Você sabe por que faz o que faz?

Apesar de nem sempre serem seguidas à risca, tradições de Páscoa têm significados que vão além do fazer só por repetir o comportamento

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A Páscoa tem distintos ritos e interpretações nas diferentes vertentes cristãs. No catolicismo, além dos ritos oficiais realizados nas igrejas, muitas pessoas seguem tradições estimuladas pela religião e outras cultivadas pelas próprias famílias. Algumas destas tradições remontam o início do cristianismo, outras tiveram o significado reinterpretado ao longo da história. Entre o jejum, a caridade e a oração, há também quem veja o significado da reunião das famílias neste momento. Mas a questão que surge é: será que as pessoas sabem os motivos pelos quais estão fazendo algo ou só estão repetindo a tradição?


O professor do Itepa Faculdades, padre Ivanir Rodighero, explica que a palavra Páscoa indica passagem e tem origem ainda no Antigo Testamento da Bíblia. Ele cita quatro importantes momentos. No primeiro deles, os pastores, quando chegava o período da passagem do inverno para a primavera e as ovelhas estavam prenhas, tinham medo de um espírito destruidor que viria e mataria os cordeirinhos. Por isso, eles pegavam um cordeiro macho, porque as fêmeas estavam prenhas, matavam e passavam o sangue ao redor do aprisco onde elas estavam e, com isso, se sentiam seguros e depois festejavam. Este é um dos motivos pelos quais a páscoa, no cristianismo, está sempre ligada ao cordeiro.


Há um segundo momento que está ligado à tradição do pão sem fermento, ainda no Antigo Testamento, também relacionada aos agricultores que, 50 dias depois que começava a colheita do trigo, faziam uma assembleia e ficavam sete dias comendo pão sem fermento para não misturar a farinha antiga com a nova. Um terceiro momento está relacionado ao exílio, quando o povo que foi escravizado no Egito foi liberado com a liderança de Moisés. “Eles conseguem fazer a passagem da escravidão para a libertação e agora o sangue vai ser passado na porta das casas”, explica sobre a ligação com aquele primeiro momento. No entanto, neste período a tradição de passar o sangue do cordeiro na porta das casas era para evitar a morte das crianças primogênitas das famílias.


A chegada de Jesus
Num quarto momento, a Páscoa passa a ser ligada a Jesus e a representar a passagem da vida para a ressurreição, a vida eterna. “Jesus é o cordeiro que tira o pecado do mundo e depois de Jesus não se realiza mais sacrifícios. Realizamos o memorial, recordamos o acontecimento”, pontua o padre. É a partir daí que começam a surgir algumas das tradições mantidas até hoje que se baseiam, principalmente, no tripé: oração, jejum e caridade.


A presidente da Congregação de Nossa Senhora, irmã Araci Ludwig, explica que o período da Quaresma, que inclui a Semana Santa, deve ser usado para uma oração mais aprofundada e a leitura da Bíblia. Neste sentido, o jejum também passa a ter uma releitura. “O jejum não somente o de não comer carne, mas também jejum, às vezes, da palavra, do ódio, essa é a postura do jejum”, explica. Neste período a caridade também é estimulada a fim de promover que as pessoas não vivam de forma isolada, mas sim no contexto do mundo em solidariedade.

Algumas famílias ainda segue à risca os costumes religiosos
Nas famílias as tradições são mantidas com maior ou menor intensidade e algumas também são criadas pelas próprias pessoas. O estudante Eduardo Scorsatto mora em Passo Fundo, mas é natural de Itapuca, um município da região norte, com aproximadamente 2 mil habitantes. “A partir desse dado já é possível constatar que, como é típico das pequenas cidades, um grande número de pessoas participa da vida comunitária na Igreja. Tem-se a Igreja como, além do lugar de cultivo da espiritualidade/religiosidade, também como um espaço de encontro, de diálogo e formação”, contextualiza.


