Um crime ocorrido em Goiânia esta semana, em que o pai mata o filho e depois se suicida, reacendeu um tema que vem fazendo parte do nosso cotidiano: a intolerância. O pai teria matado o filho, por discordar de suas opiniões ideológicas. A repercussão do crime ganhou as redes sociais e as opiniões a respeito, novamente, inflamaram a discussão entre contrários e favoráveis, como se um crime tivesse prós e contras. É comum, para quem utiliza a internet, e, sobretudo, as redes sociais, constatar e ou participar de discussões que envolvem pontos de vista diferentes e que têm como consequência o fim de uma relação social.
Porém, essa intolerância ideológica não é recente, conforme analisam os especialistas. Para a psicóloga Maria Goreti Betencourt, essa questão está mais em pauta agora, principalmente em função da divergência de opiniões políticas, apesar de ser algo muito antigo ao longo da história humana. “Uma pessoa pensa de um jeito, a outra pensa de outro e então começam as discussões. Isso não é uma coisa nova, é algo que sempre existiu nas relações humanas. Só que a intensidade é maior agora até porque se visualiza mais coisas e através das redes sociais fica mais difundido. Então parece ser uma coisa que iniciou agora, mas na verdade não”, explica.
Se observado ao longo da história, o que há nos séculos mais próximos dos dias atuais, são as manifestações de intolerância do período do nazi-fascismo, conforme a perspectiva do doutor em Ciências Sociais, Benedito Tadeu César. Ele associa esse comportamento agressivo e o ódio à divergência ideológica como algo característico de movimentos que se assemelham ao fanatismo religioso. “O que aflora mais evidente nesse momento é a internet que atravessa fronteiras e que coloca, na frente da gente, coisas que talvez de outra maneira ficassem escondidas. É um movimento que aflora nesses momentos de crise, quando as pessoas ficam em busca de culpados para o seu desconforto. A gente sempre culpa o que é diferente, aquele que tem algum tipo de divergência”.
Esse movimento de intolerância que desperta nas redes sociais, é um comportamento típico do ser humano, que está associado com o egoísmo que impede de ouvir o outro, de acordo com a psicóloga Maria Goreti. “Esse é um comportamento narcisista, que não vê o outro como um outro sujeito. Que não permite que o outro seja como ele é. Eu quero que ele seja o que eu quero, eu quero que ele pense o que eu penso e ser ao contrário, eu não aceito mais ele. A chegar as vias de fato por exemplo, de eu bater em alguém, ou de chegar a matar alguém, como foi o caso desta semana”, diz.
Enquanto alguns observam a intolerância como mais latente neste momento da história contemporânea, há a diferença de opinião de quem pensa que ela já foi mais acentuada em outros períodos, ou ainda, de quem não analisa como mais ou menos intensa, mas mais visível em função da influência da mídia. Para o historiador Antônio Kurtz Amantino, no mundo contemporâneo há muito menos intolerância do que já se existiu. Segundo ele, o remédio que as sociedades encontraram para combater a intolerância - não para acabar com ela por completo, mas para diminuir a sua violência - foi a criação de regimes democráticos ou constitucionais pluralistas. Amantino utiliza como exemplo de períodos de grande intolerância o movimento religioso no século XVII, com o surgimento das igrejas protestantes, que foi responsável por milhares de mortes. Ainda, o historiador cita a inquisição católica que aplicava torturas e os regimes comunistas e totalitários que jamais permitiram a divergência política. “Ainda existem regimes políticos que são totalmente intolerantes, como por exemplo Coreia do Norte, ou a Cuba, que não aceitam opiniões divergentes. A intolerância é um comportamento natural no ser humano, mas que ameaça a ordem social”, completa.
