No dia em que Ângela Maria dos Santos Jeremias, de 33 anos, deixou Guarulhos, em São Paulo, para vir à Fazenda da Esperança em Passo Fundo, a mais de mil quilômetros de casa, ela resolveu usar todos os tipos de drogas que podia. “Pela última vez”. Cheirou cocaína no ônibus, fumou maconha nas paradas e bebeu quantos tragos eram possíveis. Era outubro e nove meses depois ela tem vergonha de lembrar. Mete as mãos no rosto para esconder a face morena, bem à mostra porque os cabelos estão escondidos em uma touca que usava na cozinha. Ri. Desvia o olhar. Mas apoiada na religião que passou a seguir ao ingressar na Fazenda da Esperança, diz que sem Deus não teria conseguido fazer daquele dia, o último com drogas. “Eu fui só perdendo, perdendo tudo. Quando cheguei chorava todo dia. Hoje entendo que é isso que preciso”, diz, referindo-se à abstinência e ao acompanhamento na comunidade terapêutica.
A Fazenda da Esperança, uma comunidade terapêutica instalada há 16 anos em Passo Fundo, tem unidades espalhadas em todo o país e já recebeu, na comunidade de Guaratinquetá, em São Paulo, a visita do presidente Jair Bolsonaro este ano.
A visita aconteceu pouco depois do presidente sancionar a nova lei de drogas, que alterou o texto de 2006, e foi promulgada no dia 5 de junho. Na nova versão, comunidades terapêuticas ganham mais reconhecimento pelo trabalho com dependentes, mas o que se tornou alvo de debates é a permissão da internação involuntária – antes, ela era permitida apenas sob mandado judicial, de forma compulsória – criticada por especialistas devido à baixa eficiência no tratamento.
Ângela buscou auxílio da comunidade antes da nova lei e o fez de forma voluntária, o que, para ela, a tem ajudado positivamente no tratamento.
Internações
Doutora em Saúde Pública com pesquisas na área da saúde mental, Bernadete Maria Dalmolin avalia com preocupação a reforma do texto em pelo menos quatro aspectos. O primeiro é como a necessidade das internações involuntárias será interpretada pela sociedade, sobretudo se irão acreditar que a medida possa resolver ou minimizar o problema das pessoas dependentes. O segundo, que haja aumento de internações e que os espaços hospitalares não consigam oferecer um suporte de tratamento psicossocial, conforme preconiza a legislação. O terceiro, que se esvaziem recursos para a rede extra hospitalar que, em sua avaliação, já é insuficiente para atender a demanda. E último, que se desconsidere o acúmulo técnico, científico e sócio-cultural na abordagem da problemática.
“Um pressuposto que é importante destacar é de que a dependência de drogas envolve uma situação complexa, com implicações pessoais e sociais, por isso precisa ser abordada de forma consistente, múltipla, por equipes multiprofissionais e, ao longo do tempo. Não existe receita mágica. Nesse sentido tanto a lei anterior quanto essa destacam que o tratamento deverá ocorrer em uma rede de atenção à saúde, deve envolver desde a promoção à saúde até a reabilitação, utilizando a internação (em hospital geral) como último recurso”, aponta.
Ela reconhece, porém, que pode haver situações em que a internação involuntária seja necessária, sobretudo quando “a doença ‘nega’ o problema”, dando uma tônica emergencial ao problema.
Em Passo Fundo, desde que a nova lei de drogas foi sancionada, há 31 dias, o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) recebeu 16 solicitações de internação involuntária. Já internações compulsórias, que dependem de mandado judicial e já eram previstas antes do novo texto, foram 67, de janeiro a junho, fora as que já estavam em andamento no fluxo de atendimento da Saúde.
No mesmo período, 166 novos usuários buscaram tratamento no Caps AD e 478 usuários retornaram ao serviço.
A nova lei define como internação involuntária “aquela que se dá, sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida”.
Chefe do núcleo de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do município, Liliane Postal Waihrich, explica que o familiar com interesse em internar involuntariamente algum parente busca o serviço e agenda uma avaliação involuntária. A partir disso a equipe técnica do Caps, vinculada à Secretaria de Saúde, faz o contato com o usuário, na tentativa de condução para avaliação.
De acordo com Liliane, caso se perceba sinais de que o indivíduo não aceitará ir voluntariamente para a avaliação, é solicitado apoio da Brigada Militar para a condução. Uma vez avaliado, caso o médico identifique a necessidade, é elaborado um auto de infração e o dependente entrará no fluxo para solicitar vaga de internação. O Ministério Público e a Defensoria Pública também são notificados.
