O dia 26 de julho representa um divisor de águas na vida de Jady da Silva Pauletto. Por volta das 14h40min, ela estava em casa, realizando seus afazeres, quando recebeu uma ligação do Cartório de registro civil. No outro lado da linha, o funcionário comunicou que a nova certidão de nascimento dela estava pronta. Naquele momento, o nome masculino, escolhido pelo pai, em homenagem a um ex-jogador do Grêmio, deixava de existir oficialmente. "Foi uma emoção muito grande ser reconhecida como mulher pela Justiça, pela lei. Saí correndo, do jeito que estava para buscar o documento. Finalmente havia me livrado de um nome que representou um peso durante toda minha vida".
Jady foi beneficiada com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a possibilidade de pessoas trans alterarem o nome e o sexo sem a necessidade de cirurgia. A decisão é de 1º de março deste ano. Desde lá, 21 pessoas já realizaram a troca no Cartório de Passo Fundo. O número é considerado um dos mais elevados do Rio Grande do Sul. Ela orgulha-se de ter sido a primeira a conseguir o documento após o provimento 73, de 28 de junho, da Corregedoria Nacional de Justiça, que regulamentou a decisão.
Assim que soube da aprovação do STF, ela buscou orientação de amigos, ligou para o cartório e começou a reunir toda a documentação necessária. No caso de Jady, o processo todo levou cerca de uma semana para ser concluído. A nova certidão de nascimento serviu para ratificar formalmente, uma situação que já estava há muitos anos resolvida na cabeça dela. "Só nasci no corpo de um homem. Nunca me senti como sendo um”, comenta.
Conhecida por todos como Jady, a decisão em trocar de nome, segundo ela, foi tomada recentemente, motivada principalmente, para evitar algumas situações rotineiras que se tornam embaraçosas. Como no dia em que pagou uma conta com um cheque e a dona da loja estranhou o nome. Quando acontecia de ser chamada em voz alta em algum consultório médico ou repartição pública pelo nome masculino. Ao ser parada numa blitz da Brigada Militar, apresentar a carteira de habilitação e o policial suspeitar. “Outro dia aconteceu essa situação. O soldado ficou uns 15 minutos dentro da viatura conferindo. Claro, o nome não batia com a pessoa. Ele me orientou a fazer uma documentação nova para não responder processo por falsidade ideológica” conta. Por isso, resolvi mudar", revela.
Trajetória
O novo nome e a descrição ‘feminina’, no campo destinado ao sexo na certidão de nascimento, é mais uma conquista na busca pela identidade de gênero. Desde muito cedo, Jady já percebia o transtorno de se ver em um corpo masculino. Diferente dos meninos de sua idade, não gostava das aulas de educação física. Sempre que podia, depilava as pernas e se escondia para usar as roupas da irmã mais velha. "Quando me apresentaram uma bola e uma boneca, peguei a boneca. Quem está de fora enxerga, mas quem está dentro disfarça que não vê", afirma.
Depois de passar a infância e parte da vida adulta usando roupas unissex, a mudança veio após uma viagem a Londres, onde conheceu duas trans brasileira. “Havia perdido minha mãe, a pessoa mais importante da minha vida, resolvi viajar para lá. Essas duas trans me incentivaram muito. Quando voltei, seis meses depois, passei a usar salto, bolsa e tudo mais”, conta.
Na mesma época vieram as cirurgias estéticas. A primeira foi a retirada do pomo-de-adão (saliência do osso do pescoço). Mais tarde, o implante de prótese de silicone nos seios, e tantas outras. Atualmente, afirma ter perdido a conta de quantas intervenções já se submeteu. Jady chegou a pensar na possibilidae de realizar a cirurgia de redesignação sexual (troca de sexo), entranto, desistiu da ideia em razão da complexidade e riscos que envolvem o procedimento.
Preconceito
Jorge, 40 anos, conta que costumava esperar os funcionários de um bar, na área central de Passo Fundo, largar as sobras de alimentos no lixo, no início da manhã, para fazer a primeira e, muitas vezes, única refeição do dia. Com a falência da revenda de veículos, em que era sócio, na cidade de Marau, ele conviveu com essa situação até o dia em que Jady cruzou seu caminho e transformou a vida dele. "Eu mesmo tinha preconceito em relação aos gays e trans. Não aceitava, mas comecei a conversar com ela. Fui conhecendo a pessoa e não separei mais. O que eu sou, e o que tenho é graças a ela", enfatiza.
Os dois estão juntos há 11 anos. Durante esse período, Jorge conta ter enfrentado inúmeras situações de preconceitos nos mais diferentes ambientes. "Ninguém chega e fala olhando no olho. São risadas, comentários, sempre pelas costas. Fui chamado várias vezes de gay. Em algumas situações convidei para o boxe (luta corporal), mas eles não vêm. Nas entrevistas de emprego também acontece, já perdi vaga em razão do meu casamento", lamenta.
Além da relação, o casal enfrenta o preconceito pela opção religiosa de matriz africana. Jady é ialorixá (mãe de santo), e também taróloga. "Para evitar situações desagradáveis como essas, praticamente abrimos mão da vida social. Nos reunimos com alguns amigos em casa, mas não saímos. Foi uma opção. Não vou encontrar outro homem como ele. Me aceitou da maneira que sou, abriu mão de muitas coisas pra ficar comigo", completa Jady.