A Revolução Farroupilha já estava em seu quarto ano, quando o italiano Giuseppe Garibaldi encontrou uma maneira de chegar até ao mar, desviando da Marinha Imperial, que controlava pontos estratégicos na Lagoa dos Patos. Como a intenção era estender o ideal republicano para o estado vizinho, em 1839, na Estância da Barra, em Camaquã, onde morava dona Antônia, irmã do tenente-capitão da República Rio Grandense, Bento Gonçalves, ele decidiu levantar um estaleiro e construir dois lanchões: o Seival e o Farroupilha, também conhecido como Rio Pardo. De lá, Garibaldi partiu com seus marujos, para a odisseia que só terminaria com a tomada de Laguna e a proclamação da República Juliana.
Passados 179 anos desta epopeia, um professor tem como projeto de vida, materializar parte de um dos capítulos mais importantes da história do Rio Grande do Sul. No final de fevereiro deste ano, Antônio Carlos Rodrigues, 55 anos, colocou as malas no carro, e, junto com a esposa Sandra, 53, e os dois filhos mais novos, Eduardo, 12, e Júlia, 8, mudou-se de Passo Fundo para Camaquã. Na mesma propriedade que serviu de base para os farroupilhas, ele pretende erguer um estaleiro onde será construída a réplica, em tamanho original, do Seival. A concretização do projeto, denominado Origem Farrapa, depende apenas da liberação de um documento por parte da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que já sinalizou positivamente para autorizar.
A intenção é realizar o projeto o mais próximo possível do estaleiro de Garibaldi. Hoje, um pequeno descampado, distante aproximadamente três quilômetros da lagoa dos Patos, rodeado por lavouras de arroz. A propriedade tem cerca de quatro hectares e pertence ao empresário Raul Justino Ribeiro, 55 anos, tetraneto de Bento Gonçalves. A poucos metros dali, está a casa de dona Antônia. A área está dentro do Parque Estadual do Camaquã.
O caminho percorrido por Rodrigues até chegar ao projeto do Seival, aconteceu quase que por acaso. Professor de educação física na rede estadual de ensino há quase três décadas, ele decidiu que havia chegado o momento de fugir do modelo tradicional de ensino. Na busca por novas formas de repassar o conhecimento para seus alunos, acabou transformando radicalmente sua própria vida.
A mudança começou em 2014. Para chamar a atenção dos estudantes sobre o descaso com o Rio Passo Fundo e ampliar o debate em torno de questões relacionadas ao meio ambiente, ele lançou o Projeto Navegar Rio Passo Fundo – da nascente ao mar. Nessa primeira edição, Rodrigues construiu dois barcos, um deles a partir de materiais recicláveis. Dividido em oito etapas, alunos do ensino médio da escola Cecy Leite Costa, professores e integrantes de grupos ecológicos, navegaram mais de 1 mil quilômetros, do Rio Passo Fundo até a capital Uruguai, Montevidéu.
Entusiasmado com os resultados, o projeto teve uma segunda edição no ano seguinte 'Velejando pelas águas do Jacuí, cujo destino final foi o Rio Guaíba em Porto Alegre. Ao término da expedição, Rodrigues já estava contagiado pelo prazer de velejar e decidido a investir em novos aventuras.
"A intenção era construir uma caravela maior, algo do gênero. Até que um dia conversando com o professor Paulo Monteiro, ele sugeriu os lanchões da Revolução Farroupilha. Achei a dica interessante e passei a pesquisar a história da navegação e também de Garibaldi", conta.
Apesar do volume de informações históricas sobre o episódio, Rodrigues percebeu que não havia nenhuma réplica das embarcações. Do Seival, restou apenas o mastro, preservado no museu Anita Garibaldi, em Laguna, Santa Catarina. Já o Farroupilha, comandado por Giuseppe, naufragou próximo à barra do Rio Araranguá, no litoral de Jaguaruna. Poucos farrapos sobreviveram do naufrágio, entre eles o comandante Garibaldi.
Com o conhecimento adquirido desde a infância, trabalhando na marcenaria do pai, o professor reuniu informações sobre o lanchão e fez primeira réplica em miniatura, mantendo todas as características originais.
O aperfeiçoamento da embarcação veio em julho de 2016, em visita a Laguna, conheceu ((()))), um especialista em embarcações, modelista naval com réplicas em vários museus. "Uma referência no assunto. Através dele, obtive informações, detalhes importantes sobre o Seival" afirmou.
Obstinado pelo projeto, ainda no ano passado adquiriu toda a madeira necessária para construção da embarcação. Um investimento de aproximidamente R$ 46 mil tirados do próporio bolso. O passo seguinte foi viajar para Camaquã e sondar o terreno. "Quando entrei na propriedade, no distrito de Pacheca, onde fica a Fazenda Charqueadas, senti que teria de ser realizado ali, no mesmo local, para resgatar a alma da história" observou.
