Ivo Francisco Ferrão perpassa as repartições do que sobrou da estrutura do frigorífico Planaltina. Aponta para as seções e descreve como tudo funcionava, com uma memória que parece inabalada. A entrada dos funcionários da indústria era pela Rua Dorvalino Souza, onde também funcionava um comércio de carne. Antes da porta que dava acesso à indústria, mais especificamente ao setor de abate, os trabalhadores batiam o ponto numa pequena repartição. Ao canto, hoje há uma capelinha com alguns tijolos dentro. Antigamente, porém, quando as máquinas funcionavam a todo vapor, ali ficava uma pequena réplica de São José Operário, padroeiro dos trabalhadores. Católico devoto, foi Ferrão quem o levou para o local. Antes de começar o expediente, pedia benção e proteção.
O santo protetor cansou de ver o antigo operário madrugar no frigorífico. “Teve muitos dias em que eu começava às 4h da manhã, era o primeiro a chegar. Ia até às 10 horas da noite”, relembra. Àquele tempo, as indústrias possuíam uma metodologia diferente de trabalho, conforme explica o doutor em ciências sociais, João Carlos Tedesco. “Não havia muito planejamento de oferta. Vamos imaginar que chegaria um caminhão, de Santa Catarina, cheio de porcos. O caminhão não conseguiu chegar antes das 23h. O pessoal que morava próximo das casas operarias ou próximo do frigorífico às 23h tinha que dar um jeito de ir lá solucionar o problema da descarga dos porcos”, descreve. Tedesco, que também é “Frigoríficos professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), pesquisou, junto de alunos, sobre a influência dos frigoríficos no desenvolvimento da cidade. Os resultados estão nos livros e olarias em Passo Fundo: dinâmicas industriais em sinergias - 1940-1980” e “Agroindústrias, Frigoríficos e Cooperativismo: evoluções e contradições nas lógicas de desenvolvimento de Passo Fundo. 1950-1990”.
Além dessa questão de imprevisibilidade, os funcionários se instalavam perto da fábrica porque não havia um desenvolvimento da área como hoje. O espaço era uma mediação, conforme Tedesco, entre “a lavoura e o urbano que se constituía muito distante de onde estavam situados os frigoríficos”. A ideia de instalar os operários próximos dos frigoríficos foi uma estratégia dos donos das indústrias. O primeiro a fazer isso foi Zeferino Costi, proprietário do Z de Costi, que montou em torno de 40 casas operárias – que eram do frigorífico, mas que abrigavam os trabalhadores. A indústria de Costi ficava localizada, em partes, em um terreno que hoje abriga o Passo Fundo Shopping. O Planaltina fez diferente. Ele foi loteando pedaços de terras, que pertenciam ao frigorífico, e as pessoas foram comprando. Assim foi se criando uma vila operária ao redor.
A necessidade de facilitar a moradia dos funcionários também era uma consequência da migração. “Ambos os frigoríficos se situaram em uma região que hoje se chama São Cristóvão, mas que na época se chama Vila Vitório Veneto, que era constituída por migrantes da colônia de Guaporé, da colônia de Caxias, que se estabeleceram nessa região. Migravam do nordeste do Rio Grande do Sul e assim começou a se estabelecer uma mão de obra. Muitos migraram para Passo Fundo por causa dos frigoríficos”, analisa o professor.
Era comum que empresários fossem às comunidades do interior para conseguir mão de obra. Assim foi com Ivo Ferrão. De uma família humilde, saiu do Distrito de São Roque, interior de Passo Fundo, na década de 50. Ainda guri, ele trabalhava com o pai e os irmãos em uma pedreira própria, quando a família recebeu a visita do empresário Zeferino Costi. “Eles disseram: vamos levar um para trabalhar. Aí, se trabalhar bem, a família toda pode ir. Então meu pai me escolheu para representar a família e eu fui”, relembra Ferrão.
