Cejusc: por um judiciário humanizado

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Em cima da mesa redonda está um vaso com flores do campo; água, café e chá. Na porta, o enfeite sinaliza as boas vindas. Com características um pouco diferentes de outras tantas salas do poder Judiciário, este é o lugar destinado para resolver, mediar e conciliar os mais variados conflitos possíveis dos cidadãos de Passo Fundo. São necessários sete andares do Fórum até chegar ao ponto de atendimento do Cejusc – o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania. Este foi o caminho percorrido por Helena*, mãe de Cláudia* e Andressa* há cerca de seis meses. Os nomes fictícios servem, também, para expôr uma particularidade do Centro: confidencialidade é o cerne de tudo dentro do Cejusc. Nada dito dentro das sessões é exposto – nem mesmo nos relatórios dos conciliadores/mediadores ou nos termos de acordo entre as partes. Esta foi a particularidade que ajudou mãe e filhas a aceitar e resolver o problema que tinham no relacionamento com o pai, Marcelo*, antes de toparem participar das sessões de mediação. “A princípio mexer com estes conflitos causa um pouco de medo, mas quem nos atendeu aqui nos deixou muito a vontade”, conta Helena. Previsto pelo novo Código de Processo Civil brasileiro – atualizado em 2015 –, o atendimento de conciliação e mediação serve como um rompimento de muitos paradigmas dentro das relações sociais e da própria área do Direito. Todas elas serão explicadas agora, a partir da experiência desta família no Cejusc Passo Fundo.

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Tentativa por via judicial

Antes de ir para a mediação, a família estava envolvida em um processo judicial tradicional: a grosso modo, a ação é protocolada, segue adiante com auxílio de advogados, vai a julgamento e recebe a sentença de um juiz. No meio do caminho, no entanto, o juiz entendeu que a solução não deveria se dar desta forma: uma conversa franca e aberta entre as partes seria suficiente para dar um desfecho ao processo. Este tipo de ação – a que já tem um processo judicial em andamento – é a mais comum no Cejusc. Até hoje já foram registradas 968 conciliações e 90 mediações processuais, ao lado de 53 conciliações e 46 mediações pré-processuais – que são as que envolvem a vontade de resolver o conflito antes mesmo que se ingresse com uma ação judicial.

E é exatamente esta a meta do Cejusc: fazer com que as pessoas envolvidas em conflitos procurem pela conciliação ou mediação antes mesmo de ingressar com uma ação na Justiça. “É preciso compreender que o ajuizamento de uma ação para solução de um conflito deve ser a última instancia”, começa o juiz responsável pelo Centro, Átila Barreto Refosco. A ideia é que exista um empoderamento das partes. Isso porque muitas situações não precisariam necessariamente de um processo judicial para serem resolvidas. Na mediação e conciliação, a resolução do conflito pode estar mais próxima – e, principalmente, ser mais efetiva – com ajuda de uma atitude bem simples: a do diálogo. “Quando é o juiz que dá a sentença, ele está impondo algo. Decisões de juízes não se equiparam a uma conciliação ou mediação porque a pessoa que recebe algo imposto já não recebe de boa vontade, já que ela não pôde participar desta construção”, explica ele. Isso também mostra uma outra faceta dos processos judiciais tradicionais: com uma sentença, o juiz termina o processo – mas não necessariamente termina o conflito. “Por mais bem qualificada que seja a sentença, ela nem sempre vai terminar com o problema. O processo sempre termina com a sentença, mas o conflito não necessariamente”, completa ele.

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A abordagem

Primeiro, Helena, Cláudia, Andressa e Marcelo sentaram-se todos juntos ao redor da mesa para entender melhor como funcionava o Cejusc e de que forma ele poderia servir para solucionar o conflito da família. “Nos explicaram que a ideia era melhorar o nosso convívio e que não haveria julgamento”, lembra Cláudia, a irmã mais velha. O fato de 'não haver um julgamento' já é um detalhe que interfere muito na maneira de como as coisas serão conduzidas durante as sessões. “Os mediadores e conciliadores não são juízes. Eles não vão impôr uma solução, mas sim atuar de uma forma imparcial e auxiliar no diálogo entre as partes”, explica a supervisora do Cejusc Passo Fundo, Saionara Marcolan Dal Paz. Além disso, conciliador e mediador jamais poderá atuar como testemunha – exceto em caso de notícia de crime. Com o pacto de confidencialidade e o ato voluntário de participação – a pessoa é convidada a participar das sessões, e não intimada – já é criado um vínculo implícito de confiança entre as partes.

Durante a sessão, o momento de fala está aberto a todos – assim como o de escuta. No decorrer do processo, os mediadores e conciliadores contam com ferramentas para entender e tentar solucionar os conflitos ali expostos. Estas técnicas são ensinadas em uma formação específica. “A construção de um resumo dos casos é uma das ferramentas que utilizamos. Às vezes existe um conflito e várias perspectivas. Tentamos aproximar as visões e devolver para as pessoas de uma forma neutra; tirando as asperezas e auxiliando as pessoas a tirarem opções de solução a partir de seus reais interesses”, explica Saionara. Além disso, os mediadores e conciliadores também conversam com os envolvidos em sessões individuais. “Fizemos um encontro todos juntos e depois duas rodadas de conversas sozinhos”, lembra Cláudia. Segundo a adolescente, num primeiro momento houve receio, já que já havia se tentado estabelecer um diálogo com o pai antes das sessões de mediação. “Achamos que não ia ter resultado: nós já tínhamos falado antes e nada tinha ajudado. No fim nos surpreendemos. Não sei se a situação era diferente, se ele ou a gente estava aberto de uma forma diferente, mas as conversas acabaram ajudando. Todos nos abrimos, ele aceitou dialogar e todos nos entendemos”, conta a adolescente.

