Na internet a disseminação de ódios é muito comum. Comentários que incitam a violência contra um ou outro grupo de pessoas, a popularização de imagens dos justiceiros que fazem valer a lei do olho por olho, a discriminação de pessoas por determinadas características. Estas são apenas algumas das situações que podem ser vivenciadas na rede por qualquer usuário e sem a necessidade de muita busca. Mas e fora do mundo virtual, você já parou para olhar à sua volta e tentar entender como essas situações afetam a vida de centenas, milhares, talvez milhões de pessoas? Se ainda não, esta reportagem, dividida em duas partes, é um convite para iniciar esta reflexão. No ano que vem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 70 anos. Mas situações como as citadas acima demonstram que muitas pessoas ainda não sabem por que ela foi criada.
Os direitos humanos nascem historicamente das lutas dos seres humanos que têm sido excluídos da condição de humanidade por outros seres humanos. Quem contextualiza é o pesquisador e integrante da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF) Paulo Carbonari. Segundo ele, ao longo da história muitos humanos não foram entendidos assim, ou se foram, tiveram sua humanidade considerada inferior àquela dos demais. Esse tipo de situação aconteceu em diversas civilizações. Entre os gregos, por exemplo, mulheres, escravos e estrangeiros eram humanos, mas com humanidade inferior que não lhes permitia participar da vida pública, das decisões sobre as questões comuns. Já para os romanos, as crianças eram propriedade de seus pais, particularmente do pater familiae, que tinha poder de vida e de morte sobre seus filhos. Na idade média, mulheres com conhecimentos desconhecidos pelos homens eram condenadas e queimadas por bruxaria. No renascimento, filósofos, teólogos e juristas discutiram longamente para decidir se indígenas das Américas eram humanos (Disputa de Valiadollid). Negros africanos foram trazidos à força para as colônias das Américas e foram escravizados, por carregarem a “maldição de Cam”.
História recente
Mais recentemente, na modernidade, mesmo que as mulheres tivessem participado da revolução francesa, por exemplo, que fez uma das primeiras declarações de direitos humanos, elas não foram incluídas nesta declaração que, a rigor era somente dos homens. “Olympe de Gouges foi guilhotinada por propor uma declaração dos direitos das mulheres”, exemplifica Carbonari. Ele continua lembrando que trabalhadores/as foram explorados por longas jornadas de trabalho e condições desumanas. Judeus foram tidos por inferiores e eliminados pelo nazismo. Pessoas com deficiência foram sinônimo de maldição e confinadas dentro de casa, razão pela qual não se precisou fazer cidades acessíveis por séculos. “A lista é imensa. Mas, foi porque estes sujeitos, mesmo de fato excluídos, se sentiram parte das declarações que afirmavam que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos que passaram a reclamar e a exigir direitos que foram sendo reconhecidos como sujeitos de direitos. Por isso é que, de 1948, quando as Nações Unidas proclamam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro, em diante, foram sendo feitas declarações, convenções, pactos, tratados e outros instrumentos internacionais que gradativamente foram dizendo que aqueles/as que estavam excluídos dos direitos em razão de serem diferentes, deveriam ser incluídos nos direitos humanos”, rememora.
É preciso considerar a diversidade
O pesquisador enfatiza que este processo culminou em 1993, quando as Nações Unidas realizaram a II Conferência Mundial de Direitos Humanos (em Viena) e, na Declaração e Programa de Ação, se afirmou que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes. “Isso não significa desconsiderar a diversidade, pelo contrário, significa que reconhecer a diversidade é condição para a afirmação da universalidade dos direitos humanos, não o contrário. Ou seja, o fato de haver pluralidade e diversidade de formas de vida, de classes, raças/etnias, gêneros e gerações, entre outros aspectos, não deveria ser motivo para deixar de reconhecer os direitos humanos. Para quem são os direitos humanos? Para todos os seres humanos”, resume.