“Mas a gente tem uma resposta melhor no atendimento quando o usuário consegue fazer um movimento voluntário”, avalia Liliane. “Porque aí ele se dá conta da problemática dele, e está fazendo um movimento para melhorar e buscar ajuda. As internações involuntárias e compulsórias vêm pra uma situação de crise aguda, aonde a pessoa está sem conseguir usar a capacidade de discernimento para se ver na condição [de precisar de ajuda]. E nesse momento é o momento de internação involuntária.”
Da desintoxicação para o tratamento
Uma vez dentro do serviço o usuário passa por um processo de desintoxicação e depois dá sequência ao tratamento.
O Hospital Psiquiátrico Bezerra de Menezes (HPBM), em Passo Fundo, recebe dependentes químicos, e de janeiro a junho deste ano foram 82 internações compulsórias, com determinação judicial. No ano passado, 2018, foram 242.
Elsa Zanette Tallamini é psicóloga e está há mais de 25 anos no HPBM. Ela identifica uma maior reincidência nos casos de internação compulsória, apesar de não apontar dados específicos, o que, também acredita, pode acontecer nos casos de internação involuntária.
No hospital, a desintoxicação dura de 15 a 28 dias. A nova lei fixa um limite máximo de até 90 dias para esse processo, mas Elsa pontua que isso dependerá da condição do paciente, sobretudo quando se tratar de um quadro mais intenso. “E não se é dado uma cura, mas um tratamento”, delineia.
Em relação ao tipo de substância usada, a psicóloga coloca o álcool e o tabaco em primeiro lugar, com o agravante do crack. O quinto dia de abstinência costuma ser um dos mais difíceis aos usuários em tratamento, pelo que observa, mas se busca dentro da estrutura do hospital o acompanhamento psiquiátrico e psicológico necessário para que o serviço perdure. “A ideia é fazer o usuário voltar à antiga condição dele, antes do uso. E quebrar isso leva tempo”, avalia.
Elsa não acredita que possa haver uma superlotação nos hospitais psiquiátricos com a liberação das internações involuntárias, mas talvez o que ela chama de “massificação” na forma de se tratar a dependência química. A partir disso o impacto que ela imagina que possa acontecer é nos serviços emergenciais e de base, de onde partem as avaliações que levam a uma possível internação.
Para não chegar a esse colapso, a psicóloga defende a necessidade de um trabalho preventivo mais eficaz, com um debate aberto sobre o uso das drogas e suas consequências. “A droga sempre existiu e não será extinta. Então não é dizer que a droga é ruim. Na verdade ela causa uma sensação tão prazerosa que faz o usuário a buscar de novo. Aí se cria a dependência. Então é preciso falar honestamente sobre o assunto.”
Nas comunidades terapêuticas, geralmente, a internação ocorre de forma voluntária, com tempo de permanência maior, definido pelos gestores do local.
Dentro da comunidade
Daniela Arruda, de 36 anos, é voluntária e vice-presidente da diretoria da Fazenda da Esperança, de Passo Fundo.
A comunidade, que fica na Vila Nossa Senhora Aparecida, é acessada por uma estreita estrada de terra que desemboca em um pórtico que indica o local. De cara se leem as placas: “Coisa de Deus é a Fazenda da Esperança”, “Ver Jesus no outro”, “Onde 2 ou 3 ou mais estiverem reunidos... eu estarei com eles”.
Na tarde de quinta-feira, 27 de junho, Daniela não estava. Participava de um retiro em Chapecó. Quem recebeu a reportagem foi o secretário Luciano Zielinievicz, de 24 anos, e a “Tia”. Ela se chama Ilva Bernardia, tem 65 anos, e é voluntária no local há seis meses, mas conhece a comunidade há mais tempo. Em 2015, seu filho, com 27 anos na época, precisou de ajuda para superar a dependência química. “Acho que usava de tudo”, conta, sem saber dizer com quais drogas o filho estava envolvido. Segundo ela, o pedido de ajuda e internação partiu do jovem e ele foi encaminhado à unidade localizada no município de Casca.
Após um ano de tratamento e mudanças de comunidades terapêuticas, ele se “regrou”. Voltou ao catolicismo, que seguia na infância e que havia se distanciado, e tornou-se um missionário, indo para o México.
Auxílio religioso
A unidade de Passo Fundo só abriga mulheres e hoje tem 11 internas – duas delas estão com os filhos. Um dos espaços é destinado apenas para o refeitório e cozinha. No andar abaixo há uma sala com brinquedos. Luciano diz que os aparelhos foram adquiridos por meio de uma verba do Ministério Público.
