"Meu sonho era ser um menino de verdade"

Jovem é um dos 30 pacientes atendidos no Ambulatório de Identidade de Gênero de Passo Fundo, o primeiro no interior do RS

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Rafael sempre foi piá. Nunca duvidou disso. Na infância costumava andar sem camisa. Gostava de correr, de jogar bola. Ainda estava no pré quando sentiu seu coração bater mais forte por uma coleguinha. No entanto, algumas situações já o intrigavam profundamente desde muito cedo.

Uma delas era quando tinha de colocar roupas de menina, a exemplo das irmãs, para ir ao colégio ou passear na rua. A outra, e mais conflitante ainda, era ver a própria imagem no espelho e não se reconhecer naqueles traços femininos que começavam a surgir em seu corpo.

Hoje, aos 25 anos, a imagem refletida é motivo de orgulho. Os braços fortes e tatuados, a barba por fazer e o cabelo curto, indicam que a busca da tão sonhada sintonia entre o corpo e a mente está acontecendo.

“Assim como o pinóquio do filme, meu sonho era ser um menino de verdade, estou conseguindo” conta. A mudança no corpo de Rafael começou há poucos meses, graças ao tratamento hormonal realizado por uma equipe especializada no ambulatório de identidade de gênero da Unidade Básica de Saúde Nonoai, no bairro Operária, em Passo Fundo. Uma iniciativa pioneira no interior do Rio Grande do Sul, que já atende aproximadamente 30 pacientes transexuais.

Mas até chegar ao ambulatório, o caminho percorrido em busca de tratamento adequado foi longo e tortuoso. Após atravessar a infância sem entender o que se passava com seu corpo, aos 15 anos decidiu assumir sua identidade de gênero. A primeira providência foi cortar o cabelo bem curto. A segunda teve ajuda da prima. Ela o flagrou usando roupas de menino em casa e o incentivou para que saísse vestido daquela maneira na rua. A terceira, e mais difícil, foi contar para a mãe.

“Sempre fui piá. Só que eu não entendia. Não sabia que existia transexual. Falei pra minha mãe que gostava de menina, só disse isso. Sempre me tratei no masculino. Na escola me aceitaram bem com as roupas diferentes. Fui me sentindo mais feliz. Parei de ser agressivo. As pessoas falavam que eu era lésbica, não me sentia assim, me sentia piá mesmo” conta.

Em 2012, um jornal caiu em suas mãos trazendo a notícia de que em Passo Fundo já era possível fazer a carteira com o nome social. Ele correu e foi o primeiro da cidade a encaminhar o documento. Por ser uma novidade para os funcionários do Posto de Identificação, que ainda tinham dúvidas sobre os procedimentos burocráticos, teve de passar o dia todo lá esperando. Do apelido Rafa, em razão do nome que consta na certidão de Nascimento, a opção por Rafael foi natural.

O jovem já tinha um nome social, o carinho e o respeito da família e dos amigos, mas ainda precisava ir além. Precisava se livrar dos traços femininos que contrariavam seu gênero. É exatamente neste momento que a busca de Rafael, e de milhares de transexuais espalhados por todo o Brasil, torna-se um calvário. A terapia hormonal, até então, era realizada em apenas seis capitais do pais, e na cidade mineira de Uberlândia.

Rafael peregrinou sem sucesso por corredores de consultórios particulares e órgãos públicos de saúde. Fez contatos com secretarias de saúde, recebeu orientações desencontradas, abriu uma solicitação através da internet no sistema único de Saúde (SUS), mas a resposta só retornou muito tempo depois orientando que fosse a Porto Alegre. “É muito difícil encontrar um médico que te entenda” afirma.

Sem saber que a solução para o seu caso estava muito mais perto do que imaginava, o jovem decidiu entrar em contato com João Nery, o primeiro transhomem operado no Brasil. Morador da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, ele é considerado uma das principais referências no assunto. Além de realizar palestras e participar de debates em todo o Brasil, João criou 26 grupos secretos na página social do Facebook. São listas de advogados, médicos, psicólogos e psiquiatras, dos mais diferentes estados, empenhados em ajudar os trans. Um trabalho que lhe consome pelo menos 14 horas diárias diante do computador orientando e repassando informações para os cerca de 2,5 mil transhomens cadastrados em sua rede. Ele também é autor da autobiografia Viagem Solitária.

“Os trans estão completamente abandonados. A maioria se auto-hormoniza por conta própria. Para comprar a testosterona é preciso receita, isso dificulta o acesso. A maioria vive em depressão. Muitos não saem do quarto para não sofrer transfobia. Alguns se automutilam. Botam na cabeça do garoto que aquilo é errado, que é pecado. O adolescente vai introjetando a culpa, se não tiver pais compreensivos, que ajudem, pode levar ao suicídio. A sociedade não dá emprego, a não ser em telemarketing, porque não aparece. É uma luta não só individual, mas social. É preciso muita estrutura, não é fácil ser trans neste país” descreve João.