Os DH foram criados especialmente para lembrar a todos os seres humanos que nenhum tipo de violência, violação ou vitimização de um ser humano pode ser aceita, em qualquer hipótese. “Não há motivo justo ou razoável para que se justifique qualquer tipo de desrespeito aos direitos dos seres humanos. Alguns dirão, mas e quando alguém viola os direitos de outra pessoa não estaria com isso perdendo a condição de humanidade protegida pelos DH? Ou seja, não seria o caso de defender direitos humanos somente para os “humanos direitos”, para os “homens de bem”? Afirmações deste tipo rompem com a universalidade e retornam a parâmetros anteriores aosDH. Relativizam os direitos humanos. Reproduzem práticas que vão ensejar novas formas de exclusão e o argumento que lhe dá sustentação, a rigor, é o mesmo que da sustentação ao racismo, à discriminação, ao machismo, à LGBTfobia, à exploração, enfim, a todas as formas de desqualificação dos humanos. Não há como querer direitos humanos sem o respeito a todos os humanos”, enfatiza. Para o estudioso, pensar de outro modo é agir contra os DH, porque significa agir contra a humanidade, para eliminar, diminuir, apequenar a humanidade que está nos humanos que estão na pior situação.
“Os direitos humanos só defendem quem não presta”
Esta é uma afirmação bastante comum no discurso das pessoas e que é refutada pelo pesquisador. “Isso nunca é verdade. Será que proteger mulheres violentadas por seus maridos dentro de casa, será que proteger crianças que sofrem violência e exploração sexual, será que proteger pessoas ameaçadas de morte, será que proteger testemunhas ameaçadas, será que proteger adolescentes ameaçados de morte por terem testemunhado crimes, será que proteger idosos violentados por familiares, será que proteger indígenas e quilombolas que lutam por um pedaço de chão, será que defender moradores que lutam por uma casa, será que defender sem terra que lutam por uma roça para plantar, será que defender pessoas com transtornos mentais, será que defender moradores de rua, será que defender os pobres, marginalizados, as mulheres negras, os jovens negros e pobres que vêm sendo mortos (são 70% das vítimas de homicídios), será que proteger gays, lésbicas e transgêneros é defender gente do mal? Não pode ser. Proteger direitos humanos é exatamente proteger todas as vítimas de violação, de violência e opressão, ajudando a estas pessoas para que se organizem e lutem para superar estas realidades desumanas e desumanizadoras”, pontua.
Necessidades humanas
Carbonari acrescenta que os direitos humanos estão presentes em todas as relações humanas. “Falar de direitos humanos é falar das necessidades humanas que precisam ser realizadas para que os seres humanos se realizem em dignidade. Todos os bens (materiais, simbólicos e espirituais) necessários à vida são reconhecidos como direitos humanos (casa, saúde, educação, ciência, ir e vir, liberdade de expressão, devido processo legal, não ser torturado, organizar-se, votar e ser votado, participar da cultura, e tantos outros) e também a dimensão subjetiva do reconhecimento como pessoa, que cada ser humano quer e deseja para si, mas que também só pode conseguir para si, se desejar e realizar com respeito em relação aos outros. Não há como alguém desejar algo ao outro que não seja o mesmo que pudesse desejar a si mesmo numa mesma situação”, exemplifica. Ele complementa que mesmo que muitas pessoas se justifiquem dizendo que nunca estariam em determinada situação, ninguém está livre de precisar se defender de uma acusação injusta. “E se isso ocorrer, como o faria se não houvesse a garantia e o direito do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Por isso é que todos são inocentes até que se prove o contrário. Pensemos como o mundo seria kafkiano se uma pessoa fosse de partida tida como culpada e tivesse que provar sua inocência – sempre que nos deparamos com situações como essa, falamos que há uma injustiça”, complementa.
Parte dois
A segunda parte desta reportagem abordará as principais violações dos Direitos Humanos que acontecem em nossa sociedade e também alguns dos principais mitos difundidos pelo senso comum.