De plano secreto à piada na internet

Sigla usada por Cabo Daciolo em debate presidencial agitou internet durante fim de semana

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No primeiro debate televisivo dos presidenciáveis, promovido pela Band no dia 9 de agosto, um termo agitou a internet e virou até pauta de eventos. Trata-se da URSAL, a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, uma espécie de teoria da conspiração dos países latinos para formar um governo integrado de esquerda. A sigla foi citada pelo candidato do Patriota, Cabo Daciolo, quando sugeriu que Ciro Gomes (PDT) era um dos integrantes do grupo e solicitou respostas.


“Ciro, o senhor é um dos fundadores do Foro de São Paulo. O que o senhor pode dizer aqui à nação brasileira sobre o plano Ursal, União das Repúblicas Socialistas Latino-Americanas?”, sugeriu Daciolo. "Meu estimado cabo, tive muito prazer de conhecê-lo hoje e pelo visto o amigo não me conhece. Eu não sei o que é isso, não fui fundador do Foro de São Paulo e acho que está respondido", devolveu Ciro Gomes.
O candidato do Patriota levou a sério e insistiu que Ciro sabia sim do que se tratava a URSAL, segundo ele uma “nova ordem mundial”. Nesse plano, segundo Daciolo, as fronteiras seriam todas eliminadas, transformando os países latino-americanos em uma única nação. "Quero deixar bem claro que no nosso governo o comunismo não vai ter vez", certificou o Cabo. "Democracia é uma delícia, uma beleza, dei por ela a vida inteira, e continuarei dando, mas ela tem custos", rebateu, de forma irônica, Ciro, provocando o riso da audiência.


A internet não perdoou. Instantaneamente o assunto virou piada nas redes sociais. Teve montagem dos ursinhos carinhosos, possíveis escalações da nova seleção da URSAL, logos da nova união e até o debate sobre como ficaria a Copa Libertadores da América. A pré-candidata do PCdoB Manuela D’Avila entrou na brincadeira e disse que chamaria Pepe Mujica, político uruguaio, para integrar a presidência da URSAL.
Em Passo Fundo também teve descontração com o tema. A Casa de Cultura Vaca Profana organizou uma “reunião dos membros da URSAL Passo Fundo”. Na descrição do evento anuncia-se que o plano de dominação mundial não está mais seguro e que identidades foram reveladas. Ao fim, a casa informa que a reunião não passa de uma brincadeira. O encontro, para beber e dançar, no entanto, segue marcado para o dia 16 de agosto.

Socióloga diz ser autora da sigla
Depois de todo alvoroço, não tardou a aparecer a mãe da criança. Na segunda-feira (13), a socióloga Maria Lucia Victor Barbosa afirmou ser a autora da sigla. Em entrevista à Folha de São Paulo, ela disse que usou o termo pela primeira vez em 2001, ocasião em que criticou um discurso do ex-presidente Lula, em Cuba. "Mas qual seria, me pergunto, essa tal integração no modelo Castro-Chávez-Lula? Quem sabe, a criação da União das Republiquetas Socialistas da América Latina (URSAL)?", pontuou Maria Lucia, à época. O termo acabou fugindo do controle da socióloga e sendo adotado por pensadores conservadores do país. Em 2006, o filósofo Olavo de Carvalho usou o termo em um artigo intitulado “Os inventores do mundo futuro”, que foi publicado pelo Diário do Comércio.


Que história é essa de comunismo?

Para além das piadas, o tom sério de Daciolo ao questionar Ciro Gomes sobre o plano expõe um medo que ainda assola parte dos brasileiros: o comunismo. Afinal de contas, qual é a origem desta ideia de causa tanto pavor? Fantasma que assombra o Brasil desde a década de 1930, esses ideais surgiram ainda no século XIX, com os chamados "socialistas utópicos". As concepções foram encabeçadas por Charles Fourrieur e Henry de Saint-Simon, pensadores que visavam uma sociedade mais justa em uma época marcada por miséria e exploração das classes mais pobres, de acordo com o doutorando em políticas públicas e professor da UPF, Vinicius Rauber.


