A educação e os impactos da crise

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Professores contam como enfrentam a crise do parcelamento de saláriosProfessores contam como enfrentam a crise do parcelamento de salários
Professores contam como enfrentam a crise do parcelamento de salários
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“Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei. (...) Vou-me embora pra Pasárgada: aqui não sou feliz”. Pasárgada, a terra ideal descrita pelo poeta Manoel Bandeira, é usada para ilustrar o descontentamento da professora de biologia, Mônica Gruhn Germann. Não que não goste da sala de aula - pelo contrário. Leciona há 16 anos e jamais se arrependeu da profissão escolhida. Mas, além de professora, Mônica é mãe. É esposa, filha e amiga. O reflexo da crise do Rio Grande do Sul não apenas atinge seu ambiente de trabalho, mas sua rotina de um modo geral. “Eu até brinco: vou-me embora pra Pasárgada, porque aqui não dá mais”, diz. Mônica é uma entre cerca de 130 mil servidores ativos estaduais que recebem seus salários parcelados desde fevereiro de 2016. No início do mês, recebeu em sua conta a primeira parcela do salário de agosto: R$ 350 - o menor valor inicial desde o início da onda de parcelamentos. Além de atingir em cheio todos os servidores do Poder Executivo Estadual, o desgaste corrói principalmente o setor da educação. A falta de infraestrutura nas escolas, a série de greves, a falta de pagamento e crise moral contra o professor são alguns dos impactos negativos para a educação de crianças e adolescentes de todo estado.

Efeito dominó

Junto com o parcelamento está também a perda da capacidade de consumo destes servidores. Sem o salário integral, a alternativa é usar o cartão de crédito. Resultado: uma bola de neve de dívidas e perda do poder de aquisição. “No início do mês, quando recebemos R$ 350, ainda estávamos esperando pelo salário. O dinheiro que entrou na conta foi para cobrir os negativos. Não sobrou nada além disso. Os juros que temos para pagar são maiores que o juro proposto por esta indenização”, desabafa a professora Mônica. A indenização a que se refere é o projeto de lei encaminhado pelo governo do estado, que prevê pagamento indenizatório aos servidores pelos dias de atraso no pagamento dos salários. A medida atinge trabalhadores ativos, inativos e pensionistas. O cálculo de restituição é baseado na taxa de juros da poupança - ou seja, uma média de rendimento de 0,5% ao mês. “Não tenho mais dinheiro para o básico. Não tenho lazer. Gostaria de fazer cursos, de investir na minha profissão. Todos nós estamos deixando de comprar, de consumir. Isso gera um efeito dominó. Ninguém vê que somos em grande número e pagamos impostos em cada pedaço de pão que compramos”, terminou.

O jeito é encontrar alternativas. “Aprendi a fazer unha. Faço a tua, se precisar. Estou sempre pensando no que fazer para ganhar um extra. Só que isso também vai para a conta: a partir do momento que eu começo outro trabalho, acabo tendo menos tempo, ânimo e energia em sala de aula. É um ciclo vicioso”, completa. O mesmo acontece com a merendeira Jaqueline Quevedo. Antes manicure, entrou no Estado em 2010 buscando estabilidade e um melhor plano de saúde. A expectativa, no entanto, não correspondeu à realidade: alguns anos depois, precisou voltar ao contato com cutículas e esmaltes para conseguir pagar o financiamento da casa. Com marido e filho desempregados, sustenta a família sozinha com ajuda da filha mais nova. “A gente tem que estar sempre driblando alguma coisa: ou você paga uma conta, ou paga outra. Só usamos cartão [de crédito] em último caso. Ontem mesmo tive que refinanciar um empréstimo para poder pagar duas prestações da casa que estavam atrasadas”, contou, enquanto pintava de vermelho as unhas da mão de uma de suas clientes. “Nosso consumo diminuiu muito. Ou você compra comida, ou paga as contas. Água e luz a gente até consegue dar um jeito, mas o pior é o financiamento da casa. Ir no cinema, lazer? Não tem isso, não. No máximo a gente vai para Porto Alegre fazer vigília [com o sindicato]”, relatou.