Rafael recebeu dois contatos dele. O telefone de um psicólogo, com o qual chegou a consultar e outro do Plural LGBT de Passo Fundo. Foi lá que um dos integrantes conheceu sua história e o encaminhou para o ambulatório de identidade de gênero. Uma dica que mudou a vida de Rafael e está mudando de pelo menos outras 30 pessoas.
“Eu corri tanto atrás e não encontrava um lugar que me entendesse. Estes dias teve uma palestra do Plural, peguei o microfone e falei que na minha primeira consulta no ambulatório, vi que a doutora Bruna me entendia. Ela queria mesmo me ajudar. Foi o melhor momento da minha vida. Chegar num lugar e encontrar uma pessoa que tinha uma formação e estava disposta a me ajudar. Vi que não era louco. As pessoas pensam que a gente é louco. Me olho no espelho e me sinto feliz. Vejo que estou no caminho certo depois de tanto tempo esperando” desabafa.

Há seis meses realizando tratamento com testosterona, Rafael se preparara para a cirurgia de mastectomia (retirada total da mama). Como a fila de espera no SUS é de aproximadamente três anos, ele pretende fazer a intervenção em clínica particular. O custo é de aproximadamente R$ 8 mil. Para conseguir o dinheiro, até rifar a guitarra está valendo. “O seio é o que mais incomoda, mais aparece. Eu sempre usei faixas, mas machuca. Vou rifar uma guitarra novinha minha. Cada amigo pegou 25 números, estão me ajudando” revela. Rafael também pretende se submeter a uma histerectomia, para retirada do útero.


Uma iniciativa transformadora

O Ambulatório de Identidade de Gênero de Passo Fundo, inteiramente ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu no início do ano passado, a partir da iniciativa da psiquiatra Bruna Chaves Lopes ( a doutora Bruna, citada por Rafael). Ela percebeu que havia uma população buscando, de maneira irregular, o encaminhamento para a cirurgia de redesignação sexual. Por outro lado, não tinha uma equipe de saúde preparada para avaliar a situação de cada um destes pacientes.

Bruna então começou a fazer a avaliação e constatou que o serviço poderia ser ampliado ainda mais. Segundo ela, há uma ‘fila gigante’ esperando para fazer a cirurgia em Porto Alegre, mas antes disso, o paciente tem de passar por um acompanhamento de pelo menos dois anos. “Nossa ideia era começar o tratamento hormonal, que já abranda muito o incômodo que eles passam em ter que lidar com um corpo que não reconhecem” explica.

O problema, no entanto, era encontrar médico preparado e disposto a conduzir a terapia hormonal. No início deste ano, um profissional chegou a iniciar o trabalho, mas logo se aposentou. A retomada e o salto do projeto ocorreu há cerca de dois meses, depois que um grupo de estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo decidiu assumir e conduzir o tratamento aos transexuais.

A provocação partiu da acadêmica Grabriela Koehler. Ela procurou o ambulatório para desenvolver a disciplina de atendimento na área da saúde mental e descobriu que havia esta carência. “A doutora Bruna me falou da necessidade e que estava tentando buscar alguém, mas ninguém aceitava” conta.

Gabriela então apresentou a situação para os colegas do curso. Juntos, procuraram o médico e professor Pérsio Ramon Stobbe, especialista na área de endocrinologia, que se interessou pelo assunto e aceitou o desafio. Para colocar o trabalho em prática, os alunos fundaram, em março deste ano, a Liga Acadêmica de Endocrinologia e Metabologia da Faculdade de Medicina.

Dentro do curso existem diversos projetos das ligas acadêmicas. Os estudantes se reúnem de acordo com especialidades que têm mais afinidade. O projeto tem de cumprir um tripé envolvendo ensino, pesquisa e extensão. No caso deles, a extensão passou a ser, a partir de agosto deste ano, o atendimento voluntário todas as tardes de sexta-feira, no primeiro Ambulatório de Identidade de Gênero do interior do Rio Grande do Sul. A Liga é formada por 16 acadêmicos, 14 deles da medicina e dois da nutrição.

“Um desafio enorme” definiu Stobbe sobre o projeto. O passo seguinte, segundo o médico, foi sentar com os acadêmicos e estudar todos os passos da reposição hormonal cruzada. As reposições devem ocorrer de forma adequada, seguindo um padrão, um protocolo, acompanhando os efeitos colaterais. Sem o atendimento do profissional, muitos acabam se auto-medicando às cegas, partindo de informações colhidas na internet. “Os alunos estão bem envolvidos. A importância básica é que estas pessoas tenham atendimento adequado” afirma.

