Promessa de campanha e medida esperada por setores ligados aos movimentos armamentistas, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) publicou o novo decreto que facilita o porte de arma para algumas profissões que antes não tinham acesso. O texto regulamenta ainda a posse e a comercialização. As mudanças permitem que mais de 19 milhões de brasileiros tenham acesso ao registro, conforme estimativa do Instituto Sou da Paz. Diferente da posse, o sujeito que possui o porte pode levar a arma consigo para fora de casa ou de seu estabelecimento comercial, por exemplo.
As alterações dividiram opiniões. De um lado, os argumentos afirmam que o decreto esclareceu pontos que eram “vagos” no texto anterior. Em contraponto, entidades sinalizaram preocupação na facilitação e falta de efetividade no rastreamento da munição pelos órgãos de segurança pública. Além disso, a discussão sobre a constitucionalidade da medida foi levantada pelo partido Rede Sustentabilidade, que pediu a anulação da medida ao Supremo Tribunal Federal (STF). O entendimento do partido é de que o texto deveria passar pelo legislativo e não ter sido publicado em forma de decreto. A reportagem especial de ON aponta as mudanças do decreto e mostra argumentos contrários e favoráveis ao decreto de Bolsonaro.
Assinatura e publicação
Cercado de ministros e parlamentares, aos gestos de armas com as mãos, o presidente Jair Bolsonaro assinou, durante cerimônia no Palácio do Planalto na terça-feira (7), o decreto que regulamenta a posse, o porte e a comercialização de armas e munições. Inicialmente previsto para caçadores, atiradores esportivos e colecionadores, os chamados CACs, e para moradores de áreas rurais, a surpresa do decreto veio na quarta, com a publicação do texto no Diário Oficial da União (DOU).
As mudanças no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2016), uma das promessas de campanha, já eram esperadas. A novidade foi estender o direito de porte de armas a onze categorias. Foram contemplados, entre outros, instrutores de tiros, colecionadores e caçadores; detentores de mandatos eletivos (Executivo e Legislativo), advogados e jornalistas que façam cobertura de pautas policiais.
"Eu estou fazendo algo que o povo sempre quis, levando-se em conta o referendo de 2005 [que manteve o comércio de armas no país]. O governo federal, naquela época, e os que se sucederam, simplesmente, via decreto, não cumpriram a legislação e extrapolaram a lei, não permitindo que pessoas de bem tivessem mais acesso a armas e munições", disse Bolsonaro em rápida entrevista a jornalistas após cerimônia.
O decreto também amplia a diversidade de calibres de armas de uso permitido, incluindo semiautomáticas; aumenta a quantidade de compra de munições para armas de uso permitido (5 mil unidades por ano) e para armas de uso restrito (1 mil unidades por ano).
De acordo com o advogado criminalista Felipe Leso, o decreto sinaliza um avanço importante por ter esclarecido itens que no texto anterior estavam vagos. “Com o decreto, foram elencadas diversas classes que têm direito ao porte de armas, não sendo mais necessário demonstrar a efetiva necessidade para aquisição do porte de armas para essas categorias previstas no rol, tirando dessa forma a discricionariedade do delegado que antes poderia indeferir o pedido de porte por entender que não havia efetiva necessidade”, pontuou o advogado, que possui especialização em Direito Penal e Processo Civil, e é membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Planalto Médio (AACPLAM).
Outra especificidade do decreto é que ele quebra o monopólio da indústria nacional armamentista. A importação agora está permitida, desde que autorizada pelo Exército, por diferentes instituições de segurança pública, empresas de comercialização de armamento e munições e pessoas físicas autorizadas.
Burocracia permanece
Contudo, Leso lembra que mesmo com as alterações, não é tão simples conseguir o porte de arma. Para obter o registro, é preciso preencher os requisitos: efetiva necessidade, comprovar residência fixa e emprego legal, não responder processo criminal ou inquérito policial, apresentar declaração de idoneidade moral e certidões negativas de antecedentes, além de passar por teste de tiro e avaliação psicológica.
“Embora as mudanças no decreto sejam significativas, a burocracia e os requisitos para obtenção do porte de arma continuam vigentes. Ainda é exigida a certidão negativa de antecedentes, residência fixa, entre outros, o que impede que “qualquer pessoa”, independente de qualquer critério, possa adquirir o porte de armas”, explica Leso.
Anseio da população
Decreto veio para atender anseio da população, conforme o advogado e atirador desportista Luciano Toson, que também exerce o cargo de diretor jurídico da Liga Nacional de Tiro ao Prato. “Decreto quebrou o tabu e veio para desmistificar o uso das armas. Para mostrar que não era um monstro tão feio quanto as pessoas pensavam que era. Vai beneficiar muita gente. Respeitosamente ao direito das pessoas que não gostam de armas e não querem exercer o direito de defender sua vida e seu patrimônio, que estas não usem esse direito. Mas esse decreto veio resguardar o direito ao cidadão brasileiro a legitima defesa”, pontuou. Como as mudanças são extensas, Toson prevê que todo o mercado de compra e venda de armas, bem como as instituições – Polícia Federal e Exército Brasileiro – vão precisar de tempo para se adequar às novas medidas.