Os reflexos da (falta de) educação

“Uma mãe me parou na rua. A filha dela está no primeiro ano do ensino fundamental, em época de alfabetização. Ela me disse que tem medo que a filha esqueça tudo”, lembra a professora Mônica. A greve dos professores, que já perdura por mais de 20 dias, vai continuar. Nessa sexta-feira (29), os servidores decidiram em assembleia que não voltam às salas de aula. “Acabou o parcelamento, mas começou o atraso de salários. Vamos continuar nossa greve”, disse a presidente do Cpers Sindicato, Helenir Schüler. No fim da tarde de sexta-feira (29), o governo estadual publica uma nota declarando o corte do ponto dos grevistas. Além do professor, o aluno também se prejudica com a crise. Além da falta de aula, ele também é atingido pela inconstância e insegurança do período. Por estar todos os dias na escola pública, Mônica e o marido decidiram matricular a filha em uma instituição particular. “Quem paga, claro, é meu marido. A gente se sacrifica pelos nossos filhos, mas meu sonho é poder fazer com que minha filha estude na escola pública de qualidade, sem interrupções porque os professores não recebem o que merecem. Estamos sucateados e faz tempo”, relatou.

O jovem sente o prejuízo da greve e da crise. Quem analisa a situação é a professora aposentada Solange Schmdit. “É impossível você tirar uma coisa sem prejudicar outra. Nós, professores, estamos prejudicados pela falta de salários; eles pela falta de aula. Talvez em outro momento eu até diria que isso é bom, faz com que a criança valorize o professor, o ser humano. Mas acredito que hoje, vem muito mais o sentimento individualista, de incompreensão, descrença”, reflete. Para ela, o papel do professor, hoje em dia, é muito mais de cunho pedagógico - e não propriamente educativo. “Ensinamos a ler e escrever, mas principalmente a conhecer, a tornar as pessoas sábias na busca por conhecimento. Com professores desmotivados, não há como fazer que isso aconteça”, acrescentou. O caminho destes jovens, como pensa, vai sofrer consequências - não impostas pelos professores ou pela própria família, mas pelo conhecimento em massa que chega e não há meios pedagógicos de ser bem utilizado.

Corte do ponto dos grevistas

De acordo com a nota publicada pelo governo estadual na tarde de sexta-feira (29), 47% dos servidores da Educação já teriam recebido os salários integralmente. A previsão é que o restante seja pago até o dia 11 de outubro, assim como ocorre com as demais áreas. “Mesmo assim, com o apoio irresponsável da oposição, o Cpers decidiu manter a greve por período indeterminado. Não chegamos a esta crise por vontade do atual governo. E para sair dela, precisamos de responsabilidade política e financeira, não de populismo e demagogia. Estamos fazendo todos os esforços para recuperar os serviços públicos e normalizar o pagamento dos servidores. O governo sempre manteve o diálogo e, nesta semana, anunciou o pagamento prioritário a quem ganha menos e a indenização pelos dias de atraso”, consta na nota. Na declaração, o governo afirma que, em vista do interesse público, “não resta outra alternativa senão o corte do ponto dos grevistas”. O pedido é que os professores voltem imediatamente às salas de aula.

 

O lado mais fraco

Clichês não são clichês por acaso. Quando falamos que a ‘corda sempre arrebenta do lado mais fraco’ é porque ali existe um fundo de realidade presente no nosso cotidiano. O caso do parcelamento de salários no RS é um exemplo. Desde fevereiro de 2016, os servidores do Poder Executivo recebem seus pagamentos fatiados. Antes disso, só no governo de Yeda Crusius, em 2007. Os servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público e Defensoria Pública ganham, todo mês, o valor integral. O motivo está no fato de que cada um destes poderes possui orçamento próprio. A Constituição os vê distintos e, por isso, o governador não tem poder de parcelar o pagamento destes trabalhadores.

A independência e harmonia dos poderes influencia diretamente na gestão orçamentária. Todos os meses, o chefe do Executivo - seja ele a nível nacional, estadual ou municipal - é obrigado a repassar uma fatia dos recursos para os demais Poderes. Este repasse é estipulado um ano antes, a partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias. “É uma condição para que os poderes possam funcionar. Se por alguma razão, independente das circunstâncias, o chefe do Executivo não repassar, ele pode ser responsabilizado judicialmente. Podem haver também consequências mais graves, como uma intervenção e retirada do poder, por exemplo”, explica o professor de Direito Público da UPF, Giovani Corralo. Mesmo em caso de uma crise aguda - como vivemos hoje - só pode haver outra postura do governo se todos os poderes decidirem parcelar seus salários em solidariedade. “Como não vemos isso, o governador é obrigado a manter os repasses. É claro que isso gera uma perplexidade pelo fato de haver disparidade entre servidores públicos que, mesmo sendo do mesmo estado mas de poderes diferentes, acabam tendo tratamento diferenciado”, completou.

Para o professor do Programa de Pós-Gradução em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF), especializado na formação de professores, Altair Fávero, este fato simboliza o ápice da crise. “Foi mexido o aspecto fundamental para qualquer coisa funcionar”, começa ele, referindo-se a falta de pagamento integral dos salários. Para o especialista, nenhum país decente admitiria este tipo de solução no enfrentamento de uma crise. “Até porque há uma contradição. Se temos que parcelar, por que não os salários mais altos? A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Há uma hipocrisia de quem governa e da sociedade, que faz um discurso bonito sobre como a educação é prioridade, mas não é isso que realmente acontece”, disse. Ele cita o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997) que, em 1982, proferiu uma espécie de presságio sobre a educação brasileira: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. “Estamos em 2017, 30 anos depois. Quando olhamos o caos do nossos sistema penitenciário, vemos nas palavras de Darcy Ribeiro uma profecia. Quando não temos a educação como um bem de prioridade, acabamos instituindo uma sociedade do caos. Isso configura o aumento da criminalidade, da corrupção, da dificuldade em se viver bem, em ter qualidade de vida. É um retrato da crise moral que vivemos hoje”, completou.

Segundo Fávero, não é propriamente na escola onde se ensina ou institui a moralidade, mas a passagem por ali é base para que a moral se construa socialmente. “Se a escola é fragilizada, a educação como um todo também passa a ser. O fato de a escola hoje estar destroçada, não impacta somente em si mesma, mas no seu entorno: o bairro, a sociedade, a igreja. Quando temos uma situação generalizada de crise, abre-se brecha para aquilo que há de pior na sociedade, como os fanatismos, os preconceitos, a violência”, pontua. Em um prognóstico a longo prazo, Fávero é pessimista. “Vamos ter uma depreciação ainda maior no espaço da educação”, afirmou. Ao seu ver, a educação vai ser cada vez mais desvalorizada. “Não vejo a melhoria das escolas sem antes haver uma melhor condição dos seus recursos humanos. A profissão professor é extremamente desestimulada hoje em dia. Prova disso é que os jovens querem ser tudo, menos professores”, terminou.

Escola doente, sociedade doente

Os reflexos são graves quando uma crise atinge a educação pública. Alguns deles são vistos imediatamente - como o movimento grevista, por exemplo -, mas outros acabam surgindo também a médio e longo prazo. Os efeitos duradouros são os que ultrapassam o campo profissional destes trabalhadores: um levantamento do Governo do Estado adianta que a maior razão de afastamentos dos professores é por distúrbios psicológicos - depressão e transtorno de ansiedade são exemplos. “A profissão professor já demanda extrema estrutura psicológica por si só. Além disso, convivem com mais esta situação de parcelamento e atraso. Precisamos entender que a própria escola não se modernizou e ainda segue o modelo do século passado. Ela precisa se encaixar. Temos jovens extremamente conectados, com acesso a tudo. Passamos por mudanças radicais na família, na própria sociedade. O professor precisa lidar com tudo isso, com a falta de estrutura e, por isso, sofre”, explica a promotora de Justiça Regional da Educação de Passo Fundo, Ana Cristina Ferrareze.  

Ao mesmo tempo em que precisa de espaço - e tempo - para se formar e participar das mudanças, o professor acaba sendo inserido em um contexto de reivindicação pelo pagamento do próprio salário; um direito básico. E. enquanto não se tem o básico, não se pode pensar em uma mudança efetiva na estrutura educacional. “A crise acaba refletindo na qualidade da educação, na falta de competitividade, entre tantos outros aspectos impossíveis de enumerar. A crise afeta a área da educação porque toda a sociedade está afetada”, concluiu.   

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