O dia 17 de maio é marcado como o Dia Mundial de Luta Contra a Homofobia e as marcas dessa violência, que nem sempre são físicas, estão por todos os lugares. Inclusive dentro das famílias. Dados do último Relatório de Violência Homofóbica no Brasil, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos apontam que uma grande porcentagem desta violência ocorre dentro da casa das vítimas. Nesta reportagem apresentamos depoimentos reais de filhos que gostariam, mas sentem medo devido ao preconceito, de conversar com seus pais. Neste texto, eles não têm nomes, não têm rostos, mas são reais e estão vivendo e sofrendo com muitas situações. Esta talvez seja a chance de pensar se você, pai ou mãe, não está deixando de escutar e de amar o seu filho por preconceito.
Dentre as palavras que se repetem em cada história, medo é uma das mais frequentes. O medo de contar, o medo de descobrirem, o medo de sentir o que está sentindo, o medo da aceitação. Isso leva muitos jovens a tentarem se esconder de alguma forma. Esta primeira história é de um jovem adolescente que ainda enfrenta resistência. O pai foi a primeira pessoa com quem conversou e, apesar do medo, teve o apoio que precisava.“Ele falou que já sabia, que já tinha falado pra minha mãe prestar mais atenção em mim e que ela foi grossa. Ele falou também que independente da minha sexualidade eu continuaria sendo filho dele e que ele iria me amar igual”, conta.
A mãe, no entanto, até hoje prefere evitar o assunto. “Senti insegurança em contar pra ela, porque é foda tu ouvir da tua mãe que tu é um erro. Não contei porque eu tenho medo de que ela não aceite e me tire de casa, então vou levando, escondendo, fingindo ser uma pessoa que eu não sou”, relata. Houve um dia em que a mãe descobriu que ele havia ido a uma festa LGBT e comentou com um familiar sobre “onde havia errado” na criação do filho. “É um peso enorme. É horrível tu viver se escondendo, sendo praticamente duas pessoas, ver teus irmãos trazendo as namoradas deles em casa e tu se perguntar ‘será que eu nunca vou poder trazer quem eu gosto aqui pra casa?’”, questiona.
Para a mãe, ele apenas gostaria de dizer: “que não me visse com um erro, que me aceite. Independente de eu gostar de homem ou de mulher eu vou continuar sendo a mesma pessoa que ela conhece”.
Palavras que machucam
“Minha mãe chorou muito e foi bem violenta, meu pai gritava muito também”. Assim foi o dia em que o personagem desta história resolveu contar aos pais sobre a sua homossexualidade. “Meu pai disse coisas bem ruins, principalmente sobre a reputação dele. Disse que o filho deles morreu e que eu tava tentando matar minha mãe. Que todos os sonhos que eles tinham em relação a mim eu destruí. Depois de uns dois meses meu pai falou comigo de novo sobre isso, e ele manteve a mesma opinião. Falou tranquilamente as mesmas coisas que disse quando estava irritado. Meu pai fica muito irritado comigo por qualquer motivo, hoje em dia, e reclama de coisas que nunca havia reclamado”, lamenta. Entre essas reclamações a forma de falar, de gesticular e outras peculiaridades que nunca haviam chamado a atenção ou mesmo causado incômodo.
As palavras machucam tanto quanto uma agressão física, principalmente quando são proferidas por alguém que deveria ser referência de cuidado e proteção. Isso é apontado no relatório da Violência Homofóbica que mostra que violências psicológicas foram as mais reportadas, com 40,1% do total. “Meu pai faz seguidamente comentários que me magoam. Uma vez eu estava brincando com meu gato e ele me mordeu e meu pai me chamou de bichinha por eu ter reclamado da dor. Ele já reclamou na frente de amigos dele sobre eu gesticular igual menininha, isso na minha frente também”, conta.
