Enquanto saboreava uma cerveja, em um barzinho, de frente para o mar, no porto de Mindelo, em Cabo Verde, mesmo local em que havia sido preso em agosto de 2017, o velejador passo-fundense, Daniel Guerra, conversou por telefone com a reportagem de O Nacional. A entrevista aconteceu na sexta-feira à noite, um dia após ele, e os outros dois brasileiros, Daniel Dantas e Rodrigo Dantas, terem sido soltos da prisão onde ficaram por 18 meses, após a polícia local ter encontrado um tonelada de cocaína na embarcação tripulada por eles. Os velejadores foram julgados e condenados a 10 anos de prisão por tráfico internacional de drogas, mas a sentença acabou sendo anulada em janeiro deste ano. O processo voltou para a 1ª instância e terá novo julgamento. Devido a não possibilidade de acesso aos passaportes, os três ainda não têm previsão de retorno ao Brasil.
Numa conversa de quase 30 minutos, Guerra lembrou de alguns momentos da viagem, falou da importância de manter o corpo e a mente alinhados para enfrentar a rotina da prisão, onde diz ter aprendido 'a virtude da paciência'. Ele fez críticas à Justiça de Cabo Verde pela forma como conduziu o caso e não deixou de agradecer ao apoio recebido dos pais, amigos, velejadores e artistas que sempre acreditaram na inocência dos brasileiros. Quando perguntado sobre os planos futuros, a resposta é precisa. "Tenho muitos, mas o primeiro deles é seguir velejando".
ON - Ao contrário dos outros dois brasileiros, você estava dentro do barco quando a polícia de Cabo Verde encontrou a droga?
Daniel Guerra - Sim, eu e o capitão francês. Acompanhamos a busca. Quando abriram foi uma surpresa enorme. No outro dia continuaram a busca e acabaram encontrando o restante da droga. Eu já estava preso. Até explicar, eu sabia que iria passar uns dias presos, mas havia contrato da empresa, pensei que iriam se pronunciar, mas vi que não seria da noite para o dia. É uma tonelada de droga, não é brincadeira. Na época foi a segunda maior apreensão do país. Recentemente pegaram uma de 10 toneladas, caímos no ranking.
ON - Ficou na cela com os demais brasileiros?
Daniel Guerra- Fiquei por cerca de um mês numa solitária. Num espaço confinado, só cama, sem janela. Tinha horário para tomar um banho de caneca na frente dos guardas e ir ao banheiro. Não te deixavam nem secar o corpo com toalha, secava com o calor.
ON - E após este período te transferiram para outro lugar?
Daniel Guerra - Fui para uma cela no setor de segurança máxima. Era eu e um nigeriano, depois chegou um cabo-verdiano. Ficamos em três. Dormíamos nas pedras, no chão. Saía cinco vezes da cela para ir ao banheiro, tomar banho, três vezes por semana e deu. Fiquei 8 meses assim. Depois fui para outro setor. O pessoal já te conhece, sabe que tem bom comportamento. Abria às 6h da manhã e fechava após o almoço. No meio da tarde abria novamente e fechava às 21h. Ficávamos no corredor, em torno de 60 a 70 reclusos. Dava para dar uma caminhadinha. Havia 24 celas e uma casa de banho. Fiquei mais uns nove meses nesse setor, onde estava até sair na quinta-feira.
ON - E como foi sua reação ao saber do resultado do júri, uma condenação de 10 anos?
Daniel Guerra - Fiquei sem reação. Um absurdo, uma injustiça, sem provas. Me senti injustiçado desde o início. Deveria ter saído quando completei 14 meses de prisão (tempo da prisão preventiva), não saí, fui sair com 18 meses. O sistema não funciona bem aqui. O tipo de investigação deles não foi correto, vários direitos violados, prazos desrespeitados. Faziam o que queriam. Rasgaram o Código Penal na nossa frente, 'vai ser do jeito que a gente quer', fazem o que eles querem.
ON - Não levaram em consideração o relatório feito pela Polícia Federal, que vistoriou duas vezes a embarcação aqui no Brasil?
Daniel Guerra - Não levaram em conta nada. No dia das testemunhas, famílias falando, capitães, proprietários de barcos vieram. Os procuradores faziam que fechavam o olho, que estavam dormindo. Me senti num circo. Nos convidaram para um circo e os palhaços éramos nós. Eu acreditava na Justiça e acredito, mas não dessa forma, tem coisas que precisam ser revistas. Essa é minha opinião.
ON - Teu objetivo com a viagem era obter milhas náuticas?
Daniel Guerra - É como piloto de avião, tem que ter horas de voo, pra se tornar capitão tem que ter horas de mar. Uma travessia do Atlântico é super importante na carreira, não é fácil pra ninguém. Tocar direto por vários dias, enfrentando diferentes climas, é estressante, complicado, mas é a melhor aventura que um aventureiro pode ter. Só que acabei entrando no barco errado.
