“Eu acordei de madrugada e era como se uma torneira de sangue tivesse sido aberta. Não parava de sangrar”. É com essa lembrança que Antônia* relata a experiência que a lançou à clandestinidade quando, há 8 anos, decidiu abortar ilegalmente após descobrir uma gravidez não planejada de quatro semanas.
As palavras que se articulam, em lábios discretamente tingidos de vermelho, tentam reconstruir algumas horas de um dos momentos mais delicados e dolorosos na vida da mulher. Assim como ela, em 10 anos, 2,1 milhões de brasileiras foram internadas em unidades de saúde com complicações decorrentes de um aborto. O Ministério da Saúde estima que 75% desses casos tenham sido provocados.
Os dados estatísticos sobre aborto, no Brasil, são divulgados parcialmente tendo em vista que a interrupção da gravidez é criminalizada no país. A mulher, porém, tem o direito de realizar um aborto legal em caso de estupro, potencial risco de vida para a mãe ou feto anencéfalo até a 20ª semana de gestação. Os dados oficiais são divulgados pelo Ministério da Saúde, com base nas informações coletadas no Sistema Único de Saúde (SUS).
Os custos do aborto para o sistema de saúde
A curetagem pós-abortamento é um dos procedimentos mais comuns realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), segundo as estatísticas. Em 2017, o custo total com o procedimento ultrapassou os 37 milhões de reais. O valor gasto com as consequências dos abortos clandestinos é significativo. Segundo o Guttmacher Institute, as cifras ultrapassam os 200 milhões de dólares, nos casos atendidos em países subdesenvolvidos em que o aborto é considerado crime.
A Secretária de Saúde de Passo Fundo, Carla Gonçalves, pondera que há diferenças entre a descriminalização e a legalização do processo de abortamento voluntário. “O aborto não ser considerado crime facilita o acesso das mulheres ao serviço de saúde porque elas não estarão mais cometendo um ato ilegal, mas infelizmente não vai acabar o aborto clandestino autoprovocado. Isso leva a custos e a riscos de a mulher ter sequelas graves, infecção e internação por algo ter sido feito fora dos padrões que se espera”, considera.
"Na verdade, a sociedade condena a mulher não querer ser mãe e não o aborto feito”
As estatísticas, mais uma vez, vêm ao encontro de Antônia. Mãe aos 19 anos, começou a sentir os primeiros sintomas de uma nova gravidez quando o filho tinha 2 anos e ela estava na metade da faculdade de Administração recebendo, à época, valores próximos a um salário mínimo. “Eu tomava contraceptivos e, quando soube, a primeira coisa que pensei foi em abortar porque eu já tinha uma criança pequena e estava naquela fase de me readaptar ao mundo, me vendo de novo como mulher e não só como mãe”, conta.
O emprego que mantinha, no entanto, não a permitia pagar algum médico para realizar a interrupção com segurança. Em uma clínica de aborto clandestino, o preço médio que as mulheres desembolsam para o procedimento varia de acordo com cada região do país, porém gira em torno de 3 mil reais, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA). Morando em Passo Fundo, Antônia não tinha conhecimento sobre nenhum lugar clandestino. Então, recorreu à internet em busca de outros métodos. “Eu encontrei pessoas que faziam a entrega, mas também li que poderia ser placebo e iria gastar dinheiro para não ter efeito algum”, comenta.
Do virtual, logo descobriu que havia, também, um mercado paralelo de comercialização de comprimidos abortivos, na cidade. “Mesmo sendo ilegal, não podemos ser hipócritas e dizer que não pode fazer porque a mulher deve ter o controle sobre a vida dela. Na verdade, a sociedade condena a mulher não querer ser mãe e não o aborto feito”, avalia.
Em uma conversa franca, ela relata que pagou 800 reais pelas quatro pílulas do medicamento que é utilizado, ainda, para o tratamento e prevenção de úlceras estomacais e indução de parto. Por ser considerado abortivo, a comercialização do fármaco para o público geral é proibida no Brasil desde 1998, mas continua a circular clandestinamente em estabelecimentos e na internet. “Eu tomei os comprimidos e, no outro dia, percebi que houve um sangramento. Fiz um novo teste de gravidez e deu negativo. Exatos 30 dias depois, quando se completava o meu ciclo menstrual, eu acordei entre 2h30min e 3h da madrugada lavada de sangue a ponto de ter que jogar fora o meu colchão, mas sem dor alguma. Eu chamei o meu pai e disse que ia morrer”, relata.