A situação em casa teve reflexos também na forma de se relacionar com outras pessoas e fazer amizades pelo medo da rejeição e do preconceito. Apesar disso, amigos e outras pessoas acabaram dando o suporte necessário em diferentes momentos. “Eu queria dizer que lá fora já é difícil o suficiente e eu gostaria de ser acolhido pelo que eu sou, pelo menos em casa, mas em casa parece mais difícil que lá fora às vezes”, completa.
Não é exclusividade dos garotos
Situações assim também acontecem com meninas que estão descobrindo sua homossexualidade. Esta é a história de uma garota que, mesmo sabendo da sua atração por pessoas do mesmo sexo, por muito tempo se relacionou com homens para tentar ser “normal”. “Desde que tenho conhecimento de mim, isto é, desde criança, sentia atração por pessoas do mesmo sexo. Não consigo definir sentimento, o fato é que por sentir algo que parecia distinto do que se tinha por ‘normal’ me levou a, durante muitos anos, fingir ser quem eu não sou. Ter relacionamentos com pessoas do sexo oposto para tentar fugir da minha realidade, até que em um determinado momento você não consegue mais fingir”, relata.
Enquanto a família finge não saber o que acontece, preferem evitar o assunto.“Muitas vezes num ato de medo, raiva ou mesmo a falta de aceitação eles podem nos machucar. Eu, particularmente, procuro não me deixar afetar, e não os condeno. Penso que também é difícil para eles compreenderem algo que existe tanto preconceito e só nos últimos anos tem ganhado espaço para debate”, enfatiza.
A complexidade de ser trans
Se a aceitação já é difícil quando um filho assume ser homossexual, essa situação é ainda mais complicada para pessoas transgênero. Esta é a história de um garoto adolescente que, biologicamente, nasceu como menina. “Desde pequeno eu sempre quis ser um menino, queria estar junto com meus primos, ser como eles, me vestir como tal, sempre tive o cabelo curtinho”, conta. No entanto o conflito se acentuou na adolescência. “Foi uma sensação muito ruim quando vi meu corpo desenvolvendo e eu me parecendo ainda mais com uma menina, porque aí vêm as cobranças de deixar o cabelo crescer, se maquiar, usar tal vestido, tudo o que a sociedade impõe”, explica.
O alívio de ter falado a verdade para os pais e amigos também foi seguido de conflitos familiares. “Com meus pais não está sendo nada fácil, pra eles foi um choque eu gostar de garotas e agora chegar com a notícia que eu sou trans é ainda mais difícil”, conta. Depois desta conversa, a mãe disse que percebia indícios desde criança, mas como não tinha conhecimento sobre as pessoas transexuais, não chegou a essa conclusão. “Quando eu falei que a minha vontade é de passar pela transição e mudar o meu nome, ela não quis aceitar que eu iria mudar o nome que ela me deu, disse que não ia conseguir me chamar pelo nome social e que eu iria ter que entender. Mas acredito que assim como foi quando me assumi a primeira vez, ela vai entender, vai perceber que pra mim é como se fosse uma necessidade”, diz mantendo o otimismo.
Hoje, ele é atendido pelo Ambulatório de Identidade de Gênero de Passo Fundo que presta apoio específico. Faz acompanhamento psicológico e espera completar 18 anos para iniciar o tratamento hormonal. Também já planeja encaminhar a carteira de nome social, que já está escolhido, e sair de casa para poder fazer o tratamento hormonal e não ter novos problemas com os pais. “Não consegui falar para o meu pai que sou trans ainda, ele é uma pessoa muito fechada e preconceituosa, tenho medo do que isso pode causar nele, por isso decidi esperar até fazer 18 pra começar todas as mudanças”, pontua.
O preconceito, além de estar dentro de casa, quando os pais dizem que ele jamais será feliz desta forma, está nos locais públicos, quando precisa evitar usar banheiros para não ser constrangido por outros usuários, está nas ruas quando as pessoas fazem comentários, e está nas empresas que dificultam o acesso ao mercado de trabalho. O apoio da atual namorada tem representado a segurança que precisa para seguir. “Eu queria pedir paciência aos meus pais, porque pra mim também não está sendo fácil, que eles podem não aceitar na primeira, porque isso é realmente difícil de aceitar, mas que um dia eles vão ter orgulho de mim sendo quem eu sempre sonhei”, completa.
