“Quinta-feira é dia de Ogum”. No terreiro que leva o nome do orixá guerreiro, localizado aos fundos da casa que também é moradia, no bairro Vera Cruz, o Pai Duda conduz mais um rito do Batuque e abre o espaço para desmistificar crenças de senso comum sobre as religiões de matriz africana. O debate voltou à cena social brasileira após o Supremo Tribunal Federal (STF) garantir a legalidade da sacralização de animais para fins religiosos, há duas semanas.
Na antessala iluminada, três prateleiras sustentam inúmeras esculturas dos mais de 16 orixás cultuados pela Umbanda, Candomblé e pela vertente que o pai de santo guia há 11 anos, em Passo Fundo: o Batuque. “A matriz da nossa religião é a África, mas temos várias ramificações dela aqui no Brasil que varia conforme o aspecto regional. Então, o Batuque é a tradição peculiar do Rio Grande do Sul”, explica enquanto gesticula com as mãos apoiadas sobre a mesa em que, segundo ele, consultou o oráculo dos búzios para 10 pessoas apenas naquela quinta-feira (4). “Pessoas de diversas religiões e até pastores vêm até o terreiro”, garante.
Os trajes brancos vazados que traz junto ao corpo, chamado de Axó, e a movimentação de homens e mulheres pelas dependências do terreiro, portando roupas igualmente brancas e turbantes coloridos adornando os cabelos, indicam que minutos antes uma celebração religiosa havia sido realizada pelos batuqueiros. Durante esses ritos, Pai Duda detalha alguns pontos do cerimonial. “As pessoas atribuem às religiões de matriz africana o sacrifício de animais domésticos, mas, na verdade, não fazemos isso. Sacralizamos os mesmos animais que são abatidos em indústrias, como aves, caprinos e ovinos para serem consumidos nas festas que fazemos. Cada dia da semana é consagrado a um Orixá. Então, viemos até aqui para reproduzir cânticos e fazer oferendas, onde cada pessoa cozinha o alimento atribuído àquele Orixá para ser ofertado”, esclarece.
O antropólogo e professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), Frederico Santos dos Santos, respalda o comparativo e afirma que as religiões, de um modo geral, vão se utilizar do processo de sacralização animal, não se restringindo, portanto, às afro-brasileiras. “Todos os rituais religiosos encontram tabus na forma de comensalidade e tudo é feito a partir de um processo sacralístico. No caso das matrizes africanas, há uma relação muito íntima com a natureza e para que haja o sacrifício é preciso ter alguma relação simbólica”, fundamenta.
A laicidade do Estado como argumento
A sacralidade dos animais para fins de culto por parte das religiões afro-brasileiras foi aprovada, por unanimidade, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) há duas semanas. No entendimento dos magistrados, a crueldade animal não integra o processo ritualístico praticado pelos adeptos dessa religiosidade. “O colegiado do STF ouviu uma série de pessoas que praticam os rituais antes da tomada de decisão. Eles consideraram que, caso não fosse permitido, estariam praticamente aniquilando essa religião de matriz africana”, pondera o professor de Direito Constitucional da IMED, Fausto Moraes.
O recurso foi apresentado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) contra a decisão do Tribunal de Justiça gaúcho que declarou a lei inconstitucional. Por meio dela, foi inserido um novo parágrafo ao Código Estadual de Proteção aos Animais, autorizando o sacrifício animal em cultos das religiões afro-brasileiras. Em agosto do ano passado, o julgamento foi iniciado nas instâncias judiciais superiores. “A questão discutida é material ou substancial e, se uma eventual vedação, infringiria uma violação ao exercício do direito à religião”, acrescenta Moraes.
O Pai Duda acredita que a desinformação sobre as religiões cultuadas no Brasil que compartilham a crença originária dos africanos contribui para aquilo que classificou como “preconceito religioso”. “É racismo mesmo porque o legado vem do negro. Por isso perseguem. É um discurso baseado em fundamentalismo religioso e hipócrita porque o estado do Rio Grande do Sul é o maior consumidor de carne. Se o interesse fosse a proteção animal, a maioria dos críticos estaria nas portas dos frigoríficos”, atesta.
