O Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgou, nessa semana, um parecer informando a ilegalidade na diferenciação de preços baseado em gêneros no setor de lazer e entretenimento. A Nota Técnica, elaborada pelo órgão, parte da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), será encaminhada às associações representativas desses setores a fim de que ajustem seus comportamentos à legalidade, sob pena das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, a serem aplicadas pelos órgãos de defesa do consumidor. A discussão foi estimulada após um consumidor entrar com um pedido liminar na Justica do Distrito Federal, solicitando o mesmo valor cobrado para mulheres para um show. Na ocasião o pedido foi negado, apesar de a juíza responsável ter afirmado que a diferenciação de preços não tem respaldo na legislação brasileira.
De acordo com o secretário nacional do Consumidor, Arthur Rollo, serão realizadas fiscalizações até que essas práticas abusivas sejam banidas do mercado de consumo. “A utilização da mulher como estratégia de marketing é ilegal, vai contra os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Os valores têm que ser iguais para todos nas relações de consumo”, afirmou. A Senacon coordena o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e cabe a ela apurar as infrações aos princípios e às normas de defesa do consumidor, bem como articular com os seus demais integrantes a coibição eficiente de práticas abusivas no mercado de consumo.
Quem vai fiscalizar?
Em Passo Fundo, são diversas opções de lazer. Variadas pelos estilos musicais, as casas noturnas atraem públicos distintos. Em alguns casos, já é cobrado o mesmo valor de ingresso independentemente do gênero. Com essa Norma Técnica, porém, as casas que ainda praticavam valores diferentes para homens e mulheres agora terão de se adequar. Os estabelecimentos terão um mês para se adequarem à determinação. A partir desse período, o consumidor poderá exigir o mesmo valor cobrado às mulheres, caso ainda haja diferenciação.
A Norma Técnica segue o princípio constitucional da igualdade, de acordo com o coordenador do Balcão do Consumidor e professor da Direito da UPF, Rogério Silva. Porém o que intriga é a competência de fiscalizar. “O que me preocupa é como será feita a fiscalização? Quem vai fiscalizar? Porque o nosso grande problema, como de resto em todo Brasil, é que existem leis, existem normas, existem códigos, mas na hora de fiscalizar isso é bastante falho. Eu torço para que a gente consiga realmente ter uma fiscalização efetiva e que estabeleça esse equilíbrio nessa relação”, defende Silva.
O secretário nacional do Consumidor, Arthur Rollo, explica que o consumidor deve acionar os órgão de defesa do consumidor, responsáveis por fiscalizar e autuar os locais. Em Passo Fundo, quem se sentir lesado por buscar o Balcão do Consumidor e registrar a reclamação, mas o coordenador alerta que o órgão não tem a competência de fiscalizar. “Nós poderemos encaminhar ao Ministério Público, ao Procon se for o caso, mas nós não temos o poder de fazer a fiscalização e a autuação. Nós buscaremos sempre fazer o atendimento e buscar uma conciliação entre as partes”, frisa Rogério Silva.
Objetificação da mulher ou liberdade de mercado?
Ingressos mais baratos, ou até mesmo entrada liberada para mulheres em festas. A prática adotada por diversas casas noturnas é comum e vem gerando debate. De um lado, o argumento de livre mercado e da possibilidade do estabelecimento cobrar o valor que preferir. Do outro, a defesa pelo fim da diferenciação de preço por entender que a mulher é utilizada como marketing e objeto de consumo.
A diretora do Procon RS, Maria Elizabeth Pereira, disse que o órgão é contra a discriminação e que considera a prática de inserir valor diferenciado, baseado no gênero, uma discriminação. “Não quer dizer que pelo fato de há muitos anos se praticar essa forma de cobrança, isso se torne correto. Uma prática errada não pode se transformar em algo correto. Ela é ilegal porque ela discrimina e torna a mulher como um objeto. A mulher se torna uma isca para que aquele clube noturno, ele se beneficie da presença da mulher. A mulher não pode ser considerada um objeto de consumo. Isso está depondo contra a dignidade da pessoa humana”, argumenta a diretora.
Para a estudante de Artes Visuais e militante do movimento feminista, Mariah Teixeira, a Norma Técnica da Senacon é necessária uma vez que esse tipo de prática coloca a mulher em uma situação, muitas vezes, vulnerável. “Acredito que é uma medida positiva. A ideia de que é mais barato a entrada, ou bebida liberada, para mulheres significa que mais mulheres vão ir e, portanto, mais mulheres vão estar à disposição dos homens, muitas inclusive em situação vulnerável por causa da bebida. Muitas pessoas podem dizer que é privilégio, mas se você pensar melhor a intenção por trás delas é o mais puro machismo, travestido de cortesia ainda por cima. Numa sociedade igual, os homens e mulheres seriam tratados da mesma maneira, esse tipo de “cortesia” não teria espaço. Gentileza não faz distinção, seja de gênero, raça, classe, etc”, explica a estudante.