Presidente da Liga, Caio Gabriel Garcia explica que o paciente, inicialmente, tem de passar pelo atendimento psiquiátrico no ambulatório. Se confirmada a disforia de gênero, ele é encaminhado para a equipe de endocrinologia e inicia a terapia hormonal. Para quem decide pela cirurgia, este processo é de pelo menos dois anos. Mesmo após a intervenção, a terapia com hormônios segue por toda vida.

“A grande maioria chega automedicado. Com tratamentos clandestinos, sem nenhum monitoramento ambulatorial. É uma situação grave, pode acarretar muitos riscos. Antes de iniciar a terapia hormonal, tem que excluir diversos fatores de riscos, situações que são incompatíveis com o tratamento. Por contra própria eles não têm essa balança” observa Caio.

O acadêmico reconhece a falta de respeito à população dos transexuais dentro da área de saúde. Na visão dele, os próprios médicos insistem no preconceito de não querer tratá-los. “Estes pacientes ouviram absurdos de pessoas que deveriam conhecer a condição deles, porque a disforia de gênero é descrita na literatura médica há muito tempo” observa.

Para ampliar o debate, os acadêmicos promoveram no final do mês passado, o Iº Encontro de Tratamento de Identidade de Gênero. Uma das convidadas, a psicóloga Bianca Soll destacou que a criança começa a reconhecer seu gênero a partir dos cinco anos. O papel dos pais nestes casos, é reduzir o sofrimento dela, não obrigá-la a exercer papeis sociais que não se identifica. Bruna diz que na infância é o olhar do adulto observando. Já na adolescência, elas sentem necessidade de falar sobre o que está acontecendo com o corpo e não encontram espaços. “É importante que possam conversar, porque quando vem as características sexuais secundárias, na puberdade, vai aumentando a ansiedade, não tem mais como negar, por isso, a importância do espaço” alerta.
Amparada em pesquisas, Bianca afirma que o índice de crianças que procuram serviços de saúde porque os pais percebem que elas têm comportamento de gênero variante, e que este comportamento vai persistir na vida adulta para uma transexualidade é de 6%. “Pode ser uma expressão lúdica, ou da sexualidade, um homossexual ou heterossexual são variações da sexualidade humana, nenhuma é melhor que a outra” aponta. A orientação aos pais é que procurem ajuda de um psicólogo ou psiquiatra. “O que adoece a criança, o adolescente e o adulto, é o estigma e o preconceito”.


Psiquiatra do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pioneiro e referência neste tipo de trabalho, e também professora de pós-graduação, Maria Ines Lobato, elogiou a iniciativa de Passo Fundo e reforçou a orientação para que o transexual permaneça por pelo menos dois anos em atendimento até reunir convicção sobre a cirurgia, que tem caráter irreversível. “Ela é uma adaptação não uma transformação de homem em mulher ou ao contrário. É como se um homem hetero tivesse um corpo feminino e sentisse vergonha dele” esclarece. O ambulatório de Identidade de Gênero Nonai, está localizado na rua dos Andradas, nº 165, bairro Operária. O telefone para contado é (054) 3317.4142.
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“Temos o sexo de nascimento, que pode ser masculino ou feminino. Temos a identidade de gênero, que é como eu me entendo. A identidade independe do sexo de nascimento. Temos também a orientação sexual, que é por quem eu sinto desejo. Tem várias correlações possíveis. Muitos chegaram a procurar ajuda particular e encontraram as portas fechadas. Eles nos agradecem por serem bem tratados. Isto é o mínimo que podemos fazer. Eles já vêm tão judiados, tão excluídos, não é nenhum mérito tratá-los bem. É uma coisa incrível”. Psquiatra Bruna Chaves Lopes

“O transexual é um público diferenciado, que conhece o que acontece com ele. Este assunto não é debatido com os filhos, com os adolescentes. Algumas pessoas acham que o trans é uma variante do gay. Temos que lembrar que sexualidade e identidade de gênero são coisas bem distintas. O trans é um paciente que lê muito. Chega aqui sabendo sobre os medicamentos, é bem questionador e disciplinado”. Presidente da Liga, Caio Gabriel Garcia


“O homossexual não tem problema com o próprio corpo. O maior desafio dele é ser aceito pelos outros. Já o desafio do transexual é ser aceito por si próprio, porque ele não gosta do corpo que tem. Eu odiava o meu corpo. Hoje me olho no espelho e gosto do que vejo. Eu nasci piá, tenho certeza, aconteceu alguma coisa de errado no processo. Já tenho nome social, quero poder trocar meu nome de verdade e andar por aí, livre”. Rafael, 25 anos.

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