Com a mudança em definitivo para Camaquã, ainda em fevereiro, Rodrigues iniciou a saga para conseguir as licenças necessárias. Um dos principais entraves reside no fato de que a área em questão está incluída em um decreto do governo federal, de 1975, tornando o local em parque estadual. Uma faixa de aproximadamente 100 quilômetros, entre o município de São Lourenço até Arambaré. "Tem o decreto mas nunca foi tornado legal, não existe demarcação alguma, nem política de manejo. Não tem a presençado Estado ali. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente, no início, argumentou que não havia como liberar o local, em razão desse decreto",conta.
Aliado
Durante a permanência em Camaquã, o professor ganhou um aliado importante. Em uma das tantas reuniões, conheceu Raul Justino Ribeiro, tetraneto de Bento Gonçalves que, há pelo menos 15 anos, luta para concretizar o sonho de ver o estaleiro em pé novamente.
Além do parentesco, ele é o proprietário da área de quatro hectares considerada histórica, dentro da antiga Estância da Barra. "Com o passar dos anos, as terras que pertenciam à família, trocaram de mãos, mas felizmente consegui reaver esse pedaço", diz.
Guardião de um acervo com mais de 100 itens relacionados com a Revolução Farroupilha, incluindo a espada de Bento Gonçalves, cartas, documentos, fardas, móveis da casa, fotos, quadros, inventários, entre outros, a intenção, segundo ele, além do estaleiro e da embarcação, é construir um espaço para exposição desse material. "Toda peça histórica que não é mostrada ao público perde o sentido", observa. No local vai funcionar o inventário de patrimônio imaterial.
Perseguindo o projeto de construção do estaleiro há mais de uma década, o empresário afirma que a liberação ambiental se transformou no principal obstáculo. Sobre o encontro com o professor Antônio e o avanço nas questões burocráticas, nos últimos seis meses, afirma que 'a ficha ainda não caiu'. "A gente fica nervoso, teremos um longo trabalho pela frente. Nós dois temos a mesma vontade, é um parceiro com vontade e coragem de fazer. Sozinho é muito difícil" resume. Dentro de um prazo de 10 dias, o município deve encaminhar o pedido de liberação da área à Sema.
Aulas ao ar livre
Quando o professor de educação física colocou a casa para alugar em Passo Fundo, e partiu para a região centro-sul do estado, com a família, a mudança que tinha em mente, não era apenas para o período de construção do projeto. Prestes a encaminhar a aposentadoria e encerrar a carreira no magistério, Rodrigues pretende continuar com o ofício de educar. Entretanto, a sala de aula será a céu aberto, a bordo do Seival.
Assim como fez nas duas edições do Projeto Navegar, ele pretende usar a embarcação para visitar escolas às margens da Lagoa dos Patos, debater sobre história e meio ambiente. Segundoele, a primeira travessia do Seival deverá ser de Camaquã a Laguna, repetindo a façanha de Garibaldi e seus marujos.
"Nosso interesse é mostrar a importância que a navegação teve durante a Revolução Farroupilha, suscitar o debate em torno das questões que envolvem este período, e, principalmente falar sobre o meio ambiente", projeta. A intenção é concluir o projeto até abril do ano que vem, data em que completa 180 a chegada de Garibaldi em Camaquã. Segundo ele, uma organização não governamental chamada Amigos do Seival, deve auxiliar na busca por recursos.
Embarcação
Mantendo as mesmas medidas do projeto original, a réplica do Seival terá 15 metros de comprimento e 3,6 de largura. A embarcação suportou uma tripulação de aproximadamente 30 pessoas, mais armamentos e munição.
História
Seival foi um lanchão utilizado por Giuseppe Garibaldi na Tomada de Laguna, que culminou com a proclamação da República Juliana, durante a Guerra dos Farrapos. O nome é alusão à vitória na Batalha do Seival, em data anterior à construção do barco.
A embarcação foi conduzida por terra, sobre rodas e puxada por juntas de bois, e por água, aproveitando o sistema lacustre costeiro dos estados do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina.Havia ainda um outro lanchão menor, o Farroupilha, que o seguia.
Os lanchões Seival e Farroupilha cortaram as águas da Lagoa dos Patos, fustigados pela retaguarda pelo temível John Grenfell, comandante da Marinha Imperial na província do Rio Grande do Sul. Fugindo e despistando, conseguem enveredar pelo estreito do rio Capivari, iniciando o caminho por terra. Ainda aí passariam por duras provações, pois era inverno, mau tempo com chuvas e ventos, tornando o chão um grande lodaçal.
A 14 de julho de 1839 os lanchões rumaram para Laguna, sob o comando geral de David Canabarro. O Seival era comandado pelo americano John Griggs, conhecido como "João Grandão", e o Farroupilha II por Giuseppe Garibaldi. Na costa de Santa Catarina, próximo ao rio Araranguá, uma tempestade pôs a pique o Farroupilha, salvando-se uns poucos farrapos, entre eles o próprio Garibaldi.