Outro argumento que confronta a Norma é a respeito da faixa salarial, em que se afirma que mulheres ganham menos. A pesquisa Síntese de Indicadores Sociais - Uma análise das condições de vida da população brasileira, divulgada em dezembro de 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informa que a renda das mulheres equivale a 76% da renda dos homens. Os dados foram coletados entre 2005 e 2015. Esse número era de 71% em 2005 e reflete o fato de mulheres ganharem menos no emprego e também por não serem escolhidas para cargos de chefia e direção. Dos homens com mais de 25 anos, 6,2% ocupavam essas posições, contra 4,7% das mulheres com a mesma idade. Porém, mesmo nesses cargos, fazendo a mesma coisa, o salário delas era 68% do deles.
Mariah desconstrói essa linha de pensamento por entender que as mulheres não recebem desconto em festas por essa lógica. “Acho que não tem relação alguma. Hoje as mulheres ganham menos, nessa lógica a minha conta de luz ou do restaurante deveria vir uma porcentagem menor, não concorda? Isso tanto não acontece quanto é a prova de que a entrada mais barata em bares, casas de shows, pubs etc, nada tem a ver com a situação salarial das mulheres em relação aos homens, mas com a ideia de objetificação dos corpos femininos”, esclarece a estudante.
Além da questão envolta à objetificação da mulher, a diretora do Procon relembra que essa prática também pode ser agressiva aos direitos dos homens. “Nós temos que saber que todos os cidadãos têm direitos, por tanto é a questão discriminatória que está sendo verificada nesta prática. Ninguém pode ser tratado de forma diferente”, frisa a diretora.
Quanto às reclamações dos consumidores, como acontecem no DF, Maria Elizabeth afirma que, até o momento, não é usual no Procon. “Nós tivemos algumas poucas reclamações. O que gerou agora essa manifestação é que um homem reclamou. Ele tem o direito de reclamar. Ele está sendo cobrado a mais e ele quer saber quais os fundamentos que levaram ele a essa cobrança maior. Na atualidade, no momento em que se tem toda uma luta pela igualdade, nós não podemos admitir uma prática que venha justamente nesse sentido, porque se um homem vai comprar um produto junto com uma mulher, a mulher vai pagar menos por aquele produto? Ambos têm o mesmo direito na aquisição de qualquer bem e isso se aplica também nessa questão do lazer”, conclui.
A liberdade de mercado
Defensores das práticas econômicas liberais consideram a Norma Técnica como uma afronta ao livre comércio. Os filiados à Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (ABRAPE), em sua unanimidade, através de nota oficial, se posicionam contra qualquer atitude de discriminação em qualquer lugar e de toda natureza. A entidade defendeu, por meio de nota assinada pelo presidente Carlos Alberto Xaulim, que a interferência do governo, em tornar ilegal a prática dos preços diferenciados, é, por si só, uma maneira de discriminação.
“Lamentavelmente, a discriminação, que deveria ser evitada, permeia a nossa atividade por interferência do poder público no nosso negócio. Essa é uma pratica que afronta o preceito constitucional da livre iniciativa, previsto no Inc. IV, art. 1º e paragrafo único do art.170 da Carta Magna. A prática legal do livre comércio, não pode sofrer censura, nem interferências em razão de posturas ideológicas ou de gênero, exceto se ferir direitos individuais ou sociais. O Estado deve evitar interferências ou regulação de práticas comerciais legítimas como descontos ou promoções, que recaem somente no setor de entretenimento”, dizia a nota.
A estudante de Jornalismo, Ana Cláudia Capellari, defende a não interferência do governo. “Acredito que o Estado tem outras funções a serem cumpridas. Regular e impor a um empresário um preço fixo é desrespeitar a propriedade privada e a liberdade individual. As pessoas vão às festas porque querem e gostam, não importa o preço”, defende.
Sobre o argumento da mulher ser utilizada como isca para atrair homens ao estabelecimento, a estudante afirma não ver problema. “Nunca me senti objeto por pagar menos, inclusive adoro pagar menos, pois a casa não lucra no ingresso e sim no que é consumido lá dentro. Se a mulher sabe e acredita que é assim, ela deve simplesmente boicotar o lugar ou pedir para pagar o mesmo que os homens pagam” afirma.
A associação nega a discussão sobre gênero. “Descontos e promoções são um direito do empreendedor. Nesse caso, o beneficiário tem o direito de escolher se aceita, se adere ou não a proposta. Nenhuma das partes precisa de tutela do Estado para determinar o que oferecer e o que aceitar. Nesse cenário, não tem ninguém incapaz”, ABRAPE em nota.