Além desta dinâmica da participação nas celebrações e demais ritos da igreja, também surgem outros desdobramentos. “Há algo, que me parece ser uma herança cultural e religiosa que minha vó vive e que com ela experimentei em alguns anos atrás. Consiste em colher os ramos e as ervas para o Domingo no amanhecer do dia, ainda quando o orvalho deixa as plantas umedecidas. É uma postura da religiosidade popular, contudo não menos importante, que relaciona o orvalho com a presença do sagrado, com manifestação do Divino”, lembra (veja no box a explicação sobre a origem da tradição).


O estudante também avalia que a abstinência da carne, o silêncio, a postura de introspecção, o jejum, a esmola e a caridade são sinais, posturas e posicionamentos das pessoas que vivem a espiritualidade do período. “Inclusive, imagino, que se essas posturas forem somente gestos desassociados da vivência espiritual é preferível que não façamos porque empobrece a beleza que isso tudo carrega e exprime”, opina.


Eduardo conta que é descendente, em parte, de uma família de origem italiana e que isso implica no hábito cotidiano de pronunciar blasfêmias. “Lembro que quando era criança minha vó também alertava que nesses dias da Semana Santa não se podia blasfemar porque Jesus estava morto e não havia quem nos protegesse”, conta.

 

A celebração do encontro
Além dessas, a família do estudante segue outra tradição: a do almoço em família no domingo de Páscoa. “Tendo participado de todas as celebrações da semana, é hora de reunir os filhos na casa dos avós e partilhar da comida e da vida”, pontua. Ele acrescenta que para além da dimensão da fé, religiosidade e espiritualidade, que para ele são importantes, mas que outras pessoas podem perceber de outros modos, algo muito importante a se manter é a tradição do encontro. “Seja nos núcleos familiares, seja entre amigos, ou mesmo com desconhecidos, penso que o sublime dessas datas é o encontro. Se olharmos profundamente para itinerário bíblico, vemos uma figura de um Jesus que vive profundamente a espiritualidade do encontro e do conflito. Nisso vai manifestando a dinâmica da vida comunitária: um caminho de encontros direcionado a um projeto de vida coletivo”, argumenta. Por coincidência, neste ano ele não celebrará a Páscoa com a família.


Distância de casa
Morando longe da casa dos pais, Eduardo conta que ao se mudar teve a oportunidade de celebrar a Páscoa em outros lugares, com outras pessoas, de formas mais ou menos intensas. “Contudo, até então sempre vivi os ritos da Semana Santa”, esclarece ao lembrar que nem as pessoas que vivem com ele ou o planejamento pessoal nunca o inibiram de participar das celebrações e da vida comunitária. “Penso que esses elementos e outros da minha caminhada de fé se dão, em primeiro lugar, por ter vivido diariamente tanto tempo em Itapuca e na sequência por ter convivido muito com meus avós. Eles, mais do que a geração dos meus pais e a minha, são os transmissores da fé. Cumprem por isso, dentro da comunidade, um papel fundamental”, relata.


E hoje?
O padre Ivanir também pondera que, apesar das tradições, hoje existem diferentes posturas. “Uma primeira é uma postura que mantém o universo espiritual, se busca as raízes da fé, é um momento forte de encontro com Jesus e as pessoas acabam se abastecendo nesse momento. Não raro, as famílias realizam a confissão e participam ativamente da comunidade eclesial”, pontua. “Infelizmente existem outras posturas que estão um pouco esvaziadas e entram em universos consumistas, em que o importante é dar presentes e questões desvinculadas do sentido da Páscoa como tal e acabam aproveitando esse momento para um descanso e acabam se esquecendo da dimensão espiritual que é tão importante para o nosso progresso”, conclui.

