“Eu fiz uma história: Eu trabalho a semana inteira. No fim de semana, eu convido o cunhado para jogar uma sinuca no bar da esquina. Estou lá, acabo bebendo, quebrando o taco no lombo do cunhado, brigamos, volto para casa, bato na mulher, dou uns trocados para minha filhinha ir lá na esquina buscar mais uma garrafa para mim. Para mim, isso é o álcool. O álcool faz tudo isso aí. Ele destrói mesmo. Tu perde o bom senso”. Essa é a explicação de R.S., hoje em reabilitação, sobre os malefícios do álcool.
R.S. começou a beber ainda na adolescência. Hoje, aos 58 anos, a memória falha e ele não lembra com precisão das datas. Desde a época, o uso era recreativo. No início da vida adulta, ele desistiu de uma faculdade de Arquitetura e aventurou-se na agricultura. Lá, em uma lavoura do Mato Grosso, bebia no fim do expediente com os colegas de trabalho. Também ingeria etílicos em casa, com a ex-esposa. “A gente morou 15 anos em uma fazenda e tínhamos o costume de beber quase todo dia. Não tinha vida social nem nada, então no fim do dia fazíamos uns aperitivos e bebíamos whisky”, completa.
Mas o álcool demora a mostrar-se como potencial fator danoso ao ser humano. A psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS) do município, Oane Fáccio, explica que pode levar anos para causar vício. “É muito variado. Depende de cada pessoa. Geralmente tem um potencial de causar dependência, mas não tão rápido quanto, por exemplo, o crack”, analisa.
Com R.S. não foi diferente. Após anos ele percebeu sua dependência. “Comecei a não voltar para casa. Deixava ela sem carro, com as crianças para levar na escola. Eu bebia de noite e amanhecia bebendo. Esquecia deles. Aí foi que ela pediu a separação. Não aguentou mais. Perdi a família por causa do álcool. Me dou com os filhos, com a ex-esposa, mas nos separamos. Tudo por causa do álcool”, confessa.
A situação se arrastou até o dia em que perdeu a memória embriagado. Foi neste momento que percebeu que precisava de ajuda e chegou até o CAPS - um serviço especializado em saúde mental que atende pessoas com problemas de correntes do uso ou abuso de álcool ou drogas, visando a reabilitação e reinserção na sociedade.
Ao buscar o centro, R.S. conta que não deve dificuldade para aceitar o vício. Mas este não é o cenário mais comum. A assistente social do CAPS Marilan Fontana esclarece que o alcoolista tende a negar ou minimizar a doença. “A maior dificuldade no tratamento é a questão da negação, as vezes tem muito preconceito. Muitos têm vergonha de dizer que vêm fazer tratamento para isso porque a questão cultural é muito forte nesse sentido. O alcoolismo não escolhe a classe social, mas há a questão cultural. Muitos começam a beber ainda na infância, com familiares. Tem influência genética e comportamental”, elucida o psicólogo Rafael Alam.
Não existe cura
Doença sem cura, o tratamento é contínuo. R.S. é atendimento no centro desde 2011. Ao falar sobre a abstinência, ele vacila. As vezes, têm alguns deslizes. “Tomo uma latinha de cerveja, de vez em quando. Destilado eu nunca mais tomei. Eu saio de mim. Para mim a pior droga é o álcool”, explica.
São aproximadamente 290 atendimentos por mês no centro. As desistências são recorrentes. Marilan explica que são vários casos: “tem os pacientes que fazem há algum tempo e tem aqueles que abandonam no meio do caminho por várias questões: por não se considerarem doentes, por problemas familiares, relacionados a trabalho, enfim, problemas sociais. Alguns abandonam o tratamento e voltam a beber. Outros fazem o tratamento direito, mas têm aquele deslize. Eles têm recaídas. O importante é que eles sigam tendo acompanhamento”, enfatiza. Para o paciente, o CAPS é como um compromisso. Ele é atendido duas vezes por semana e se sente bem pelo tratamento. R.S. ainda tem dificuldades para realinhar a vida social.
Evitar o primeiro gole
Diferente de R.S., João (nome fictício) conseguiu parar a tempo de não perder a família. “Parecia que eu tinha que beber para me enturmar. No começo era só de vez em quando e a coisa foi se aproximando e eu fui cada vez me afundando no alcoolismo. Cada vez tinha que beber mais. A gente não se da por conta. A minha esposa começou me cobrar. Eu conhecia grupos de Alcoólicos Anônimos, mas achava que não era para mim, que eu não era bêbado”. Com a pressão da esposa, ele decidiu procurar o grupo. “Foi ali que eu tive a minha salvação”, alega João, se referindo ao AA.
Em Passo Fundo, o Alcoólicos Anônimos começou em 1977. São seis grupos que realizam reuniões durante noites distintas. O grupo se torna unido por um objetivo comum, já que, nas palavras de João, “muda o tipo de bebida, muda o lugar em que se bebe. Mas o inferno, no fim, é igual para todo mundo”. O pensamento que poderia sintetizar o intuito do grupo fica em uma luminária, na parede da casa, que abriga o grupo: “evitar o primeiro gole, de 24 em 24h”. Um dia de cada vez. Esse dia de cada vez, em que João ficou sem beber, aos poucos se transformaram em anos. Com o tempo, a vontade de beber foi passando. Integrante do grupo a mais de 30 anos, ele continua participando do AA com um sentimento de gratidão pelo grupo e, ao mesmo tempo, compromisso de continuar ajudando quem por lá chega, em um momento de fragilidade. “Eu venho, não porque tenho medo de beber, eu me sinto bem aqui, eu amo. Isso aqui é vida, é algo que trouxe vida nova a mim e minha família”, expõe João.
Procure ajuda
“A doença é incurável, progressiva e fatal. Que pode levar a loucura ou a morte prematura”, o trocadilho de João, expressa a gravidade e a importância de falar sobre a doença. Por isso, neste sábado (18) é comemorado o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. A data traz o alerta para a doença, que traz malefícios a saúde física e mental do usuário e também provoca danos a quem convide com este alcoolista. “Não é só o prejuízo do indivíduo. Acaba envolvendo todo mundo ao redor. A família, que muitas vezes acaba adoecendo junto e mais as pessoas do convívio da sociedade, trabalho”, enfatiza a psiquiatra Oane Fáccio.
Os sintomas que devem ser observados em alcoolistas incluem, conforme Oane, a necessidade de ingerir álcool, tremores e dificuldades para desempenhar atividades do dia a dia. Náuseas, vômitos, agitações e ou agressão também podem estar associados a doença. Em suspeita da doença, busque ajuda.
O CAPS - localizado na Rua Capitão Eleutério, nº 309, bairro Centro - atende de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. O telefone para contato é o (54)3314-7721. O AA realiza reuniões em noites intercaladas, nos seis grupos. O telefone para contato é o 3311-9365.