ON - E o clima entre vocês durante a viagem, foi tranquilo?
Daniel Guerra - No começo sim, mas depois vieram os problemas, as quebras. O Daniel Dantas passou mal durante os 16 dias, ia morrer se tivesse mais 15 dias no mar. Ficamos sem motor, barco quebrando, foi uma das opções parar em Cabo Verde, para comprar óleo para o hidráulico, e buscar ajuda médica para ele.
ON - Como um aventureiro como você, acostumado na estrada, fez para manter o equilíbrio durante os 18 meses em que esteve preso?
Daniel Guerra- Muito trabalho emocional. Me mantive tranquilo, li meus livros, fiz atividade física. Não tinha a virtude da paciência, aprendi muito, foi minha evolução aqui dentro, busquei a sabedoria, tirar algum proveito disso tudo. Na vida todo mundo cai e se levanta, o negócio é se manter em pé.
ON- Os livros te ajudaram bastante, que tipo de livro lestes nesse período?
Daniel Guerra - Fiquei com os livros aqui para estudar de capitão- amador, estudei muito bem ele, um livro de 800 páginas li seis vezes. Li mais de 100 livros, incluindo a bíblia e o alcorão. Fora não teria como ler tudo isso. Não adianta fazer exercícios, ficar forte e tua cabeça querendo se matar, não dá. Tem que equilibrar.
ON - Teus pais permaneceram um bom tempo aí em Cabo Verde, aqui no Brasil, amigos, velejadores e artistas realizaram campanhas pelas redes sociais, em todo o Brasil, pedindo pela libertação de vocês. Tiveram um apoio importante nesse período?
Daniel Guerra- Esse apoio de todos foi essencial. É a prova de que cada um conhecia seus filhos, sabiam que tinham criado, que não tinham antecedentes criminais, ninguém tinha envolvimento com droga, que ninguém tinha dinheiro no banco para movimentar uma quantidade de drogas como essa. Vão dizer que compramos uma tonelada de droga, é simples, é só ver as contas bancárias, as movimentações. A investigação deles foi muito fraca.
Fiquei surpreso pelo fato de tanto apoio. O mundo náutico é pequeno, fiz duas vezes a costa brasileira, participei da regata para Fernando de Noronha, a maior do Brasil. Pessoal do mundo náutico me conhece, viram meu caráter, meu trabalho. A gente entrava em contato com eles para pegar experiência, sempre perguntando sobre o funcionamento, se especializando, fazendo curso. Sabiam da nossa inocência, a Polícia Federal deve ter pesquisado até nossos fios de cabelo, viram que não somos do crime, por isso nos apoiaram. O apoio familiar foi a base, o sustento de tudo. Aqui em Cabo Verde, todo mundo dizia "que traficante que a família vai vir aqui, ficar aqui. Ir atrás de advogado. Sou muito grato aos meus pais, aos pais do Rodrigo, do Daniel, fizeram o que puderam por nós.
ON - Além de leituras, de que outra forma usastes o tempo livre?
Daniel Guerra- Gastei meu tempo escrevendo projeto de bicicletas, para velejar, coisas abstratas. Já botei no papel, talvez um dia realize. Alguns são ousados, outros nem tanto. Criei ideias que vou seguir. Estou com 37 anos, o amor de pai e mãe que eu vi assim, me deram um desejo de constituir uma família, conciliar liberdade com responsabilidade, sempre com uma dose de aventura, é isso que me motiva. A cadeia muda teu senso, teu instinto, você passa a entender os sinais, o barulho do cadeado, os passos, a respiração. Eu tinha 24 horas exclusivamente para mim, não lembro de ter tido todo esse tempo para mim.
ON - Seguir velejando está entre teus planos?
Daniel Guerra - Claro, esse é o número um. Do mar eu não saio. Isso me fez criar mais persistência em fazer o que realmente mais gosto. Fiz relações internacionais, mestrado, mas queria viver viajando, trabalhando pelo mundo, conhecendo culturas, línguas, vendo o que esse mundo consegue me ensinar. Aprender com as pessoas que eu encontrar, ter o máximo de experiência. Quero criar uma ação social, ajudar aos outros, não somos especiais por termos vindo pra cadeia, não somos os primeiros nem os últimos, há muitas pessoas inocentes no mundo que acontece isso. Só que nosso caso, a família prevaleceu, lutou por nós, muitos não têm família como nós. Vou lutar para conseguir o meu barco.
ON - E qual a lição que fica dessa história toda?
Daniel Guerra - Olha, fé em deus, amor à família, e a saúde. São três coisas que eu dei muito valor. A restrição de liberdade faz parte, muitos estão presos em outras coisas. Eu tinha restrição, mas meus pensamentos livres, planejando coisas, vários projetos escritos, fiz de tudo para crescer comigo mesmo. É desesperador no começo, tem que dar um jeito para crescer com tudo isso. A gente tem altos e baixo, o negócio é manter o equilíbrio.