Já o doutor em Comunicação Benami Bacaltchuk observa que nem em maior ou em menor intensidade, a intolerância ideológica se torna mais visível a partir do momento em que a mídia passa a falar sobre isso. “Durante um período, as mídias formais tinham um filtro, coisas que pudessem ter consequência social eram impedidas, eles se faziam autocensura. Não existe censura mais forte que a própria censura do editor, do dono da mídia”, salienta Bacaltchuk. Em contraponto, Benedito afirma que a intolerância dos dias atuais é responsabilidade da grande mídia no Brasil. “Isso tem sido produzido de maneira intencional. É o preço que pagamos pela atuação irresponsável das grandes mídias”.
O papel da internet
Uma destas mídias, citadas anteriormente, é justamente a internet. Nascida com propósito militar, a ideia inicial da internet era possibilitar a troca de informações entre bases, de acordo com o professor da UPF e doutor em informática, Adriano Teixeira. Hoje, de acordo com o especialista, “a internet é um conjunto de redes que conecta todo mundo a todo mundo com replicação destas conexões, ou seja, mesmo que um ponto nesta rede caia, a gente continua podendo se comunicar”. Sem necessitar a troca de olhares, ela facilita a manifestação, que conforme Teixeira, é livre, aberta, irrestrita e ganha o mundo logo após a publicação. “Não é culpa da internet. A gente precisa começar a observar a internet não como a culpada por bulliyng, pela intolerância, culpada por atos de racismo, mas como um instrumento potencializador. Ela potencializa aquilo que nós somos. O que temos de bom e o que temos de ruim também”, pondera. A internet, que vem como uma ferramenta que possibilita às pessoas a exposição de ideias, conforme o juiz da vara de Infância e Juventude de Passo Fundo, Dalmir Franklin de Oliveira Júnior. Segundo ele, o ponto crucial da internet é o conteúdo daquilo que se é publicado, e não o meio.
Para Amantino, a internet tem mais pontos positivos do que negativos, uma vez que está acabando com as algumas artimanhas, que antes eram feitas no escuro. “Ela está acabando com os oligopólios da imprensa, tornando a comunicação muito mais livre. Também há lixo na internet, há intolerância. Mas isso se combate com leis”, orienta.
O outro
Para que não haja necessidade em utilizar tais leis, os especialistas entrevistados por ON ressaltam a importância de respeitar a pluralidade e as diferentes opiniões. Sobre o movimento, que se percebe, de as pessoas tentando impor a opinião em debates, o professor Benami acredita que esta é uma questão complexa e utópica. “Nós somos imitadores das opiniões dos outros tentando fazer com que elas pareçam exclusivamente nossas. É preciso transferir sabedoria para que as pessoas aceitem a opinião dos outros. Tentamos ser autênticos e únicos e fazer com que a nossa opinião prevaleça, até que outras opiniões tenham liderança sobre nós”.
A filósofa Patrícia Ketzer alerta que a intolerância também está ligada àqueles que se julgam possuidores da verdade. “O intolerante se fecha ao diálogo, à escuta de outros pontos de vista, a tudo aquilo que difere de seu esquema conceitual e de seu plano de ação. Quem adota dogmas os defende com unhas e dentes e os impõe aos outros como se fossem verdades universais, porque de fato crê que são, ele exige que todos ajam conforme seus dogmas e, muitas vezes, está disposto a fazer uso de qualquer forma de violência para conseguir atingir esse objetivo, pois pretende que seus dogmas sejam universalizados”, diz.
Essa intolerância aliada a necessidade de impor a opinião se resolverá no momento em que as pessoas desenvolverem uma maior tolerância à frustração, conforme Maria Goreti. “O fato do outro pensar diferente de mim não desqualifica ele, e nem me desqualifica também. Eu posso continuar convivendo com ele, mesmo pensando diferente. Isso seria um exercício de humanidade. Eu acho que essa forma das pessoas funcionarem está tornando a sociedade mais violenta, mais agressiva, mais intolerante e esta é uma preocupação minha. Deveria se ter um processo melhor de educação, desde a base, que eu não vejo muita margem disso acontecer no futuro em função da maneira como as coisas estão se processando, eu tenho um pouco de receio de ver como essas coisas vão se concretizar. Em princípio, está ficando muito difícil. As relações sociais têm de ver um trabalho mais acentuado do que esta tendo hoje”, explana.