A flexibilização foi comemorada por Benedito Gomes Barbosa Júnior, mais conhecido como Bené Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil e autor do livro Mentiram pra Mim sobre Desarmamento. Segundo ele, “os critérios agora são mais objetivos, menos passíveis de interpretações e negativas por razões ideológicas e de crença religiosa”.
Na avaliação de Barbosa, o decreto aplica a “presunção da inocência” e elimina “burocracias desnecessárias” e outras dificuldades: “O Brasil foi tomado por uma ideia burocratizante tão grande, de exigência papel e comprovações. Isso [a medida] é muito interessante, diferente do que tínhamos no passado, temos um governo que parte do princípio de acreditar na sua população”.
Conforme o presidente do Movimento Viva Brasil, os defensores da flexibilização do acesso às armas de fogo tentarão no Congresso Nacional anistiar a posse de armas com registros antigos e herdadas e mudar o Estatuto do Desarmamento, reduzindo de 25 para 21 anos a idade mínima para ter direito a possuir armas.
Política do ódio
Para o advogado e conselheiro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Leandro Scalabrin, o decreto faz parte de uma política do governo que concede uma “licença para matar” a determinados grupos. “Essas medidas para facilitar o porte de arma, a posse, devem ser vistas como parte de um pacote de “lei e ordem”, juntos com essas falas de altas autoridades incentivando “abater” pessoas, “cancelar cpfs”, ministros em fotos oficiais fazendo “arminha”, “snipers” no Rio de Janeiro, e também outras medidas já encaminhadas para que proprietários e grileiros de terras possam matar pessoas e policiais também. Isso tudo visa conceder “licença para matar”, e é em relação a essa licença para matar que sou contra. Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, os quais são direitos humanos reconhecidos pelo Estado e pela sociedade brasileira”, argumenta.
Essas propostas incentivam o ódio e promovem uma divisão da sociedade. De um lado há “nós” (pessoas de bem), e, do outro “eles” (o inimigo), conforme o conselheiro do CNDH. “Podemos agregar as vítimas inocentes já mortas por essa política do ódio e da licença para matar: o gerente do banco do Brasil de Ibirairas, que foi morto pela polícia nesse contexto, e o policial que foi assassinado em serviço num assalto a banco também”. Scalabrin ainda citou outro caso, de uma mulher de 22 anos que foi baleada por um homem porque recusou o convite dele para sair. O caso aconteceu na segunda-feira (6), em Seberi. A mulher morreu dois dias depois, no hospital.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou nota onde apontou ver “com bastante preocupação a assinatura do decreto presidencial para facilitar o acesso a armas de fogo e munições”. Segundo a organização, a medida “ignora estudos e evidências que demonstram a ineficiência de se armar civis para tentar coibir a violência em todos os níveis”.
Levantamento do Instituto Sou da Paz indica que entre 2010 e 2018 foram comercializadas 1,4 bilhão de munições no Brasil. No ano passado, apenas uma de cada quatro munições comercializadas eram passiveis de rastreamento pelos órgãos de segurança pública, conforme prevê o Estatuto do Desarmamento.
Além disso, o órgão informa que o Exército contabiliza hoje mais de 350 mil armas nas mãos de CACs. “São recorrentes os casos de desvio para o mercado ilegal, ainda que não intencionalmente. A própria justificativa usada pelos atiradores para demandar o porte municiado é que eles se tornam alvos preferenciais de roubos, reconhecendo que a arma atrai criminosos. Este é um problema negligenciado há muito tempo, conforme o relatório da CPI do Tráfico de Armas, da Câmara dos Deputados de 2006”, informou, em nota oficial.
A ampliação dos registros deve sobrecarregar o Exército, desviando-o de suas funções essenciais de Defesa Nacional para que fiscalizem atividades de hobby privado ou esporte, conforme a entidade. “O Instituto Sou da Paz entende que há muito a ser feito para a diminuição da violência e criminalidade no Brasil e temos uma ampla agenda de propostas. No entanto, insistir em medidas que facilitem a compra e circulação em vias públicas de armas e em medidas que sobrecarregam as instituições públicas em prol do benefício de um pequeno grupo só irá piorar o grave cenário da segurança pública enfrentado pela população brasileira”, finalizou.
Constitucional?
Em relação ao pedido do partido Rede, para que o decreto seja anulado, Leso explica que a verificação de constitucionalidade não é simples e não depende de critérios objetivos. A análise depende do caso. “O partido tem legitimidade, já que tem representação no Congresso Nacional. Caso seja verificado que o decreto extrapolou os limites dos poderes do Presidente, ele vai ser derrubado”, informa.
Quem tem direito ao porte
- Profissional da imprensa que atue na cobertura policial;
- Motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas;
- Agente público ativo e inativo das áreas de:
Detentor de mandato eletivo nos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
Segurança Pública;
Abin (Agência Brasileira de Inteligência);
Administração penitenciária;
Sistema socioeducativo;
Que exerça atividade com poder de polícia administrativa;
Órgãos policiais das assembleias legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
- Advogado;
- Que exerça a profissão de oficial de justiça;
- Instrutor de tiro ou armeiro Colecionador ou caçador Proprietário de estabelecimento que comercialize armas de fogo ou de escolas de tiro Dirigente de clubes de tiro;
- Residente em área rural;
- Conselheiro tutelar;
- Agente de trânsito;
- Funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores;