Desde o ínicio deste ano o trabalho vem sendo redobrado para o Clube dos Amigos e Protetores de Animais (Capa). Além do cuidado ofertado aos 400 animais, entre cães e gatos, a entidade sentiu um aperto no orçamento e teve de intensificar as atividades em busca de doações. Só em alimento, são necessários 150 quilos de ração por dia. As garantias básicas aos animais, que ainda incluem moradia e higiene, custam, à entidade, em média R$ 25 mil reais mensais. Esse valor não inclui o gasto que o Capa tem eventualmente com médico veterinário.
O motivo de o orçamento da entidade ter apertado é em virtude da Lei de Fomento e de Colaborações, que passou a vigorar em 2017. Também conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), a Lei nº 13.019/2014 traz novas diretrizes acerca do repasse de recurso financeiro do poder Público às entidades sem fins lucrativos. Os chamados convênios não podem mais existir, de modo que o auxílio financeiro que o Capa recebia da Prefeitura de Passo Fundo teve de ser cessado neste ano. O que existe a partir de agora são parcerias, que são estabelecidas a partir de um controle mais rigoroso desde o plano de trabalho até a prestação de contas.
O Capa recebia, até 2016, R$ 220 mil anuais dos cofres municipais, para custeio das despesas. Divido em 12 parcelas, o valor mensal era superior aos R$ 18 mil. Ainda com o recurso que vinha da prefeitura, o orçamento era apertado e a ONG precisava de doações, conforme a presidente do Capa, Kelly Thimoteo. “Antes nós não conseguíamos nos manter só com o valor do convênio e tinhamos que fazer campanha de arrecadação. Agora a situação complicou mesmo”, explica a Kelly.
Uma brecha na legislação que permite o repasse quando o serviço não pode ser interrompido, vai garantir o repasse de R$ 120 mil, pelo período de 180 dias, o que equivale a R$ 25, por mês, por animal. “É um valor impraticável. Não dá nem R$ 1 por dia. Não tem como alimentar um animal com esse valor”, relata a presidente do Capa. Enquanto a situação de impasse não se ressolve, os voluntários da entidade se esforçam em atividades que possam arrecadar dinheiro, ração e produtos de higiene para os cães e gatos. “Quero deixar um apelo para que a comunidade nos ajude através de doações, porque sem isso a gente não consegue desenvolver o trabalho”, finaliza Kelly.
Assim como o Capa, outras entidades que prestavam trabalho à comunidade não receberam repasse do Município neste ano. A situação de orçamento apertado fez com que serviços fossem cortados, como no Centro de Estudos e Proteção à Infância e à Adolescência (Cepia) vinculado a Sociedade de Amparo a Maternidade e Infância (Sami), que atendia crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Desde o início do ano, o Cepia não realiza mais atendimentos às vítimas. Outras entidades como a Associação de Pais e Amigos dos Surdos de Passo Fundo (Apas), Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), Assistência Social Diocesana Leão XIII, entre outras, também contavam com auxílio da prefeitura. No ano passado, foram assinados mais de 40 convênios. Além das entidades, repasses financeiros ocasionais, como para o Festival de Folclore e a Feira do Livro de Passo Fundo, também precisam ser revistos de acordo com a lei. Cada caso será resolvido individualmente,de acordo com a peculiaridade.
O que muda?
O que mudou com a lei foi a forma de repasse de recurso financeiro, do poder Público (União, Estado ou Município) para entidades privadas. O que acontecia é que o dinheiro era repassado através de convênios, existindo prestação de contas, mas sem uma legislação específica que a regulamentasse, de acordo com a consultora jurídica da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Tânia Grigorieff. “Cada município repassava da forma que quisesse. Repassa o valor, muitas vezes, sem ter um plano de trabalho e sem saber para que seria aproveitado aquele valor, sem sequer ter um planejamento orçamentário e sem saber as atividades que seriam realizadas. Agora, a nova legislação regrou tudo isso”, esclarece a jurista.
Com esse regramento, o dinheiro é repassado através de uma parceria que exige mais controle do serviço que será executado pela entidade. “Agora tem que ser definir objetivos, metas, atividades que serão realizadas, definir cronograma para essas atividades, qual é o período em que isso será realizado. Tem que montar um projeto, fazer um levantamento de preços, dizer os valores que serão usados para cada coisa. Depois, tem que fazer uma prestação de contas, que antigamente, quando tinha os convênios, eram só juntados de notas fiscais e recibos passados por pessoa física. Enfim, não se tinha nenhum controle. Agora são exigidas notas fiscais ou cupons fiscais comprovando”, alerta Tânia.
Se houver mais de uma entidade interessada em relação a um determinado projeto cujo dinheiro será repassado, tem de ser aberto um edital de chamamento público para que cada uma das entidades venha, participe e apresente o seu projeto. A consultora jurídica da Famurs explica que nesses casos, o melhor projeto será escolhido. “Não significa dizer que vai se dar o repasse como se dava antes”, destaca.