Essa interferência de governo, acaba por gerar prejuízos ao setor de entretenimento, conforme a ABRAPE. A entidade afirma que o entretenimento é a única atividade econômica no Brasil que é obrigada a conceder desconto de 50% para estudantes, idosos, jovens de baixa renda, doadores de sangue, professores entre outros, sem que haja nenhum tipo de contrapartida ou benefício. “Estar obrigado a cobrar mais barato de estudantes, idosos, jovens de baixa renda e outras categorias, não é discriminação?”, questionou a instituição.
Empresários consideram a Nota Técnica como equivocada, uma vez que ela generaliza a situação. Este é o posicionamento do sócio-proprietário de uma casa noturna de Passo Fundo, Arthur Viacelli Falcão. Segundo ele, a Nota traz trechos da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor, como por exemplo: “afronta a dignidade da pessoa humana”, “prática abusiva”, que há má-fé, que há uso da “mulher como insumo", “que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada”, que há “diferenciação de preço com base exclusivamente no gênero”. “Trazendo para a nossa realidade, não seria incorreto afirmar que estas afirmações são falaciosas. Houve um amplo destaque pela mídia, o que mexeu com o imaginário da população, levando-a a crer que a Nota e a decisão estariam perfeitamente corretas, sem ao menos serem questionadas”, argumenta o administrador.
Falcão explica que como gestor, ele pratica um preço com base em uma ampla análise de necessidade dos clientes, do mercado e das variáveis. “A Nota desconsidera estas variáveis e passa a régua em tudo. Incluo um único exemplo: homens oferecem 99% do risco de segurança e, consequentemente, jurídico ao nosso negócio. Então, observa-se que há diferença na estrutura de serviço, custo e risco, o que nos legitima sim a cobrar preços diferentes”, defende.
O empresário ainda afirma que, no momento em que se propõem a prestar entretenimento aos clientes, há uma série de preocupações para que o resultado final seja a harmonia de todos, tanto mulheres quanto homens. “Para construí-lo analisamos inúmeros pontos: oferta x demanda, valor percebido, custos, preço, volume, perfil de consumo, faixa etária e entre muitos outros. A construção da obra é constituída por muitas variáveis, as quais, repito, foram excluídas pela Nota Técnica. Isso nos dá embasamento suficiente para discordar dela”, afirma.
A entidade considera imprescindível respeitar a liberdade de criação de políticas de preço aos ingressos como estratégia para atrair público a qualquer atividade comercial. “A única forma capaz de garantir a sobrevivência dessa atividade é a livre iniciativa, com a liberdade para buscar estratégias de estímulo e de prosperidade. Ressalta-se que aqui não se defende o vale tudo para atrair clientes. É preciso, em primeiro lugar, respeitar aqueles que são os destinatários desse negócio”, disse a associação.
Nas casas noturnas da cidade
Em Passo Fundo existem tanto casas que oferecem o mesmo preço para homens e mulheres quanto boates que praticam política de valores diferenciados.
Mesmo preço
O empresário Rafael Cunha aderiu a prática do ingresso unissex no início deste ano. Até o ano passado, a casa cobrava preços diferenciados, mas seguindo tendências que são observadas fora do Brasil o valor do ingresso foi unificado. “Não caracterizamos se é homem ou mulher, é o ticket da casa”, afirma Cunha. A casa noturna de propriedade de Cunha tem 1 ano e 2 meses de funcionamento. Mesmo com a mudança na política de ingresso, o proprietário informou não notar perda de público. “No começo o pessoal achou um pouco diferente, mas depois seguiu normal”. Sobre a Norma Técnica, Cunha defende a autonomia de casa estabelecimento. “Eu acho boa [a Norma Técnica], mas não deveria ser obrigado. Cada um deveria fazer por acreditar que o valor do ticket tem que ser o mesmo, mas é bem legal. Acho que deve ser cobrado a mesma coisa porque nesse caso não há discriminação de gênero”, afirma.
Preço diferente
Na casa noturna que Arthur Viacelli Falcão administra, junto com outros sócios, há diferença de preços nos ingressos. Há 10 anos no mercado, ele afirma que nunca houve observação acerca do que trata a Norma Técnica. “Nós acreditamos muito que quem determina o preço é o consumidor. Nos últimos dias, ampliamos a conversa com nossos clientes, principalmente do sexo feminino, e a constatação é de que este sentimento de “prática abusiva” e “inferioridade” inexiste. Continuaremos buscando entender melhor o sentimento dos consumidores e tomaremos decisões com base nisto. Se as mulheres entenderem que estão de fato sendo inferiorizadas e desejarem pagar o mesmo preço, então analisaremos sob esta ótica. O que está incorreto é ter a Nota Técnica como verdade única. Não é”.
Sem resposta
A redação de ON entrou em contato com a coordenação do Procon de Passo Fundo, mas no momento não havia ninguém disponível para conceder entrevista. ON também tentou contato com o Ministério Público para falar sobre a fiscalização, e foi informada que o órgão só se manifesta depois de que entrar em vigor a Norma Técnica.