Enquanto ajeita os longos cabelos trançados, Antônia conta que, naquela noite, olhou o filho ainda criança que dormia ao lado e foi para o atendimento em uma unidade hospitalar. Assim que chegou, os profissionais já questionaram sobre uma possível gravidez. “Havia muito sangue lá e era tudo meu, mas eu não podia contar sobre o aborto. Eu não queria ir para o hospital porque fiquei com medo de ser presa. Os médicos sabiam o que eu tinha feito, só não tinham como comprovar”, revela.
A Secretária Municipal de Saúde de Passo Fundo, Carla Beatrice Gonçalves, enfatiza que os casos de abortamento, sejam eles voluntários ou não, devem ser atendidos em hospitais. “É feito uma avaliação dos procedimentos que devem ser adotados porque, às vezes, o processo de abortamento se conclui sem nenhuma intervenção maior. Mas, dependendo do tempo de gestação, é necessário fazer uma curetagem que é a limpeza do útero para evitar que a mulher tenha alguma infecção”, explica. De acordo com os números mais recentes do DataSUS, em 2017, foram registrados 177.464 curetagens pós-abortamento.
Levada à sala de ultrassonografia, Antônia diz que percebeu o que estava acontecendo naquele momento. “Eu comecei a chorar. O menino que eu namorava já estava longe e eu precisei fazer curetagem. A minha mãe estava comigo e, mesmo sabendo que não concordaria com o que eu tinha feito, ela entenderia. Mas, mesmo assim, eu me senti abandonada”, conta. Após uma breve pausa, a voz levemente embargada tenta prosseguir. “A médica me disse que não dava um ano para eu voltar novamente ali, grávida. Não tem um dia se quer que eu não me lembre disso”, menciona.
A pele negra, a pouca idade e o fato de já ter tido um filho, para ela foi o motivo que levou a profissional de saúde ao atendimento, segunda Antônia, rude. “Na cabeça dela e da sociedade, isso iria acontecer porque para uma mulher negra é assim que deve ser”, descreve. O Ministério da Saúde estima que, anualmente, 250 mil mulheres são hospitalizadas por complicações ao realizar um aborto clandestino. “A estimativa é de cerca de 1 milhão de abortos induzidos, portanto, uma carga extremamente alta que independe da classe social. O que depende da classe social é a gravidade e a morte. Quem mais morre por aborto no Brasil são mulheres negras, jovens, solteiras e com até o Ensino Fundamental”, afirmou a diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Maria de Fátima Marinho de Souza, durante a audiência pública para debater a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, no ano passado.
“O peso da maternidade é feminino. O filho é da mulher”
O café continua sob a mesa de um dos shoppings de Passo Fundo enquanto o olhar de A Antônia desvia para as pessoas que caminham pelas galerias, e logo se mostra firme novamente. Com um livro ao lado do corpo, ela conta que irá começar a ler o título que aborda, justamente, os ciclos naturais femininos que foram transformados para agradar os outros. A experiência de ter abortado em uma cidade do interior é comparada com a de outras mulheres. “Eu tenho uma amiga que vive em São Paulo e já fez dois abortos. Mesmo tendo uma visão mais família e ser casada, o pai dela tem grana e sabe. Então, ela vai lá, paga o médico e faz o aborto em uma clínica. A realidade dela é completamente diferente da minha”, relata.
O Ministério da Saúde, afirma ainda que as interrupções voluntárias da gravidez são a 5ª causa de morte materna no Brasil. Dos 1.670 óbitos registrados em decorrência da gravidez, 127 foram pela indução do aborto e complicações em decorrência dos métodos utilizados. Para além das clínicas clandestinas e comprimidos abortivos, registrou-se a tentativa de aborto através da introdução de instrumentos perfurantes no útero, como cabides e agulhas de tricô.
A auxiliar administrativa, agora aos 30 anos, comenta que, embora os homens possuam responsabilidade sobre uma gravidez, a mulher assume o papel sozinha. “Independente de ser casada ou não, o filho é da mãe. Não sei se a ciência explica a falta de vínculo deles, mas a mãe sempre assume o dever da maternidade”, analisa. Com a experiência de um aborto, Antônia diz que o procedimento é arriscado. “Eu tive medo que acontecesse alguma coisa porque eu só tinha uma chance, não podia dar errado. Óbvio que eu não recomendo que as mulheres façam porque não é algo simples, tem toda a parte emocional envolvida, mas deve ser uma escolha da mulher porque ela é dona do próprio corpo”, completa.
*Nome alterado para preservar a identidade da fonte