No fervor de uma manifestação pública desencadeada pela alta no preço dos combustíveis, pedidos de “intervenção militar constitucional” ganharam espaço em faixas e discursos contra o governo de Michel Temer. Para os defensores, esta seria uma possível solução para a crise pela qual o país passa e uma maneira de enfrentar a corrupção. No entanto, o termo defendido é inexistente na Constituição, explicam especialistas.
A solicitação de parte da população reivindica às Forças Armadas um papel que não lhes cabe. Tal ação iria contra os próprios princípios da hierarquia e da disciplina, como prevê o artigo 142 da Constituição Federal, que estabelece às Forças Armadas a competência de três funções: defesa da pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Sobretudo, determina a subordinação delas à autoridade suprema do presidente da República.
Para o professor de Direito Civil da IMED e doutor em Direito Público, Fausto Morais, não se pode reconhecer espaço político e jurídico para que as Forças Armadas assumam um papel político e tomem o governo do país. “Numa breve linha: as Forças Armadas estariam agindo de forma ilegal se postulassem promover uma intervenção no Brasil”, esclarece. “Se o Presidente comete abusos, temos, graças à democracia e à Constituição, instrumentos que movimentam o Poder Judiciário à garantir o direito de todos. Isso vale também às Forças Armadas. Se elas passam dos limites jurídicos, temos o judiciário para salvaguardar os nossos direitos constitucionais”.
Defender a intervenção militar é, por consequência, um ato antidemocrático. Conforme Morais, em tempos de instabilidade social e política, a população deve clamar mais pela democracia do que pela intervenção militar. “Isso passa por observar a Constituição como forma de proporcionar estabilidade jurídico-política às instituições democráticas. O núcleo da nossa Constituição é garantir uma sociedade democrática, algo totalmente incompatível com uma intervenção militar. A Constituição Federal de 1988 foi produzida após um longo tempo de regime militar e, talvez observando isso, criou-se um papel institucional específico às Forças Armadas”.
Intervenção reivindicada equivale a golpe militar
Segundo o doutor em Filosofia e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH), Paulo Carbonari, compactuar com a ideia de intervenção militar é incompatível com pessoas democratas, que valorizam os direitos humanos e apoiam valores como respeito, dignidade, humanidade e luta social. “É, na minha avaliação, primeiro, um atentado contra a consciência democrática e, segundo, uma declaração de falência ou incompetência cidadã”, opina.
O filósofo explana que a intervenção militar que está sendo pedida pela população não é aquela prevista pela Constituição e que tem sido implantada no Rio de Janeiro, por exemplo, por problemas de segurança pública. “O que elas querem é um golpe militar. Ou seja, que os militares assumam o poder do país, como já fizeram em outras épocas, sobretudo em 1964. Quem advoga golpe militar, advoga destruição da democracia. Efetivamente, ao assumir um governo dessa maneira, rompem-se os processos democráticos. Rompe-se aquilo que a Constituição determina ser o processo através do qual o povo exerce o poder, com processos eleitorais e alternância de poderes, por exemplo”. Esperar que o poder político emane e seja exercido por líderes militares, portanto, desrespeita o artigo 1º da Constituição.
Para Carbonari, a intervenção militar solicitada equivale à ditadura militar que vigorou no país de 1964 a 1985 e gerou um Estado de Exceção, suspendendo temporariamente direitos e garantias constitucionais. “Quem pensa em intervenção militar sobre esse ponto de vista, não tem outro nome. Pode ser um eufemismo, mas o que está defendendo é ditadura militar. Isso não faz bem para ninguém. Não se cura a democracia com menos democracia. Só se cura a democracia com mais democracia. Só se cura a liberdade com mais liberdade. Só se cura a injustiça promovendo justiça”.
Na avaliação do filósofo, acreditar que os militares apresentariam soluções mágicas para problemas que nem os melhores quadros e organizações políticas foram capazes de resolver, é ingenuidade. “A crise do abastecimento, dos combustíveis, não tem a ver só com a incompetência e incapacidade desse governo. Tem sim a ver com a política desse governo, mas tem a ver também com a lógica toda do mercado internacional que joga nos combustíveis um campo fundamental de acumulação de riqueza. São opções políticas, mas elas também são condicionadas por lógicas de mercado”.
Assim como o filósofo, Fausto Morais defende a necessidade do exercício democrático e do cumprimento da ordem constitucional estabelecida. “Se assim não o for, corremos o risco de perdermos as nossas liberdades mínimas – como o direito à liberdade de expressão, o direito à manifestação e o direito de liberdade de imprensa, por exemplo – em prol de uma utópica realidade de uma vida melhor com a intervenção. Não se pode cair nessa armadilha. Não podemos esquecer que o regime militar produziu, acima de tudo, um Estado de Exceção. Isto é, eram aplicadas as leis da forma que o regime achava melhor, sonegando direitos mínimos das pessoas”, finaliza.