalidas no município de Passo Fundo.
“O Lucas Araújo nunca pensou que os bens dele fariam tantos atendimentos, como está acontecendo. São 88 anos e muita gente, que todos os dias, usufruem dos bens dele”, acrescenta.
Estatuto do Idoso, um divisor de águas
As ILPs nem sempre foram como são conhecidas atualmente. A irmã conta que quando começou no abrigo, em 1980, a área construída era menor do que a existente hoje, enquanto as dificuldades eram maiores. Na época eram recebidos, na instituição, pessoas de todas as idades e de diversos municípios. “Quem era necessitado vinha de outros municípios para cá. Nós tivemos até cinco pessoas da mesma família. Um deles, chegou a morar 50 anos na instituição. Ainda hoje, nós temos um grupo de oito idosos que não tem familiares em função de terem vindo de outros municípios para Passo Fundo. Eles realmente não têm mais ninguém. Como foi que se ausentaram a gente nem sabe direito, pois não temos referência”, interpreta.
Tudo mudou quando, em 2003, foi criado o Estatuto do Idoso. O que antes era definido como asilo, passou a ser Instituição de Longa Permanência, os locais passaram a aceitar apenas pessoas a partir dos 60 anos e foi estabelecida uma série de direitos. Para a promotora de Justiça, Cleonice Aires, o Estatuto do Idoso foi uma normativa que surgiu com moldes semelhantes ao Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Antes do estatuto, de acordo com a promotora, o idoso estava, muitas vezes, inserido em uma organização familiar que o tratava quase que como uma criança.
“É um documento legal, com uma riqueza muito significativa de um projeto de uma nova vida, de uma nova concepção de idade, de cuidado, de direitos. Isso é muito interessante porque o mundo, de um modo geral, está envelhecendo. Há cada vez mais idosos, pois há um melhor atendimento de saúde, há mais consciência da autonomia dos idosos, da sua participação em sociedade. Enquanto no mundo, existe uma previsão para as próximas três décadas de duplicarem o número de idosos, no Brasil, esses números vão triplicar”, argumenta.
A expectativa de vida da população aumentou 41,7 anos em pouco mais de um século. Em 1900, a expectativa de vida era de 33,7 anos, dando um salto significativo em pouco mais de 11 décadas, atingindo 75,4 anos em 2014. As informações constam no livro Brasil: uma visão geográfica e ambiental do início do século XXI, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou esse ano.
Ainda, existe um cálculo que estima se a população é envelhecida ou não. Conforme a idealizadora e coordenadora do Balcão do Idoso de Passo Fundo, Denize Luz, se mais de 8% da população total do município for de idosos, esse município já começa a apresentar um processo de envelhecimento. “Passo Fundo, de acordo com o último censo, tem em torno de 196 a 198 mil habitantes. Estimamos que, desses, 24 mil são idosos. Dos 24 mil, há aproximadamente 400 idosos acolhidos. É uma população que oscila muito”, pondera a coordenadora.
“O Brasil precisa olhar para o seu idoso. Que hoje ainda é um público muito jovem, porque a partir dos 60 anos já é considerado idoso pela lei. Sobretudo, o Brasil tem de se preparar para aquele idoso que vai muito além da idade mínima do estatuto. Já que as pessoas estão vivendo mais tempo e com mais autonomia”, complementa Cleonice.
Esse olhar também trouxe novas concepções sobre a institucionalização dos idosos. Durante muito tempo se usou a palavra asilo. “A legislação foi mudando, e também pelo estudo desses espaços houve a necessidade da mudança de nomenclatura. Passamos [de asilo] para Instituições de Longa Permanência para Idoso (ILPI)”, enfatiza Denize.
“Até hoje, se você conversar com algum idoso ele, muitas vezes diz ‘olha eu faço qualquer coisa, mas não me coloca em um asilo’, pois há esse estigma. A palavra é muito pesada. Se pegarmos a origem da palavra asilo, ela está relacionada à questão do velho – aquele que não tem mais serventia –, igualmente, o asilo servia para os leprosos, loucos”. O asilo, de acordo com Denize, trabalha com a lógica da instituição total – um local que contém uma série de regras e a partir do momento em que se entra lá, é preciso seguir tais regras –, conceito de Erving Goffman explanado no livro Prisões, manicômios e conventos.
Conforme Goffman, “Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho de um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam urna vida fechada e formalmente administrada. As prisões servem como exemplo claro disso, desde que consideremos que o aspecto característico de prisões pode ser encontrado em instituições cujos participantes não se comportaram de forma ilegal”.