Agora também é necessário que as entidades façam dois relatórios. Um deles demonstrando se foram alcançadas as metas e os objetivos que eles pretendiam e outro, o relatório financeiro, informando onde o dinheiro foi aplicado e comparando com o plano de trabalho que foi feito antes de ser repassar o valor. “Temos um comparativo para saber onde foi o dinheiro efetivamente”, completa.
O que deve ser feito pela Prefeitura?
A consultora jurídica da Famurs, Tânia Grigorieff, explica que a partir deste ano, desde que entrou em vigor o Marco Regulatório das OSCs, para repassar dinheiro os municípios precisam emitir o seu decreto regulamentando a lei 13.019, que é federal. Depois disso, cada município tem de abrir, no seu site, um espaço para ir publicando todos os repasses que serão feitos, todos os termos que assinar, todas as propostas que receber. Todas as etapas devem estar publicadas. Tânia explica que não há um prazo para o município regulamentar a lei, mas que todo e qualquer repasse só pode ser feito a partir da realização desses passos. “Sem decreto não pode fazer repasse nenhum porque significa que a lei não está regulamentada no município. A primeira coisa é emitir o decreto e publicar no site”, informa Tânia.
Estes passos já foram executados pela Prefeitura de Marau, que regulamentou a lei, no decreto nº 5293, de 20 de abril de 2017. O prefeito Iura Kurtz destaca que apesar de ser uma lei de 2014, foi uma novidade para todos os municípios. “Fomos ao Tribunal de Contas e a Delegações de Prefeituras Municipais Assessoria e Treinamento (DPM), em Porto Alegre. Orientados por eles, decidimos que iríamos, aos poucos, nos adaptando a nova legislação. Estamos nos adequando ao longo desse ano. Optamos por manter as parcerias com os repasses, mas agora qualificando a prestação de contas, qualificando plano de trabalho, criando os comitês que são necessários”, explica.
Em Passo Fundo
Em Passo Fundo, o decreto ainda não foi publicado. Segundo o Procurador Geral Adolfo Fretas, a PGM e Secretaria de Administração designaram um servidor especificamente para dar esses encaminhamentos. O trabalho de elaboração do decreto está na fase final e esse será o instrumento legal que vai balizar todas as parcerias. O objetivo do decreto é normalizar a lei para a realidade local. O município está adequando a nova legislação caso a caso, até que a mesma seja regulamentada. No no portal de transparência consta o repasse de recurso financeiro, já com a característica de parceira e não mais convênio, para o Grupo Vita, que presta encaminhamento e apoio na prevenção e reabilitação à dependentes químicos, e ao CTG Laulau Miranda. O presidente do grupo Vita, Iberê D’Avila Alves, informou que o grupo ficou 6 meses sem receber o recurso, mas que há duas semanas foi realizada a renovação. De acordo com o presidente, o dinheiro é referente ao retroativo dos meses que passaram. São 20 pessoas internadas atualmente e o valor do repasse foi de R$ 194,4 mil.
Opiniões sobre a lei
O prefeito de Marau, Iura Kurtz, ressalta que a lei tem coisas boas e coisas ruins. Entre os pontos negativos, aponta que os repasses esporádicos, para uma entidade que vai realizar um evento ou um seminário, se tornam mais complicados porque é necessário ter uma estrutura grande e que, muitas vezes, a entidade não tem e mais a frente acaba inviabilizando a transferência do recurso financeiro. Por outro lado, o gestor afirma que a prestação de contas e o plano de trabalho se tornam mais rigidos.
Tânia Grigorieff defende que a prestação de contas ficou excelente. “Cada uma das etapas tem de estar publicada no site dos municípios. Qualquer cidadão pode acessar lá e ver todo o repasse feito, em que foi gasto, quanto foi gasto, e assim por diante. Instituiu a transparência do dinheiro público para entidades privadas”, argumenta.
OSCs no Brasil
Atualmente, existem no Brasil 323 mil OSCs, segundo dados do Mapa das Organizações da Sociedade Civil. Das organizações existentes no País, de 2008 a 2014, mais de 45 mil estabeleceram algum tipo de relação com a União – como participação em conselhos ou comissões e repasse de recursos.
Do total de OSCs pesquisadas, 3,5% acessaram recursos públicos da administração pública federal no período pesquisado. Sobre o aspecto trabalhista, ainda considerando dados do Mapa, as OSCs estabeleceram vínculos formais com 2,2 milhões de trabalhadores. Entretanto, 75% das organizações desenvolvem suas atividades sem trabalhadores formais, indicando a possibilidade de trabalho voluntário ou contratação de serviços de terceiros. Por outro lado, 1% delas, as consideradas de grande porte, tem em seus quadros funcionais mais de 100 trabalhadores por organização. Em Passo Fundo, são 563 OSCs.