O professor relembra que, em um primeiro momento, os conceitos ganharam força na Europa a partir dos estudos de Marx e Engels, com o surgimento do socialismo científico. O medo ficou mais evidente depois da Revolução Russa, em 1917, que culminou na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), quando trabalhadores derrubaram o regime czarista e assumiram o poder. “A partir de então o medo do socialismo ganhou força e os movimentos operários ao redor do mundo apareceram. No Brasil, estas ideias chegaram especialmentepor meio dos imigrantes italianos, que trouxeram principalmente ideias anarquistas, e, posteriormente, com o surgimento do Partido Comunista em 1922”, explica Rauber.


Com a criação da União Soviética, a causa ganhou simpatizantes ao redor do mundo. “Aqui no Brasil nós temos o famoso caso da Intentona Comunista de 1935, o primeiro grande evento desta matriz ocorrido, com os comunistas liderados por Luis Carlos Prestes, procurando derrubar o governo de Getúlio Vargas”, relembra. Desde então, a “revolução comunista” foi pretexto para uma série de eventos políticos que deixaram sua cicatriz na história do país.


Entre eles, Getúlio Vargas, em 1937, usou a ideia para criar o Estado Novo. Outro momento em que o discurso foi usado foi em 1964, quando o presidente em exercício João Goulart foi acusado de ser comunista. A desculpa culminou em um golpe de estado que ficou conhecido, posteriormente, como Ditadura Militar. “A ideia de uma "revolução comunista" tem sido usada desde então pelos setores elitistas e conservadores do Brasil para amedrontar a população e executas golpes políticos para a implementação de ditaduras”, alega Rauber. O professor ainda relembra o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que “usou a ideia de que o Brasil estava caminhando rumo a um comunismo ou socialismo, para retirar a então governante do poder”.
“Comunismo nunca existiu”


O medo do comunismo também é fruto de uma confusão que se faz ao colocá-lo como sinônimo do socialismo. O professor explica que socialismo e comunismo são estruturas socioeconômicas distintas. “O socialismo que ocorreu na União Soviética e em Cuba foi uma tomada dos meios de produção pelos trabalhadores, que passaram a governar o Estado. Ai surge toda uma burocracia estatal com poder, mas não há a ideia de que uma fábrica possua um dono, por exemplo. Ela é propriedade do Estado”, explica. “Já o sistema comunista nunca chegou a existir, é a ideia de que superado o capitalismo e o socialismo chegaríamos numa sociedade sem classes. Como a função do Estado é manter a dominação de uma classe sobre a outra, uma sociedade sem classes poderia ser sem Estado”, diferencia.


Difícil de ser implantado no Brasil
Questionado sobre a possibilidade de uma revolução comunista no Brasil, Rauber acredita ser difícil em um curto prazo. As principais razões são que a sociedade brasileira é complexa e, uma mudança estrutural deste porte não poderia ocorrer sem a vontade da população. “A sociedade brasileira é ainda muito conservadora e tradicional (que não aceitaria tão facilmente as ideias socialistas de governo), com uma elite muito poderosa (que não aceitaria a socialização de suas empresas), e sob vigilância do capitalismo internacional e dos EUA (que não aceitaria no cenário internacional uma revolução socialista sem interferir neste processo para evitar que ela ocorresse)”, garante.


Por tanto, para o cientista político, estas ideias, como do Cabo Daciolo e de Olavo de Carvalho, “de que estamos perto de uma revolução socialista no Brasil não passam, mais uma vez na história, de desculpas, ora inocentes por falta de conhecimento, ora mal intencionadas por falta de escrúpulos, para assumir o poder”.


Longe disso, os projetos reais no Brasil incluem propostas, por um lado, baseada na menor interferência possível do Estado, e de outro, com maior intervenção do Estado, incluindo um sistema de proteção social forte e efetivo. “Qualquer leitura do Brasil em termos de socialismo versus capitalismo não passa de uma interpretação equivocada da realidade política e socioeconômica do país”, finaliza.

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