 

Conheça a origem de algumas tradições de páscoa
Via Sacra – A irmã Araci explica que a tradição se iniciou por volta do ano 300 d.C quando a comunidade cristã tentou fazer a memória do que foram os últimos momentos da vida de Jesus na terra. As 14 estações, número também simbólico por ser a soma de sete mais sete, retratam o caminho de Jesus até a Cruz. A celebração acontece tanto nas igrejas, muitas das quais tem a representação das estações em pinturas, vitrais ou quadros, quanto de outras formas, como acontece em Guaporé, a cerca de 100 quilômetros de Passo Fundo, em que, na manhã da Sexta-Feira Santa, é realizada a procissão ao Morro do Cristo em que pessoas da comunidade representam os acontecimentos da Via Sacra. “Hoje se diz que são 14 estações e a 15ª, que representa a ressurreição, não é estação, porque a ressurreição é dinâmica, é movimento”, explica. Segundo ela, o objetivo da Via Sacra e de outras celebrações da Semana Santa não é o de fazer apenas uma lembrança do passado, mas também de atualizar o que foi a paixão, morte e ressurreição de Jesus. “Os três últimos dias devem ser vistos no seu conjunto”, reitera.


O jejum e o hábito de não comer carne vermelha
A religiosa explica que a tradição do jejum e de não se comer carne na Sexta-Feira Santa representa diferentes aspectos. Um deles é o de se colocar em posição de solidariedade com as pessoas que não têm acesso a esse tipo de alimento. Outro significado é o de demonstrar a importância do cuidado com a saúde das pessoas, tendo em vista que a carne de peixe que substitui a carne vermelha apresenta características saudáveis para as pessoas. “Mas o mais importante de tudo isso é o espírito com que a pessoa faz. Muitas vezes se coloca que na Sexta-Feira Santa não se come carne, mas come peixe a vontade, também não é isso”, pondera. Apesar de ser uma tradição da Igreja Católica, pessoas doentes, acima de 60 anos, ou em situação de vulnerabilidade não precisam fazer abstinência.

 

Ficar em silêncio
Essa tradição também é encontrada em algumas famílias. A irmã explica que isso traz mais presente o sentimento das pessoas. “O que acontece quando morre um familiar? A gente não faz festa. Tem tradições culturais que fazem, mas de modo geral, o sentimento humano é de perda e então é silêncio, meditação, reflexão e traz esse aspecto. A igreja internalizou esse aspecto daquilo que faz parte da dinâmica de vida humana”, explica. O padre Ivanir complementa que o silêncio também é um reflexo da postura de oração.

 

Cobrir as imagens de santos nas igrejas
O padre Ivanir explica que esse costume geralmente começa na quinta-feira à noite. “Se celebra a eucaristia, e então aparece este vazio, este silêncio e se conclui com adoração ao Santíssimo e é feito um translado a um altar lateral, nas igrejas que podem fazer isso, e demonstra o grande vazio e é o processo em que se faz memória do assassinato de Jesus. O altar também fica sem toalhas”, esclarece.

 

Colheita das ervas
A colheita das ervas como a macela tem um resquício de significado bíblico. Na Páscoa dos hebreus, da escravidão para a libertação, eles comiam ervas amargas para provocar as crianças. Se comia as ervas amargas e as crianças começavam questionar os motivos e os mais velhos contavam sobre a vida no Egito, que foi marcada pela escravidão e pela dor e comiam as ervas para nunca mais voltar à escravidão. “Hoje, o ato de colher macela e outros chás traz presente a preocupação com a saúde e que na própria natureza temos os elementos para termos uma vida com dignidade. O ato de colher esses remédios e invocar a benção de Deus traz essa dinâmica de que a obra criadora é portadora de vida”, aponta.

 

Único dia sem a eucaristia
Uma última curiosidade é de que a Sexta-Feira Santa é o único dia em que a Igreja Católica não celebra a eucaristia. “Celebramos a paixão de Jesus e é uma celebração que vem com a marca da dor por causa do que aconteceu com Jesus”, explica ao lembrar que a violência o que aconteceu com Jesus também é relembrado na Campanha da Fraternidade deste ano que busca estimular a reflexão sobre a superação da violência e estimular que as pessoas tenham atitudes que levem à paz.

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