O parecer favorável do Supremo despertou, também, uma onda de críticas vindas das instituições protetoras dos animais. O presidente da Associação Passo-Fundense de Proteção Animal (COMPATA), José Carlos Raya Nedel, amplia a discussão acerca da sacralização para outras vertentes religiosas, além das afro-brasileiras. “Não é apenas o sacrifício religioso praticado pelas crenças de origem africana que infringem sofrimento aos animais. Os métodos do Judaísmo e do Islamismo, Kosher e Halal, são tão cruéis quanto”, defende. A concordância judicial foi recebida de forma negativa pelas entidades protetivas. “Nós lamentamos a posição do STF porque somos abolicionistas e totalmente contrários ao sacrifício animal, seja ele da forma que for”, reitera Nedel.
RS concentra maior número de praticantes
De acordo com o último Censo Demográfico produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o estado que concentra o maior número de praticantes da Umbanda e do Candomblé. O retrato da fé aponta a crença dos gaúchos nos orixás africanos quase cinco vezes maior que o percentual da Bahia. O Pai Duda atribui os números ao sincretismo religioso presente na colonização, especialmente, da região Sul. “Em Passo Fundo, há cerca de 300 terreiros voltados ao culto das religiões afro-brasileiras”, estima, ainda que não haja, estatisticamente, uma pesquisa municipal de levantamento de dados sobre a temática religiosa.
Diferente das demais doutrinas e correntes filosóficas, o Batuque, a Umbanda e o Candomblé não possuem um livro sagrado. Segundo o Pai de Santo, tudo o que se sabe é aprendido e transmitido de forma oral em lugares de recriação do espaço de África. “Não há uma institucionalização. É quase um culto familiar”, menciona. Nas paredes, representações pictóricas dos orixás são símbolos de devoção e agradecimento dos cerca de 50 frequentadores do terreiro de Pai Duda que buscam manter a tradição politeísta da fé, através do culto às forças da natureza representadas pelos deuses do terreiro. “Iemajá, por exemplo, representa as forças da água; Iansã, os ventos e Xangô, o fogo. Cada um tem suas cores e seu número dentro da cosmologia africana”, alude.
De acordo com o Pai Duda de Ogum, cada pessoa carrega em si a regência de alguma divindade espiritual africana e explica que, embora atribuída a essas correntes religiosas, o sacrifício de animais domésticos em supostos rituais não faz parte da prática dos adeptos. “Magia negra não existe. Existe apenas magia. Nós temos o orixá do movimento dentro do nosso próprio espaço físico do terreiro, não é necessário ir para as ruas. Até porque o povo de axé tem comprometimento com o meio ambiente. Então, qualquer prática de crueldade animal deve ser punida porque essas pessoas são criminosas”, condena.
Os números da intolerância
Esculturas danificadas, invasões a terreiros, ofensas e preconceito se tornaram, nos últimos anos, um cenário frequente aos praticantes das religiões de matriz africana. Em 2018, 59% dos casos relatados ao Disque 100 eram relacionados à violação do direto à crença, assegurado pela Constituição Federal, através da denominação de um Estado Laico. “As pessoas demonizam incitando o ódio. Inclusive no nosso município temos relatos de casas sendo invadidas e quebradas em nome de Deus”, lamenta Pai Duda de Ogum.
A força que emana de tudo que é vivo
“Tem muita casa de axé e pouco povo de santo”. Com essa declaração, ele explica que, dentro das correntes religiosas de origem africana, o princípio da vida, a força, o dom e a magia são descritos como axé. Esse princípio, de acordo com Pai Duda, é o que confere movimento a tudo que é vivo e existe junto à natureza. “Os espíritos em evolução nós chamamos de Exu. Ele é um guardião de espaços para que espíritos inferiores não venham influencias no cotidiano de qualquer indivíduo. Dentro de uma visão kardecista, o Exu seria o guardião do Umbral, dentro do livre-arbítrio de cada um. Mas, claro, ele não tem o poder de trancar um espírito que esteja sendo chamado por você”, explica.