Um cartaz fixado em um dos pilares, no centro da sala, com a mensagem “Não rasgue os livros” resume o cuidado que o papeleiro Valdelírio Nunes de Souza, o Chicão, falecido há menos de um mês, tinha pelas letras. O homem que passou boa parte dos seus 72 anos de vida garimpando do lixo, obras literárias e didáticas para formar uma nova geração de leitores, montou uma biblioteca comunitária com um acervo de aproximadamente 12 mil volumes, em um galpão, às margens da BR 285, no bairro Valinhos.
No entanto, a herança e o exemplo deixados pelo catador aos passo-fundenses estão prestes a desaparecer. Sem recursos para custear as despesas da família, a viúva Antônia Lima Silva de Souza, 46 anos, encontrou na venda do acervo uma alternativa para driblar a crise. Aos poucos, as obras estão deixando as prateleiras e tendo a reciclagem como destino. “Fico sentida. Ele sofreu tanto para montar tudo isso. Esta biblioteca era a paixão da vida dele. A gente vinha enfrentando dificuldades desde quando ficou doente. Agora piorou ainda mais. Não tive outra saída” lamenta.
Num trabalho solitário, Antônia vai lentamente retirando os exemplares das prateleiras. Depois de armazenados em sacos de ráfia, ela os transporta em um carrinho de mão até a porta de entrada do galpão, onde ficam depositados até a chegada do caminhão da empresa responsável pela compra. A primeira leva foi negociada no início desta semana pelo valor, segundo a viúva, de aproximadamente R$ 300.
Atualmente Antônia divide o galpão com o filho, de 20 anos, e a nora, menor de idade. O rapaz trabalha em um cilo, nas proximidades e ganha, segundo a mãe, pouco mais de um salário mínimo. Mesmo não tendo recebido nenhuma ordem de despejo, ela também atribui a retirada dos livros pelo fato de o galpão pertencer ao Estado. “Uma hora vão pedir para a gente sair daqui. Onde vou colocar todos estes livros. As escolas não aceitam” afirma.
Além de livros, o acervo reúne centenas de revistas e Lps. A biblioteca também oferecia computadores aos usuários. Atualmente conta com apenas uma máquina em condições de uso. A estrutura montada pelo papeleiro passou a atrair estudantes das escolas do bairro. Amplamente divulgado pelos veículos de comunicação, a visibilidade transformou o projeto em um ponto de doação de livros.
Em reconhecimento aos serviços prestados, Chicão foi homenageado em 2015 pela Câmara de Vereadores, numa iniciativa do vereador padre Wilson Lill (PSB), com a medalha Grão Mérito Fagundes dos Reis.
Este ano, já enfrentando problemas de saúde e financeiros, a comunidade se organizou e realizou três campanhas para auxiliar Chicão. Na primeira delas, ele recebeu a doação de uma caminhonete Chevrolet, modelo C10, ano 1973, no valor de R$ 11 mil, para realizar seu trabalho. O veículo, segundo a viúva, foi repassado ao neto de Chicão. Em outras duas, a mobilização foi por alimentos e por uma poltrona, após ter sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC). As ações foram propostas pelo grupo de internautas do Facebook “Por uma Passo Fundo Melhor: Reclame Aqui”.
Chicão vivia de uma aposentadoria e da venda de material reciclável. Ele deixou três filhas. Presidente da Associação Passo-fundense dos Papeleiros, durante 35 anos, comandou a festa de natal dos filhos dos papeleiros, distribuindo brinquedos e alimentos doados pela comunidade. “O pessoal do bairro quer realizar a festa este ano, vamos ver se sai. Sem ele fica difícil” diz Antônia.
Mobilização nas redes sociais
A notícia sobre o fechamento da biblioteca de seu Chicão, repercutiu nas redes sociais, principalmente pelo Facebook. Presidente da Academia Passo-Fundense de Letras, a professora Dilze Cortese fez o seguinte comentário. “A biblioteca do Chicão não pode desaparecer. A comunidade usa a mesma. É uma maneira daquela população ter acesso a livros e leitura e continuar com o nobre trabalho do Chicão, preservando sua memória. Fazemos parte da Capital Nacional de Literatura, por isso, as bibliotecas devem se multiplicar e não desaparecer. O exemplo que o Chicão nos deixou deve se multiplicar.
Já para o professor de língua portuguesa, Ironi Andrade, uma das alternativas seria a criação de um museu com todo o acervo da biblioteca. “Eu, como cidadão comum, fico entre penalizado e constrangido. Afinal, isso representará uma perda - sentimental, histórica e cultural - irrecuperável e vergonhosa a uma comunidade que faturou alto, graças à nobreza da atitude do recém-falecido, graças também à repercussão midiática que o fato gerou. De minha parte, acho que tudo aquilo que ficou - livros, medalhas das incontáveis homenagens por ele recebidas, documentos e um enorme volume de quinquilharias que lá existem - mereceria ser transformado em o "Museu do Papeleiro Chicão" comentou em sua página.
Por telefone, o vereador Wilson Lill, autor da homenagem, ficou surpreso com a notícia sobre a atual situação da biblioteca. “Chicão deixou uma grande herança para Passo Fundo, uma demonstração de amor à cultura e aos livros. É uma pena que está se perdendo. Durante o velório dele, conversei com os familiares e marquei uma visita para a próxima terça-feira. Vou me inteirar dos fatos e avaliar o que pode ser feito” disse.