Dez segundos sem fim

Bastou um clique para detonar valores e acordar preconceitos

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Você já entrou no vestiário de um time de futebol? O cenário não poderia ser outro. É um monte de homens pelados, muita conversa e, quase sempre, repleto de brincadeiras e gritarias. Ah, claro, os chuveiros produzem uma umidade com um cheiro de sabonete que toma conta do ambiente. Após uma derrota parece um salão de velório. Mas depois de uma vitória lembra a bagunça de uma sala de aula sem o professor. Além de trocar de roupa e tomar banho, é ali que os jogadores ouvem instruções e levam alguns puxões de orelha. É o camarim onde o texto final é repassado antes de entrar no gramado. Em seguida, também será o local para absorver os bons e os maus resultados. A nudez, como em qualquer outro local, é encarada pela orientação que origina cada olhar: da curiosidade à admiração. O vestiário tem lá suas peculiaridades e até mesmo um implícito código de ética. É blindado. Mas quando algo escapa dali acaba dando... Sim. Isso mesmo.

Câmara, luzes e ação

Na tarde de 30 de junho os jogadores do Sport Clube Gaúcho participaram de um treinamento coletivo, característico de uma sexta-feira. O grupo disputa a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho e, à exceção de três atletas, a idade é limitada em 23 anos. Portanto, um elenco formado por jovens. Após o treinamento eles foram para o tradicional banho. Quando a nudez é recíproca acaba o pudor e alguns foram além da rotina. As múltiplas funções de um smartphone propiciaram a gravação de um curtíssima-metragem de 10 segundos. Um atleta pegou, simultaneamente, no bilau de outros dois que estão ensaboados e, ao som de gargalhadas, faz movimentos de masturbação. Na linguagem do vestiário foi uma zoeira. Mas escapou da blindagem, quando alguém resolveu postar num grupo de WhatsApp. Bastou um clique para detonar uma bomba. A propagação foi imediata, as interpretações múltiplas, as consequências inevitáveis e ganhou uma repercussão que parece interminável. Os atores e o cinegrafista foram dispensados pelo clube. O fato repicou na mídia, de norte a sul no Brasil e até no exterior. E, claro, os 10 segundos parece que não têm fim.

Agora estou desempregado

“Zoeira. Sim, foi brincadeira. Sabia que estava filmando, pedi para apagar. Mas ele não apagou na hora. Passou para um grupo, não sei qual, e aí começou”, explicou um dos participantes do sucesso de bilheterias. Entre a ficção a realidade, as consequências. “Foi forte no começo. Agora tá mais tranquilo, fora que estou desempregado”, avaliou na sexta-feira. Em relação ao clube, o jogador não esconde que ficou magoado com o presidente. “Ele falou que não iria demitir, mas depois chamou e nos demitiu. Eu não julgo pela atitude dele (demissão), mas garantiu que não daria entrevista sobre o assunto e depois falou. Ainda mais pelo que passamos e as dificuldades que enfrentamos”.

Homossexualismo ou homofobia? Nem uma coisa nem outra. “Nada a ver. Sou um cara muito bem resolvido. Foi uma brincadeira de vestiário. Mas aos olhos dos outros foi diferente”.

Desnudando uma repressão milenar

As redes sociais são praticamente uma novidade. Mas será que estamos preparados para utilizá-las? De acordo com o médico psiquiatra Carlos Hecktheuer elas vieram para ficar, não há como retroceder e, ainda, evoluirão. Sobre a os vestiários esportivos, onde as pessoas ficam nuas, diz que “o nu é atualmente usual. Evidentemente o desnudar-se produz estimulação sensual”. E se são tantas cenas de sexo explícito nas redes sociais, por que esta cena teve tamanha repercussão? “A postagem em questão alcança as fantasias sexuais pertinentes ao comportamento humano, muitas bloqueadas pela moral vigente. A observação de cenas eróticas remonta aos mais primitivos comportamentos dos seres humanos. A divulgação vem a contemplar uma espécie ‘de desabafo’ de conflitos emocionais internos, inconscientes, de quem as faz: ‘antes eles do que eu’.”

