Do Senegal, mulher define como 'triste' abordagem contra o marido

Sem trabalho e com mercadorias apreendidas em duas ações, imigrante depende da solidariedade dos amigos

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Khadim Diakhate, 33 anos: ?EURoeEstamos aqui para trabalhar, mas não tem mais serviço na obra?EUR?Khadim Diakhate, 33 anos: ?EURoeEstamos aqui para trabalhar, mas não tem mais serviço na obra?EUR?
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As cenas registradas do momento em que fiscais da prefeitura de Passo Fundo e policiais militares apreenderam as mercadorias do senegalês, Khadim Diakhate, 33 anos, numa abordagem polêmica, no centro da cidade, semana passada, rodaram o mundo pelas redes sociais e chegaram até a esposa dele, no Senegal. Misturando algumas palavras de português com o Woloff, dialeto usado por eles, o imigrante resumiu o sentimento da mulher. “Triste, ela ficou muito triste”.

A história de Khadim é a mesma de milhares de senegaleses que deixaram o país de origem em busca de trabalho e renda no Brasil. Em Passo Fundo, a onda de migração iniciou em 2009. A agilidade para encaminhar o pedido de permanência no país, na delegacia da Polícia Federal, aliado às ofertas de trabalho, tornaram o município, ao lado de Caxias do Sul, um dos mais atraentes para os africanos que aportavam no Brasil, principalmente pelo estado do Acre. Com a economia aquecida, a construção civil, e a grande quantidade de vagas oferecidas pelos frigoríficos da região, absorveram o maior volume da mão de obra estrangeira.

Em março de 2014, eles criaram a Associação Passo-fundense de Senegaleses. A entidade nasceu tendo entre vários objetivos, melhorar a qualidade de vida e integração com a comunidade. Também menciona em sua ata de criação, palavras como paz, harmonia, amor e liberdade. Princípios presentes na Declaração Africana dos Direitos Humanos, repassada oralmente de geração para geração desde 1922.

Atraído pela possibilidade de trabalhar e mandar dinheiro para a família, Khadin partiu há dois anos de Senegal, tendo Passo Fundo como destino. Para trás ficaram a esposa e os dois filhos, de seis e dois anos. Ao chegar na cidade, as expectativas criadas a partir dos relatos de quem já estava aqui, se confirmaram. O senegalês, então com 31 anos, conseguiu emprego na construção civil e começou a organizar a vida. Dividindo uma casa com outros cinco amigos, seguia à risca sua meta. O salário era suficiente para custear as despesas e ainda sobrava uma parte para ajudar a família no Senegal.

Situação que se manteve apenas por cinco meses. Com os reflexos da crise econômica, os investimentos foram minguando e as vagas encolhendo. Demitido, Khadin conseguiu emprego na área de montagem de estruturas metálicas, mas por um tempo ainda menor: apenas três meses. “Muito complicado, não tem mais serviço na obra” diz.
Desempregado, tentou voltar para o mercado de trabalho formal. Sem sucesso, a alternativa foi buscar o sustento vendendo mercadorias na rua. Com os R$ 3 mil que conseguiu juntar, viajou a São Paulo e investiu na compra de óculos de sol, bonés, capas de celulares, fone de ouvido e relógios.

Khadin se reorganizou e voltou a cumprir seu objetivo. Com a renda diária de até R$ 50, enviava entre R$ 600 a R$ 800 para a família no Senegal, até que duas abordagens, num intervalo de três dias, fez com que o senegalês voltasse a estaca zero.
A primeira delas ocorreu na segunda-feira passada. Ele contou que estava almoçando em um restaurante, quando um fiscal entrou no estabelecimento e apreendeu toda a mercadoria, 54 óculos. Com os produtos que havia deixado em casa, retornou às ruas. Dois dias depois, Khadin acabou sendo novamente alvo da fiscalização. “Estava indo para casa, quando o fiscal passou e puxou minhas mercadorias. Tentei segurar para não perder tudo, mas perdi” relata, com a ajuda de um intérprete, também senegalês.
Conforme imagens registradas em um vídeo, houve intervenção de policiais militares. Populares tentaram interferir a favor do imigrante e foram repreendidos. “Eles não me bateram, também não bati em ninguém” conta o imigrante.
Khadin, e outras duas pessoas, um homem, e um menor, que se envolveram na ação, foram algemados e levados para a Delegacia de Pronto Atendimento da Polícia Civil. Segundo relato de testemunhas, a delegada que atendeu o caso, solicitou aos PMs as chaves e abriu as algemas dos três.
O caso foi registrado como lesão corporal. O fiscal alegou ter sido agredido pelo senegalês e que sofreu um corte no braço, provocado pela haste de um óculos. Já o PM contou ter levado uma cotovelada e um empurrão de um popular, além de sofrer ofensas morais. Ambos pediram pela representação dos acusados.

Assim como a esposa, Khadin disse ter ficado muito triste com o episódio. Sem emprego e sem as mercadorias para vender, ele não tem de onde tirar o sustento. Para se manter, conta com a solidariedade dos amigos. De um deles, inclusive, recebeu R$ 300 para enviar à família. “Depois eu dou um jeito de pagar. A situação ficou muito difícil agora. Estou procurando emprego, tentando voltar para a obra, mas não tem vaga. A gente só precisa de trabalho” resume.

MP vai apurar o caso

A Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, que acompanha o caso desde o início, entregou ontem, ao Ministério Público Estadual, um dossiê contendo material publicado na imprensa, com a repercussão, e o vídeo da abordagem. A intenção é que o MP apure os fatos e tome as medidas necessárias, se comprovar irregularidades.
Representante da Comissão, Paulo César Carbonari entende que a abordagem foi desproporcional. “Aplicaram uma gravata no imigrante. O policial investe contra outra pessoa com o cassetete”, diz. Ele também levanta alguns questionamentos sobre o fato de a mesma pessoa ter sido abordada duas vezes em um intervalo de apenas três dias. “Me pergunto o seguinte: as outras pessoas que estavam e continuam vendendo na rua, não precisam de abordagem? Qual o critério? Por que a fiscalização já chegou acompanhada da Bike Patrulha? Qual é a política do município, uns podem, outros não? São questões de responsabilidade do poder público” enfatiza. Carbonari diz que a Comissão vai continuar acompanhando de perto e espera que a acusação de lesão corporal contra o senegalês e os dois populares envolvidos, não seja levada adiante.
O advogado, Luis Alfredo Gallas, que atua para os senegaleses, disse que as mercadorias são adquiridas por eles em São Paulo, portanto, tem origem. “Acontece que um vai lá e compra para quatro ou cinco e coloca numa nota só, o que dificulta depois a comprovação” afirma. O advogado defende a flexibiliza ou mudanças na lei que regulamenta a venda de produtos nas ruas.

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