Uma proposta inusitada esteve na pauta da sessão da Câmara da última quarta-feira (8). Protocolado pelo vereador Alex Necker (PCdoB), o projeto de lei visa regulamentar a destinação de cadáveres para fim de estudos e pesquisas científicas. O método – previsto por uma lei federal de 1992 – é comum para o estudo do campo da anatomia nas faculdades de Medicina e demais áreas da saúde. De acordo com o vereador, o que motivou a criação do projeto foi a manifestação de professores e profissionais que atuam nas instituições de ensino de Passo Fundo. “Até pouco tempo atrás, a cidade tinha apenas uma instituição que manifestava essa necessidade. Com o crescimento do ensino superior nas áreas de medicina e outras ligadas a saúde, tornou-se importante ter um regramento municipal que esteja alinhado a lei federal”, citou ele.
Segundo ele, a intenção é disciplinar a forma de como estes materiais serão disponibilizados às instituições. “Como não existe a legislação municipal, não temos um regramento de, por exemplo, definir para quem vai ser destinado os corpos. A ideia é criar uma forma de rodízio ou através de sorteio, onde participam as instituições que demonstrarem interesse”, explicou o líder do governo. “Num primeiro momento pode parecer estranho, mas para que tenhamos bons profissionais na área da saúde é necessário que haja um melhor acesso a este material”, pontuou.
Hoje Passo Fundo conta com três cursos de Medicina. Na Universidade de Passo Fundo (UPF), o laboratório de morfologia conta com 15 cadáveres para estudo dos alunos. O Instituto Meridional (IMED) conta com cinco corpos e a Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS), com nove.
O que diz a lei
A lei federal prevê uma série de exigências até que o cadáver seja totalmente liberado para uso de estudo. O processo inicia no Instituto Médico Legal (IML), que recebe o corpo. Caso ninguém o reclame dentro de 30 dias, ele poderá ser utilizado pelas escolas de medicina. O ideal é que a morte do indivíduo tenha sido natural, por exemplo. Já na posse do material, a faculdade é obrigada a publicar em meios de comunicação de circulação estadual, por pelo menos 10 vezes, a localização do cadáver e suas características (altura, cor de pele, se tem tatuagens, marcas, etc). Se nenhum familiar reclamar a falta do corpo, os laboratórios têm amparo legal para utilizá-lo. Caso contrário, a devolução é obrigatória – e não existe prazo para isso: se um familiar descobrir o corpo a qualquer tempo, ele tem o direito de levá-lo, caso assim julgar necessário.
O que defende o projeto
O texto apresentado pelo vereador não prevê mudanças na forma de como a lei é executada hoje. A única diferença é que seja delimitada uma espécie de convênio com as instituições interessadas. A ideia inicial é que os corpos que chegam no município não sejam sempre deliberados para apenas uma instituição, mas para todas, em sistema de sorteio ou rodízio, por exemplo. Outra questão sugerida diz respeito aos ossos humanos: aqueles armazenados em ossários de cemitérios públicos ou privados, provenientes de cadáveres não reconhecidos poderão ser doados para pesquisa. E Alex Necker ressalta: é proibido qualquer tipo de comercialização tanto de cadáveres quanto de ossos. “Fica proibido qualquer tipo de venda dos cadáveres e dos ossos, aplicando aos infratores as devidas penalidades legais e judiciais”, pontuou ele.
Opiniões
De acordo com o professor da Morfologia da UPF, Gustavo Kura, todos os corpos recebidos na instituição chegaram por dois meios: ou por doação em vida, ou por não reconhecimento, a partir da destinação legal prevista. A universidade está conveniada com o Instituto Geral de Perícia (IGP), que destina material resultante de perícias – como cadáveres e peças anatômicas – para fins de estudo. “O material resultante de perícias será fornecido conforme termo de convênio firmado entre o IGP e as universidades, não implicando, por exemplo, na questão interestadual”, como destacou a diretora do Departamento de Perícias do Interior (DPI), Marília da Costa Ribas. Em resumo, isso significa que a ideia de que os cadáveres encontrados aqui deveriam migrar para outro estado, na busca por evitar um possível reconhecimento de familiares próximos, por exemplo, é mito. Os cadáveres são encaminhados para as universidades conveniadas – independente do local de onde se encontram. Não há regra para isso e não existe nada específico a respeito na Lei Federal nº 8.501/1992, que legisla sobre o assunto. No geral, o IGP possui convênios firmados com a UPF, a nível local, e outras universidades da região de Santa Maria, etc.
Para conseguir corpos, a IMED organizou uma campanha de recebimento de cadáveres através de doações. Ela também estabeleceu um convênio de cooperação científica com universidades da região sul. Para a coordenadora do curso de Medicina, Raquel Scherer de Fraga, um rodízio seria benéfico na cidade. “Na medida em que se organiza no plano de Passo Fundo o recebimento de cadáveres que serão utilizados em atividades científicas”, destacou. Algo semelhante acontece na UFFS, como afirmou o professor e diretor da unidade, Vanderlei Farias. “Existe uma legislação específica que regra o uso de cadáveres para fins científicos e obedecemos à risca todos os critérios”, comentou ele, que opinou positivamente sobre o projeto que tramita na Câmara. Segundo o diretor, todos os cadáveres presentes na instituição hoje foram doados por outras universidades. Um exemplo é a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que possuía cadáveres suficientes para estudo de todos os alunos e pôde ceder alguns à UFFS. Outra parte foi doada por familiares. “A família tinha interesse em doar para este fim específico e assim foi feito. Temos também uma campanha de doação de cadáveres e já divulgamos para que todas as pessoas saibam. Muitas vezes existem famílias sem condições de fazer o funeral e querem doar, então recebemos estes corpos”, explicou Vanderlei. A UPF também recebe este tipo de doação. Interessados podem entrar em contato com as universidades e se informar sobre os procedimentos necessários. No geral, a doação envolve o preenchimento de um termo que oficializa a doação. O documento deve ter reconhecimento de firma da assinatura em duas cópias: a primeira fica com a universidade e a segunda com a família.