Força inexplicável

Quando uma criança é diagnosticada com câncer, a mãe costuma ser a principal figura a lhe servir como pilar, sempre disposta a carregar nos braços o peso da doença

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No colo de Roselane, Jamily se divertia com uma rosa à espera de mais uma consultaNo colo de Roselane, Jamily se divertia com uma rosa à espera de mais uma consulta
No colo de Roselane, Jamily se divertia com uma rosa à espera de mais uma consulta
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Quem quer que troque um rápido olhar com Jamily está sujeito a receber um sorriso assanhado que chega até os olhos e enche de brilho o rostinho de bochechas salientes. É difícil imaginar que algum tipo de preocupação referente à saúde da menina ronde sua família, enquanto aguardam o resultado de alguns exames – afinal, com apenas oito meses de idade, Jamily parece ser uma menina forte e simpática, de mãos curiosas demais para deixarem de exercitar o tato.

“Os sintomas começaram em abril e descobrimos um tumor nela na semana retrasada, mas ainda não sabemos ao certo qual é o tipo de câncer”, a mãe de Jamily, Roselane da Silva, explica. Ela e o marido perceberam que algo estava errado quando a filha, sempre muito calma, começou a chorar com frequência. O choro constante, que antes dificilmente era ouvido, veio acompanhado de outro susto: o tronco perdeua firmeza ede repente elanãoconseguia mais se manter sentada. Em pouco tempo, as mãos e as pernas perderam os movimentos. Depois de passar por exames e ficar internada por dezesseis dias,Jamily foi submetida à cirurgia para remoção de um tumor e pôde voltar para casa, mas a família ainda não teve acesso ao resultado dos exames que devem indicar com precisão o que a menina enfrenta.

“Foi um choque, até agora estamos assustados.Eu tenho muito medo do resultado da biópsia”, Roselane admite enquanto olha para a criança no colo do pai, que caminha pelo Centro Oncológico Infanto juvenil do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) como forma de distraí-la. “Eu tenho muita peninha dela, porque ela sofreu muito, não queria que ela passasse por mais nada. Quem vê ela agora não imagina o que ela passou há dez dias, com a cirurgia. Ela é muito forte”. A última frase, proferida com o orgulho que só uma mãe é capaz de sentir, é repetida por Roselane diversas vezes durante a conversa, mas é ela própria quem mais exala força.

A reação de Roselane não é rara, mas dificilmente passa despercebida. Mães enchem-se de orgulho ao falar dos filhos e da determinação com que eles enfrentam desde uma tarefa simples, como realizar trabalhos para a escola,até enfrentar algo mais grave, como um problema de saúde. No meio disso, não raramente, esquecem-se da força que elas próprias carregam. O altruísmo em sair de casa antes de o dia amanhecer para encarar horas de trabalho ou a decisão de abrir mão do emprego para poder se dedicar aos cuidados da casa e do filho; a sensação inexplicável, mesmo há quilômetros de distância, de que o filho precisa de algo – um abraço, uma palavra carinhosa, uma xícara de chá; as noites mal dormidas para acalentar o bebê que chora por horas. Tudo parece natural, ações abastecidas por um vínculo complexo de força intensa.

Há mãe-amiga, mãe superprotetora e mãe exageradamente rígida, mas em qualquer um desses casos, quando a mãe é presente, a relação maternal é excêntrica demais para ser explicada.É comum ouvir que “só quem é mãe é capaz de entender” quando falamos sobre os sentimentos de uma mãe por um filho.Difícil é achar alguém que discorde. Quem mais seria capaz de abrir mão de tudo que sempre pareceu certo em sua vida e mal sentir falta, crendo que a alegria daquele a quem ela cria vale mais que qualquer outra coisa?Se a dedicação de uma mãe é conhecida por ser tão profunda, imagine então a força da mãe de uma criança com câncer. O susto, o medo, a tristeza e qualquer sentimento negativo que a aflija é suprimido e carregado nos ombros, como se fossem plumas, mesmo quando mais parecem tijolos, para que palavras e olhares de segurança sejam transmitidos aos filhos. Se antes já era um pilar, agora então se reveste em concreto. Não importa quão grave seja a circunstância, as mães estão sempre dispostas a fazer dar certo. Encaram noites em claro pensando em soluções e tratamentos, sem em nem um segundo sequer hesitar ao pensar que enfrentaria tudo aquilo no lugar do filho, caso pudesse.