Ele começou a trabalhar ainda na construção do frigorífico. Como não tinha medo do trabalho pesado, como ele mesmo reporta, o garoto logo impressionou os donos da indústria e os levou os irmãos para o ofício. Em seis meses o jovem recebeu três aumentos de salário pela produção e responsabilidade no trabalho. Trabalhou pouco mais do que cinco anos na empresa da família Costi. Apesar do pouco tempo que foi empregado, a indústria teve um papel importante na vida de Ferrão: foi lá que conheceu a mulher com quem, posteriormente, viria a constituir uma família: Maria de Lurdes. Casaram-se em 1954.
Dois anos depois, após uma cisão entre os proprietários do Z de Costi, o Planaltina é fundado pelas mãos de Felix Sana. A empresa surgiu nos mesmos moldes das Indústrias Reunidas Francesco Matarazzo (IRFM): uma sociedade anônima. Os Matarazzo foram, durante anos, o maior conglomerado industrial do Brasil e da América Latina. Tedesco explica que ter funcionários cotistas era uma prática comum no Brasil, a exemplo do que faziam os Matarazzo. O IRFM também entrou em concordata na década de 80.
Sana constituiu um pequeno matadouro e foi pegando funcionários que eram atraídos para a empresa uma vez que, além do emprego, eles poderiam se tornar um dos donos da indústria. “Em 1961, os sócios já detinham 60% do capital. Em cinco anos ele capitalizou o negócio e montou uma sociedade”, reconstitui o professor da UPF.
Em 1963, Alberto Zílio entrou na sociedade com porcentagem considerável de ações. Ele era comerciante de porcos e integrou o corpo de diretores da empresa. Outros nomes que passaram pela diretoria foram: Juarez Zilio, FiorindoCervieri, Cyro Marques e Marcelino Andreis. Felix Sana se destituiu da diretoria para conduzir o Frigorífico Nacional, em Carazinho, mas retornou para o Planaltina alguns anos depois. Alberto Zilio se afastou em 67, em virtude de desentendimentos com outros membros da diretoria, Juarez saiu por motivos políticos e Cervieri foi tocar um negócio do mesmo ramo em outro município. Andreis ficou até o fim. Todos os antigos diretores citados já faleceram.
“Criei minha família trabalhando lá”
Com o rompimento de Sana no Z de Costi, Ferrão recebeu uma proposta e foi trabalhar no novo frigorífico. Já com experiência pelo emprego anterior, ele começa como operário no setor de desossa. “Eu cheguei a desossar 66 porcos, sozinho, em um dia”, relembra. A pró-atividade de Ferrão logo o levou ao cargo de chefia, à época denominado capataz. “Eles precisavam de alguém para comandar o setor. Eu tinha experiência e todo mundo me conhecia lá, então também tinha o respeito dos colegas”, alega, sobre os motivos que o levaram à promoção.
A dedicação pelo frigorífico e pela comunidade, sobretudo, pelo ato de bravura ao ter arriscado sua vida para salvar a vida de dois colegas de trabalho, rendeu a Ferrão o mérito de Operário Padrão de Passo Fundo, em 1972, em um concurso realizado pelo Sesi. Perdeu o título de Operário Padrão Nacional, por não ter servido ao exército. As placas com as congratulações, que incluem ainda os títulos de Vereador Destaque e Cidadão Honorário de Passo Fundo, que recebeu durante sua trajetória têm lugar especial no corredor de sua casa, na Vila Planaltina.
Além das homenagens, fala com simpatia sobre os anos do Planaltina. “Eu criei a minha família trabalhando lá. Todas minhas filhas mulheres trabalharam lá no Planaltina”, reconhece. Ferrão só saiu do frigorífico porque foi eleito vereador, em 1977. Iniciava, naquele ano, sua jornada na vida política, assumindo diversos cargos no legislativo e em entidades sem fins lucrativos, como a Leão XIII.
O fim do ouro branco
A história dos frigoríficos em Passo Fundo só foi possível pelo desenvolvimento intenso da agricultura no município, em especial pela cultura do milho. Conforme Tedesco, os produtores encontravam dificuldade em vender o grão aos moinhos, cuja comercialização principal era o trigo. “O milho era para se transformar em carne. Tínhamos uma grande oferta de milho, uma grande oferta de suínos e não tinha frigoríficos”, explica.