“Não podia acreditar que eu estava sentindo aquilo”
Ciente desde a infância sobre a atração por pessoas do mesmo sexo, o personagem desta história teve certeza do que sentia aos 14 anos. “Ficava me perguntando: ‘Por que comigo? Será que existem outras pessoas como eu?’ Quando andava na rua, ficava tenso imaginando o que os outros estavam pensando de mim, se estavam suspeitando de alguma coisa. A sensação era péssima”, inicia.
Os pais descobriram a homossexualidade quando tinha 19 anos, ele então tentou explicar de forma natural o que sentia. “Minha mãe sempre me apoiou e busca estar presente em todos os sentidos na minha vida, já com meu pai, que é muito conservacionista, não foi tão fácil assim. Após algumas discussões ferrenhas, muitos momentos ele fingia ‘esquecer’ do assunto. Um silêncio angustiante frequentemente parecia durar para sempre. Meu pai culpava-se e buscava respostas de onde tinha errado para que isso acontecesse. Aos poucos, hoje, vem entendendo que ser diferente da maioria das pessoas não é uma tarefa fácil e que ter o apoio e o respeito dele torna tudo mais simples para mim, e que ainda assim, sou o filho que ama e sente orgulho dele por ter me tornado quem sou hoje”, conta.
No início, ele conta que o pai dizia “eu não tenho preconceito, me preocupo com o que você vai passar”. “Houve uma fase no início da aceitação de meus pais que foi a da vergonha por ser homossexual, que às vezes vinha junto do medo. Diversas vezes me sentia como se estivesse destruindo sonhos patriarcais, laços familiares, sangue. Que não viveria conforme o padrão social e, com isso, faria com que tudo e todos ao redor se desestruturassem. Foi difícil sim, pois as pessoas não são obrigadas a me aceitar como sou. Sou um homem comum como qualquer outro, porém gosto de outros homens. Não acordei um dia de manhã e escolhi ser gay. Afinal, quem quer escolher o modo mais difícil de viver? Ser gay não é escolha e sim, estado natural de viver”, enfatiza.
Para os pais, ele deixa um recado: “é muito bom estar em paz e ser quem realmente sou. E saber que posso acreditar e confiar neles. É difícil no começo, mas passa. Acima de tudo, não permito que a noção de amor incondicional e admiração que sinto por eles tornem-se uma farsa em relação ao que passei quando me assumi. Mostro aos meus pais todos os dias que meu amor por eles é infinitamente maior do que a miséria humana que julga, aponta e condena determinadas formas de amar. Mostro aos meus pais que o mundo pode virar-se contra mim, mas que os braços deles serão sempre um lugar seguro onde soubem-vindo por ser exatamente quem sou”.
Violência homofóbica
O último Relatório de Violência Homofóbica no Brasil, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos DireitosHumanos, mostra que violências psicológicas foram as mais reportadas, com 40,1% do total, seguidas de discriminação, com 36,4%; e violências físicas, com 14,4%. Além disso, 36,1% das violações ocorreram nas casas da vítima (25,7%), do suspeito (6,0%), de ambos ou de terceiros (4,4%). Seguido pela rua, com 26,8% das violações e outros locais com 37,5% das denúncias (delegacias de polícia, hospitais, igrejas, escola, local de trabalho e outros).
Dentre os tipos mais reportados de violência psicológica encontram?EUR?se as humilhações (36,4%), as hostilizações (32,3%) e as ameaças (16,2%). Ameaças estão tipificadas no Código Penal brasileiro, ao contrário do que ocorre com as duas primeiras violações. Calúnia, injúria e difamação, também tipificadas no Código Penal, contaram com 7,6% das respostas.
Parte 2
Na edição desta segunda-feira você confere a segunda parte desta reportagem que abordará a importância do apoio familiar e também por que é tão difícil para os pais entenderem e apoiarem filhos homossexuais.