Causas e consequências

Em relação aos fatores que levam a propagação desse tipo de imagens, o psiquiatra explica que “novamente percebe-se a intenção de validar atitudes na esfera dos relacionamentos sexuais, nesta época na qual a sexualidade humana está mais frouxa e menos contida”. A repercussão não estaria associada à homofobia. “Acredito que a motivação principal prende-se à repressão milenar que recai sobre todo e qualquer ato libidinoso, seja entre homens ou mulheres”. E as consequências? “Ao clube, simplesmente absorver os fatos como um desvio de comportamento do coletivo. Quanto aos jovens, uma enorme possibilidade às discussões e debates sobre o delicado, complexo e importante desenvolvimento de suas sexualidades”, completou Carlos Hecktheuer.

A rede e a mídia são implacáveis

Dos valores da notícia à intimidade das plataformas

Caiu na rede, e agora? O professor do curso de Jornalismo da UPF, Fábio Rockenbach, entende que a mídia repercutiu algo que os valores da notícia dizem ser de interesse do público, e foi direcionada para o discurso que mais atrai audiência. A própria mídia busca ser homofóbica, já houve casos de atletas sendo vistos ou filmados com mulheres, e a repercussão é menor. Mas como são três homens, obviamente a própria teoria do jornalismo explica o interesse no fato. Ninguém além deles sabe explicar o que aconteceu ali pra ficar levantando opiniões, isso é de foro íntimo e todo o resto é especulação. Agora, a atitude do dirigente me parece a atitude que seria tomada se um vídeo heterossexual vazasse nas mídias dentro das instalações do clube. Todo o resto é pura especulação, coisa que o jornalismo deveria se abster de fazer. Em muitas vezes que resolveu especular, causou problemas sérios - e muitas vezes não pagou por eles.

Mídias e plataformas

Novas mídias e como lidar com as consequências? O professor Fábio diz que a turma não está ligada porque está acostumada demais. Quando nos acostumamos com um meio, uma mídia ou plataforma, passamos a reagir a ele naturalmente. Para muita gente, falar no Whats é como uma conversa de bar, mas a conversa de bar não deixa rastros e na conversa de bar, o que você diz só é ouvido por quem está ali no momento. Aquela ideia dos diferentes graus de separação, do amigo que conhece o amigo que poderia vir a conhecer você, faz tudo o que se compartilha vir a parar nas mãos de quem você não conhece, porque o seu amigo acha que essa pessoa é de confiança. E o material deixa de ter controle. É ingenuidade acreditar que o grupo fechado é tão seguro e íntimo quanto o grupo da conversa face a face. Mas é típico dos tempos atuais, de perder a noção e achar que dá pra substituir o real pelo digital. Não dá, são relações diferentes.

Resumindo, é isso: estão tão acostumados ao grupo digital que inconscientemente reagem a ele como se fosse uma relação física normal, frente a frente, mas nunca é.

Escândalo substitui escândalo

Para Fábio Rockenbach o estrago já foi feito. Independente do que venham a dizer ou provar, a rede e a mídia são implacáveis, mas o maior prejudicado me parece ser o clube. Escândalos surgem toda a semana envolvendo gente famosa, e logo são suplantados por outros. A notícia velha não rende acessos, ela precisa ser suplantada por outra mais nova. Os atletas devem conseguir seguir a carreira a médio ou até curto prazo, mas o Gaúcho pode ficar marcado de forma jocosa. A memória marca mais o coletivo ou a instituição do que o individual em casos como esse. Se o público não guarda nem o nome de um assassino ou de um corrupto famoso preso, não vai ser o nome de alguém de certa forma desconhecido que vai ficar por muito tempo. O tempo da internet precisa de constante renovação de interesse. Uma notícia dessas sobrevive mais como meme do que como escândalo, em si.

Corrente de ilusão

Mas, afinal, por que as pessoas repicam postagens como essa? Rockenbach explica que eles interpretam o que o amigo que postou interpreta. É uma corrente de ilusão. Se o amigo compartilha e faz um comentário, ele leva adiante o comentário e o retroalimenta. É o que um cara chamado Pariser chama de Filtro-bolha. As redes filtram nossa timeline para aparecer postagens de quem mais se identifica conosco. Logo, somos alimentados por opiniões como as nossas e as passamos adiante - com o sabor de vitória, afinal, todos na nossa timeline gostam de nós e das nossas postagens. Por isso uma postagem com sentido dúbio vai se alimentando e crescendo na rede.

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