A agricultura brasileira tem desafios a serem superados no médio e no longo prazo. O aumento da demanda por alimentos e também por formas alternativas de energia exigirão do país um melhor gerenciamento de recursos e, especialmente, dos riscos que envolvem essas atividades. Os reflexos dessas mudanças serão sentidos, inclusive, na nossa região, que tem na agricultura uma importante parcela de seu PIB. O Nacional convidou o pesquisador Gilberto Cunha que é uma das referências na área para falar sobre gestão de riscos em agricultura, especialmente relacionados com os zoneamentos de risco climático.
O NACIONAL – O Brasil está entre os principais países produtores e exportadores de alimentos no mundo. Nossa agricultura tem sido responsável por parcela relevante no desempenho da economia nacional. Sendo assim, precisamos nos preocupar com gestão de riscos na nossa agricultura?
Gilberto Cunha – Exatamente por essa importância econômica da atividade agrícola, pelo que ela representa hoje para a economia do País, é que não podemos mais ignorar a gestão integrada de riscos na agricultura brasileira. Projeções indicam que a demanda mundo mundial por alimentos, fibras e energia deve crescer em índices que podem chegar aos 40% nos próximos 12 anos (até 2030). Isso sinaliza um cenário positivo para a agricultura nacional, mas não a isenta das fragilidades inerentes ao setor, razão pela qual a gestão de riscos na atividade agrícola vai assumir importância cada vez maior ao ponto de se tornar, eu diria, imprescindível. Vislumbra-se que o protagonismo da agricultura brasileira no mundo tende a aumentar.
ON – Então quais os nossos desafios em gestão de risco nessa atividade?
Cunha - A disponibilidade de recursos naturais, algumas políticas públicas diferenciadas, a competência técnico-cientifica instalada no País e o empreendedorismo dos agricultores nos diferencia, por um lado, mas não nos assegura que não há necessidade de que estejamos atentos ao que está acontecendo no mundo e suas possíveis implicações de risco à atividade. Não podemos mais ignorar algumas mudanças ora em curso, tanto de ordem social quanto econômica, que mudam o perfil de consumo de alimentos no mundo e configuram um novo papel de protagonismo aos consumidores, as questões ambientais e de relações de trabalho que podem ser entraves na nossa pauta de exportação e a convergência de conhecimentos e tecnologias que pode influir sobre a geografia de produção, tanto dentro das fronteiras nacionais quanto em escala global, promovendo mudanças inesperadas. Precisamos intensificar de forma sustentável a nossa produção agrícola. E para isso a gestão de riscos na atividade não pode mais ser ignorada.
ON – E especificamente para as instituições que atuam com ciência, tecnologia e inovação para a agricultura brasileira, caso da Embrapa e outras, tanto públicas quanto privadas, qual o desafio maior nessa área?
Cunha - O grande desafio na área tecnológica para a agricultura, na minha visão, é o desenvolvimento de tecnologias associadas com sistemas de produção, e nesse escopo entenda-se desde genética de cultivares, práticas de manejo de solo, novos insumos, arranjos de espécies no tempo e no espaço, que possibilitem a configuração, de forma sustentável, de uma agricultura intensificada e mais resiliente, em especial que suporte as flutuações relacionadas com os extremos climáticos interanuais, uma vez que, o ambiente de produção, em função disso, não é estático.
ON – A Embrapa no tocante à inovação na área de gestão de riscos aplicada na agricultura está trabalhando em que linhas?
Cunha – Entre as prioridades de pesquisa da Embrapa está o desenvolvimento de sistemas inovadores de gestão de riscos na agricultura, integrando riscos climáticos, tecnológicos, socioeconômicos, ambientais e de mercado. Paralelamente, também estamos buscando aprimorar continuamente o zoneamento de riscos climáticos que serve de apoio e fomento às políticas públicas, com foco na intensificação produtiva sustentável, por intermédio da geração de tecnologias inovadoras para a produção de alimentos em um cenário global sob riscos crescentes.
ON – O senhor mencionou Zoneamento de Risco Climático. Quem lida com crédito e seguro rural no Brasil faz uso e referência frequentes ao ZARC. Afinal, que significa essa sigla ZARC?
Cunha – Significa Zoneamento Agrícola de Risco Climático. É um sistema de informação de suporte aos gestores públicos, que atuam no Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, no Banco Central e no Conselho Monetário Nacional, para auxiliar na tomada de decisão relacionadas com o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) e com a Subvenção Federal ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). O objetivo desse sistema de suporte à tomada de decisão é evitar perdas excessivas em alguns cultivos, regiões e épocas de risco elevado. Para fazer jus ao Proagro e ao PSR as recomendações do ZARC devem ser observadas. Alguns agentes financeiros também têm condicionado o crédito rural ao ZARC.
ON – O ZARC é usado exclusivamente pelos operadores de políticas públicas?
Cunha – Essa é uma percepção equivocada que muita gente, por não conhecer a tecnologia, ainda compartilha. Eu diria que muito mais do que aos gestores públicos, o ZARC é imprescindível para os assistentes técnicos, produtores e empresários rurais, pois permite o conhecimento do risco inerente ao seu empreendimento. É uma poderosa ferramenta de gestão de riscos em agricultura.