A questão jurídica
Quando a tolerância ao outro não acontece, a solução, ou o remédio, como citado por Amantino, é recorrer às leis. A constituição veta todo e qualquer tipo de manifestação que atente contra os direitos fundamentais, ou direitos humanos, conforme explica Franklin. “Parece que, lamentavelmente, alguns excessos têm sido cometidos e deve se buscar a responsabilização jurídica. As leis dão suprimento que podem ser utilizados para evitar esse tipo de lesão a direitos e se por ventura o direito foi violado, buscar um mecanismo de compensação é imprescindível. A questão é utilizar esses instrumentos jurídicos que estão a disposição”, orienta o juiz.
A filosofia da tolerância
A tolerância é um dos valores que floresce com os ideais modernos, de acordo com a filósofa Patrícia Ketzer. Ela explica, do seu ponto de vista, que tolerância não diz respeito a negação da intolerância, uma vez que ser intolerante é a primeira atitude do ser humano diante do outro. “É o respeito às diferenças. A aceitação de que a diferença é constituinte da própria humanidade. A tolerância se efetiva no diálogo. A tolerância é uma das virtudes a serem cultivadas pelo espírito humano para o bom convívio em sociedade”, argumenta.
Para ela, o diálogo é uma atividade formativa capaz de promover transformações em diversos níveis. “O diálogo é o oposto a violência, a violência surge quando o diálogo não se efetiva. Ter a tolerância como princípio de ação significa garantir a cada indivíduo a possibilidade de existência, e a defesa desta possibilidade, sem que isto signifique uma ameaça a qualquer outra manifestação política, étnica, moral, cultural, religiosa, etc”. O historiador Amantino cita o pensador austríaco Karl Popper, que enfatiza a seguinte questão: “a tolerância tolera tudo? A tolerância não tolera tudo. Existe algo que a gente não pode tolerar que é justamente a intolerância”. Por fim, a filósofa questiona os limites da tolerância, “o intolerante é digno de nossa tolerância? O defensor da tortura, da escravidão, o estuprador devem ser tolerados?”.
Caso Goiânia
A morte deste rapaz aponta para o limite de um cenário de crescente intolerância, conforme a filósofa Patrícia Ketzer. “É um caso extremo, entre muitos outros que temos vivenciado, como pais que assassinam seus filhos em função de sua orientação sexual. Não haverá melhora em relação a isso enquanto tivermos a legitimação desse tipo de postura por parte de autoridades de nosso país, que disseminam a intolerância e o fascismo em suas falas e continuam ocupando cargos públicos. Não podemos ter a esperança de que esse cenário possa melhorar enquanto não pudermos primar pelo diálogo e pelo debate nas escolas, já que esses têm insistentemente sido acusados de doutrinação. Precisamos primar por uma educação cidadã, que eduque para os valores universais da ética como: igualdade, justiça, liberdade, dignidade, solidariedade, democracia, respeito mútuo, direitos humanos e para a tolerância. Só assim essa realidade pode ser modificada”.
Para Amantino, o caso envolve fatores adversos, uma vez que nenhum pai mata um filho por divergência ideológica. “Acredito que a imprensa está errando ai dizer que foi por isso, acho que foi um estopim”, conclui. Já o doutor em comunicação questiona se o fato pode ser atribuído ao poder das mídias ou ao enlouquecimento das pessoas. “Há muito tempo pai mata filho. Por ódio, por inconsequência, por álcool, por droga. Nós não sabemos o que tinha por trás do comportamento do pai. Talvez ele tivesse alguma questão comportamental ou neurológica, eu não tenho nomes para isso. Ele talvez não tenha tido a intenção, mas ele não conseguiu se controlar na ação. Tu vai atribuir isso ao enlouquecimento das pessoas ou a influência das mídias? Esse é o ponto. A sociedade tem sempre, o que estamos vivendo, loucos e normais. O que é normal? O que é louco? Os valores mudam com o tempo e as mídias influenciam esses valores”, finaliza.