O observador

Na sala, durante as sessões, não estão só as partes envolvidas e os conciliadores/mediadores. De fora, um observador fica atento à movimentação dos condutores da reunião. No caso da conciliação, o momento é reservado para um conciliador e um observador; e na mediação, são dois mediadores e dois observadores. “A ideia é que eles observem a postura do colega que está envolvido na conciliação/mediação – e não no caso em si. Isso ajuda a dar um feedback de comportamento entre eles. A intenção é que o outro repare pontos da condução do outro para que haja uma melhoria constante no trabalho”, explica Saionara.

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Sentimentos validados

A intenção da mediação e conciliação é olhar através do papel, das leis e limitações de um processo judicializado. Por isso se diz que ali se leva em consideração os sentimentos das partes – e não somente a legislação já pré-determinada. “Os sentimentos têm importância. Muitas vezes as pessoas abrem um processo por vingança ou mágoa, por exemplo. É preciso que entendam que existem outras formas de resolver isso”, comenta o juiz Átila. Por isso, outras ferramentas utilizadas são a Inversão de papeis e o Teste de realidade. “Buscamos fazer com que as pessoas se coloquem e tentem olhar a situação pela perspectiva do outro, além de ver se aquilo que pedem é possível de ser cumprido. Fica mais fácil cumprir um acordo se as pessoas fizerem este exercício”, conta Saionara.

Para este trabalho até o tom de voz precisa ser usado com cuidado. No sétimo andar do Fórum, todos são tratados da mesma forma: chamados pelo primeiro nome, convidados a comparecer e, mais que isso, convidados a ficar. As mesas de formato circular não denotam ar de superioridade para nenhum dos componentes ali presentes. A solicitação de uma nova sessão é sempre uma alternativa. E a confidencialidade entre mediadores e conciliadores é regra.

Estes aspectos foram essenciais para que o diálogo reinasse novamente entre os integrantes da família de Helena*. “Alguns questionamentos ajudaram a nos fazer entender coisas que não víamos antes, porque eu já tinha uma ótima estabelecida de pensamento. Essa visão diferente, os questionamentos, me fizeram pensar de uma forma nova. Isso ajudou bastante; ter uma posição nova sobre o problema nos ajudou a encontrar uma solução”, termina Cláudia.

O curso

O trabalho de mediação e conciliação é totalmente voluntário. Até existe um debate no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que fala sobre uma possível remuneração destes representantes, mas nada saiu do papel até o momento. A última notícia era de que havia sido aprovada uma minuta com critérios de remuneração – porém seu conteúdo nunca se tornou público. A remuneração está prevista no artigo 169 do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) e no artigo 13 da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015). No total, 24 pessoas – com ensino superior completo há pelo menos dois anos – podem participar do curso. As aulas começam com uma formação teórica – padronizada pelo CNJ – e segue para a parte prática. No início, os mediadores e conciliadores são acompanhados pela supervisora. No decorrer do tempo, assumem o comando das sessões.

Eu concilio, tu medeias, eles resolvem

Em uma mesa redonda, quatro mediadores do Cejusc Passo Fundo falam mais sobre o trabalho. Todos são advogados e também mediadores, formados pela segunda turma de Passo Fundo.  Segundo eles, as mediações mais realizadas são por conta de cobranças de dívidas ativas sobre serviços prestados, envolvendo valores pequenos. Brigas entre conhecidos e de âmbito familiar também são muito comuns. Para eles, esta é uma das formas mais eficazes de ajudar a desafogar o judiciário passo-fundense. “É também uma maneira mais rápida de solucionar um problema que mais simples, deixando situações mais complexas para os juízes. Isso, antes de tudo, é uma maneira de desafogar o sistema”, declarou o mediador, Felipe Leso. Hoje são mais de 96 mil processos jurídicos em andamento no Fórum de Passo Fundo. Para que este número diminua é preciso uma mudança cultural. “As pessoas em geral querem demandar – e não conciliar. Aqui tudo acontece ao contrário: tentamos empoderar e dar autonomia para que as partes resolvam seu conflito  sem a necessidade da sentença de um juiz. Aqui você dialoga”, diz a também mediadora, Simone Assunção. “Ás vezes não é só uma questão de lei, mas de algo que a pessoa precisa expôr. E é isso que ela vai dizer que vai resolver o conflito. A nossa função é mais escutar e dar um direcionamento”, complementa Rosimari Lemes Gai. “É diferente de um processo tradicional. As partes têm oportunidade de conversar”, termina Vanderlania Trindade, outra mediadora do grupo.

E no âmbito criminal?

Um trabalho semelhante ao do Cejusc voltado para contravenções penais é realizado pelo Programa Justiça Restaurativa aqui em Passo Fundo. Neste caso, a ideia é que agressor e agredido se conheçam e saibam da história um do outro. “Assim o agressor toma consciência do dano que causou e o agredido tem a oportunidade de superar o trauma”, explica o juiz Átila Barreto Refosco.

Saiba mais

Os trabalhos do Cejusc Passo Fundo começaram com outra nomenclatura: no primeiro grupo de voluntários capacitados, o nome era a Central de Conciliação e Mediação. Sua base jurídica estava na resolução 125 do CNJ – que é conhecida por ser o embrião desta metodologia no país. A comarca de Passo Fundo foi uma das primeiras do RS a prestar o serviço e é uma das maiores até o momento, junto de Pelotas e Porto Alegre. Em Passo Fundo, o Cejusc conta com 60 membros. O número envolve mediadores de família; de matéria cível; conciliadores e instrutores de oficinas de parentalidade. 

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