ON – Qual o papel da Embrapa na implementação operacional do ZARC no Brasil?
Cunha – O uso do zoneamento agrícola de risco climático como ferramenta de suporte às políticas de credito e seguro rural no Brasil começou efetivamente em 1996. E coube à Embrapa, como instituição pública Federal realizar a coordenação desse trabalho na época, que envolveu diversas instituições públicas e privadas, localizadas nas diferentes unidades da Federação. Como exemplo apenas, participaram a Fepagro, no Rio Grande do Sul, a Epagri, em Santa Catarina, o IAPAR, no Paraná, o IAC e a Unicamp, em São Paulo, e assim por diante, abrangendo todo o Brasil. Definida a metodologia, os cultivos alvos, organizada a base de dados, rodadas as simulações e traçadas as cartas de risco, conforme o tipo de solo, o ciclo das cultivares e a época de semeadura, houve a etapa de validação dos resultados e de transferência dessa tecnologia aos usuários. Essa etapa inicial durou até o começo dos anos 2000. Depois o trabalho foi terceirizado pelo MAPA e, em 2015, retornou a coordenação à Embrapa.
ON – Há quem diga que o uso do ZARC como ferramenta de apoio à política de crédito e seguro rural no Brasil começou com o trigo. Isso é verdade?
Cunha – Sim. Isso é fato. O primeiro cultivo a ter sua política de crédito e seguro rural embasada num zoneamento de risco climático no Brasil foi o trigo, na safra de inverno de 1996. Até então os zoneamentos de aptidão de cultivo, que não quantificavam e nem levavam em consideração os riscos regionais associados, eram usados como referência nos livros de informações técnicas que são anualmente produzidos. Nós tivemos o privilégio de coordenar esse trabalho, que, por ser novo, na ocasião, suscitou muitos questionamentos, mas acabou, por ser cientificamente bem embasado, sendo aceito e vem sendo usado, com as suas atualizações anuais, desde então.
ON – Quem participou efetivamente desse primeiro ZARC Trigo?
Cunha – Muitas pessoas e instituições foram envolvidas e efetivamente colaboraram. O trabalho que foi publicado na edição especial da Revista Brasileira de Agrometeorologia, sobre Zoneamento Agrícola, em 2001, contempla 19 autores vinculados a 10 instituições diferentes. Da Embrapa Trigo, estiveram diretamente envolvidos, além de mim, os pesquisadores João Carlos Haas e Jaime Ricardo Maluf, os analistas Aldemir Pasinato e Márcia Pimentel, e os assistentes Marialba Osorski dos Santos e Luís Carlos Castro Vieira.
ON – Nessa trajetória de 22 anos de ZARC no Brasil, o senhor faz menção especial a algumas pessoas?
Cunha – Foram muitas as pessoas que trabalharam para a consolidação do ZARC como ferramenta importante no apoio às políticas de crédito e seguro rural no Brasil nesses últimos 22 anos. Mas, inquestionavelmente, não poderíamos deixar de prestar o nosso tributo em reconhecimento ao papel que desempenharam, no início dessa jornada, no âmbito do MAPA, ao Dr. Luiz Antônio Rossetti, que na época era o coordenado da Comissão Especial de Recursos do Proagro (CER-Proagro), que não mediu esforços para que a proposta fosse levada a cabo, e ao pesquisador Eduardo Assad, da Embrapa Cerrados, que, com maestria invejável, conseguiu articular pesquisadores e instituições, que até então vinha trabalhando isolados no tema, para unirem seus esforços em prol de um objetivo importante para a agricultura brasileira. Nesses dois nomes, depositamos os nossos respeitos a todos que trabalharam e ainda vem trabalhando no aprimoramento do sistema de zoneamento agrícola de risco climático no Brasil.
ON – Em breves palavras, para finalizar, por que efetivamente agricultura é uma atividade de risco?
Cunha – A atividade agrícola hoje, em sendo caracterizada pelo uso intensivo de capital, não se pode ignorar que é praticada sob riscos iminentes. Incluam-se, além dos riscos relacionados com o clima, que dizem respeito aos riscos de produção, também os de mercado (preços) e os vinculados ao ambiente institucional (normativos, especialmente). E assim, sem qualquer margem para dúvidas, configura-se a gestão integrada de riscos como algo cada vez mais imprescindível nesse setor.
Perfil
Gilberto Cunha é pesquisador da Embrapa Trigo, membro da Academia Passo-Fundense de Letras e colunista de O Nacionaldesde 1995. Está completando, nesse mês de setembro de 2018, 40 anos de atividade em pesquisa na área de agrometeorologia. Foram 11 anos no Instituto de Pesquisas Agronômicas (IPAGRO), em Porto Alegre, e os últimos 29 anos em Passo Fundo. Na sua trajetória profissional, sempre na área de agrometeorologia, Cunha ocupou todos os postos de carreira em um instituto de pesquisa científica, desde estagiário até dirigente (foi chefe-geral da Embrapa Trigo, entre 2006 e 2010).