O cenário favoreceu o aparecimento de matadouros. Porém, apesar da utilização completa da matéria-prima, a carne e os embutidos não eram os principais produtos dos frigoríficos. Nem mesmo o couro, ainda que o produto tenha sido exportado durante anos. O Planaltina chegou a participar de feiras de exposição de couro na Europa. Porém, a banha era o produto por excelência, chamado ouro branco.
O produto, contudo, caiu em desuso com a cultura da soja, que inseriu o óleo na cozinha dos consumidores. “O mercado da banha foi pressionado, precisou reduzir o valor comercial e inviabilizou a produção. O azeite entrou na casa das pessoas. Começou uma propaganda de inversão alimentar”, aponta Tedesco. Na última fase da indústria, a banha foi um dentre outros motivos que culminaram no fechamento da empresa. “São várias causas que se dão no início da década de 80, que juntas resultaram na falência. Não foi só o Planaltina, foram inúmeros. Em Marau, Serafina Correa, Nova Bassano, Muçum, Guapore. Quase todos fecharam no início da década de 1980”, afirma o professor.
Já trabalhando pela comunidade como vereador, Ferrão diz não ter visto de perto o fechamento do Planaltina. “Quanta gente perdeu o emprego [quando fechou], dá uma tristeza quando a gente passa por lá”, confessa. O fim definitivo da empresa veio depois de anos de debilidades. “Houve um começo de um fim em meados dos anos 60. A consequência vem depois, porque ele já estava bastante fragilizado”, enfatiza.
Além da queda do mercado do ouro branco, a forma de produção da banha também se alterou de acordo com as exigências fitossanitárias da época e exigia tecnologia. Porém, frigoríficos da região não tinham recursos para a implementação. O Planaltina também começou a ter problemas internos. Após uma série de desentendimentos, houve uma destituição da diretoria. Com isso, alguns membros foram saindo da sociedade, e, por consequente, retirando seus investimentos.
Aliado a isso, o frigorífico tinha problemas de cunho ambiental. Largava os dejetos em um arroio próximo. Com a expansão do bairro, o rio passa muito perto das casas e os moradores passaram a reclamar do mau cheiro. Começou então uma pressão da comunidade e dos órgãos de fiscalização para que, se quisesse continuar operando, a indústria fizesse profundas alterações. O que ocasionava um custo altíssimo. “É contraditório. A vila cresceu por causa do frigorífico e as ações do frigorífico tornavam quase inviáveis a vida cotidiana dos moradores, pelo odor dos dejetos da indústria e principalmente pelo curtume”, destaca Tedesco.
Com o mercado enfraquecido, a destituição de alguns sócios, a empresa não tinha condições de aplicar as mudanças exigidas para continuar operando. Por fim, na década de 80, grandes empresas do setor chegam à região. A Perdigão (hoje marca pertencente ao grupo Brasil Foods), por exemplo, comprou o frigorífico Borella de Marau. A nova dona implantou uma nova metodologia de produção de suínos, que incluía o planejamento de oferta da matéria-prima (suínos). “Se o Costi ou o Planaltina quisessem aderir a esse sistema teriam de alterar todo o processo produtivo, desde o abate. A Perdigão montou um sistema de integração de produção de suínos. Contratou várias unidades para produzir suínos de forma planejadas”, coisa que não acontecia nos frigoríficos de Passo Fundo, segundo o professor.
Os frigoríficos não conseguiram se sustentar. Em 1983, o Planaltina entrou em concordata. O último setor a fechar foi o curtume em 1985. O termo não é mais usado desde 2005, quando a Lei 11.101 entrou em vigência e suspendeu os processos de concordata. As empresas com dificuldades financeiras podem, desde então, entrar com pedido de recuperação judicial, extrajudicial ou falência do empresário.
Processos judiciais
Na Justiça, diversos processos envolvem a empresa. Em sua maioria são ações de usucapião que reivindicam a posse de imóveis localizados na Vila Santa Rita. Em outras épocas, os terrenos pertenciam ao frigorífico. Há também processos de execução fiscal do município, pelo não pagamento do tributo do IPTU em diversos imóveis deste mesmo loteamento que estão em nome do Planaltina. Nenhum desses processos diz respeito ao imóvel da Avenida Presidente Vargas, onde funcionava o frigorífico.