Uma nova rotina

Quando se descobre uma doença tão agressiva quanto o câncer, o abalo vai do físico ao emocional. A mãe precisa conciliar as inseguranças da criança com suas próprias, aguentar em silêncio quando os filhos se revoltam com a doença, insistir para que tomem a dezena de remédios necessários para o tratamento, mesmo quando estes medicamentos deixam os filhos com náuseas, e oferecer a mão para ajudá-los quando as pernas pesam demais após a quimioterapia e a simples tarefa de caminhar até o banheiro parece um desafio complexo.

Raquel de Oliveira, mãe de uma menina de seis anos em tratamento contra um glioma no tronco cerebral, poderia falar sobre os desafios por horas. Há seis meses, quando Ana Gabriela foi diagnostica com glioma – um tumor que aparece na parte inferior do cérebro que se liga à medula espinal –, Raquel precisou se afastar do emprego para poder cuidar da filha em tempo integral. Em momento algum parece arrependida da decisão que mudou por completo a sua rotina e a privou de outras atividades. “Tudo mudou. Eu tinha uma criança saudável, que já era uma mocinha e fazia tudo dentro de casa. De uma hora para a outra, ela voltou a ser um bebê, só que grande. É uma rotina como cuidar de uma criança de colo, porque ela precisa de auxílio para tudo”.

Raquel conta que o glioma foi descoberto quando Ana Gabriela começou a perder o movimento do lado direito do corpo. Ao procurarem um neurologista, o diagnóstico foi quase imediato, mas, mesmo com tratamento, os problemas continuam progredindo. A cada dia, Ana perde ainda mais os movimentos e até mesmo sua visão começou a ser afetada. Tanto que, na maior parte do tempo, Raquel precisa carregar a filha no colo. Não é fácil aceitar que uma criança, antes em perfeitas condições, agora mal consegue caminhar. “É muito puxado, muito dolorido. A minha filha sempre foi perfeita”. Depois de um suspiro, Raquel dá um sorriso entristecido e complementa, certamente forte o suficiente para passar pelas pedras que aparecem em seu caminho: “apesar de tudo, a gente vai levando”.

A lição de como encarar a situação vem da própria Ana Gabriela, que tranquiliza a mãe ao lidar com a doença de cabeça erguida. A pureza e calmaria da menina é tanta que, para explicar a situação, não foi necessário nada além de uma conversa simples e franca. “Quando descobrimos, eu e meu marido conversamos com ela e explicamos que ela tem um dodói, que ela está assim agora, mas está fazendo tratamento para sarar logo”. A voz de Raquel atinge as nuances entre ternura e admiração ao descrever Ana como uma menina compreensiva e acessível, que lida bem com suas novas limitações, mesmo quando essas a impedem de correr com outras crianças.

Celebrando o Dia das Mães

Em reconhecimento aos esforços de quem passa parte de seus dias no Centro Oncológico Infantojuvenil do HSVP, a semana que precede o Dia das Mães (comemorado neste domingo) foi de homenagens. O projeto “Desenhando Sorrisos” foi ao Centro distribuir rosas às mamães e convidou uma violinista para dedicar canções a elas. Funcionários do hospital organizaram também uma apresentação das crianças em tratamento contra o câncer, que dedicarama canção “Fãs”, da dupla Christian e Cristiano, àquelas que os cuidam incansavelmente.Ana Gabriela estava na ponta da fila de crianças que coreografavam olhando para suas mães – sempre orgulhosas, elas se revezavam entre secar as lágrimas e admirar os filhos. Jamily, pequena demais para coreografar, assistia tudo do colo da mãe, mas ainda dedicava parte da atenção à rosa vermelha que Roselane segurava, bonita demais para ser ignorada.

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