Os alojamentos ficam ao lado. Cada quarto comporta três camas de solteiro. Parte deles fica em um prédio e os demais, em outro, construído com acessibilidade para cadeirantes. Tem sala, cozinha, banheiro, e é decorado com imagens sacras e mensagens motivacionais.
Tia mostra as produções manuais feitas em outro espaço. Uma das internas pintava um pano de prato e outro grupo de mulheres confeccionava terços. Todos os materiais serão comercializados depois e os valores entregues à comunidade terapêutica.
Isabel, de 53 anos, separava as bolinhas que fariam parte dos terços. Por um problema no dente não estava na horta naquele dia, como de costume. Ela é uma mulher de cabelos ralos e acinzentados. Tem olhos claros e se abrigava em um suéter bordô, calça jeans e tênis branco. Também exibia no peito o colar com o símbolo do TAU Católico. Agora ela está ali como voluntária, mas em abril do ano passado entrou como interna.
Por 10 anos viveu na rua. Sua dependência? Cigarro-álcool-maconha-cocaína-crack. A última, disse, foi a que “devastou” sua vida.
Em 2017 chegou a se internar em outra comunidade, mas quando saiu a primeira coisa que fez foi buscar a droga novamente. Em 2018 estava em Porto Alegre quando conheceu o projeto “Com Deus tem jeito” que a fez vir à Fazenda da Esperança. Permaneceu ali até completar o programa oferecido, que dura um ano, e voltou.
“Acho pouco um ano”, defendeu sobre o período de tratamento. “Por isso voltei. Para me sentir mais confiante.”
Assim que chegam na fazenda a família de cada interna adquire uma cesta de produtos no valor de um salário mínimo, fixado hoje em R$ 954. O valor deve ser repassado mensalmente, mas, segundo Luciano, a entrega da cesta é para que as famílias vendam os produtos e, com eles, mantenham a usuário na comunidade, fazendo com que o desembolso só aconteça no início do tratamento.
“O tratamento, a proposta, é de estar um ano na comunidade, onde elas passam a primeira etapa da triagem, que são os três primeiros meses, para desintoxicação e adaptação a esse novo estilo de vida”, explicou Daniela, por mensagem. Nesses três primeiros meses as internas não podem receber visita da família e apenas se comunicam por carta. “Do terceiro ao sexto mês elas já conhecem a metodologia e o estilo de vida da fazenda e começam a caminhar sozinhas, como a gente fala. Através da vida do evangelho elas vão percebendo essa mudança de serem mulheres novas. E no final da recuperação elas já entram num processo da coordenação, onde elas têm um olhar para as meninas que estão chegando, para orientar e ‘ser luz’ para as meninas que estão chegando e assim concluindo os 12 primeiros meses.”
Faz parte da rotina da Fazenda a ida às missas, o não assistir televisão – apenas missas e filmes de cunho religiosos selecionados pela direção –, o trabalho na Fazenda e o artesanato.
Segundo Dani, das que conseguem concluir o tratamento, 80% conseguem voltar ao convívio da família e conseguem restabelecer sua vida social. Muitas também se tornam voluntárias ou missionárias no projeto. A reincidência acaba acontecendo com as que não conseguem terminar o tratamento.
Raquel Maria Andrades da Silva, de 42 anos, é natural do Recife e está na Fazenda da Esperança há seis meses. Foram 20 anos de drogadição até ela se internar na comunidade. Quem mediou a busca pelo tratamento foi sua filha, de 24 anos. Quando fala dela, Raquel, que tem um largo sorriso, fica séria e umedece as vistas. “Ela pediu para mim, buscou e eu aceitei. Essa menina é um anjo”, diz.
No quarto em que fica, ela tem um mural onde se vê fotos da família e da filha, a quem é agradecida.
Raquel não nega a dificuldade de se lidar com a falta das drogas que costumava consumir – crack, álcool, maconha e cocaína. “As vezes dá vontade de fugir”, confessou, ao mesmo tempo que pondera que o auxílio da religião a faz permanecer no espaço.
Neste ano também passou pela primeira comunhão, convertendo-se ao catolicismo, já que antes era praticante do Candomblé. O que, para ela, a tem ajudado a ver uma nova vida.
Traumas de uma internação involuntária
Na outra ponta, quem passou por uma internação ou tratamento forçado não recorda-se com carinho.
Maria*, de 22 anos, foi internada aos 14 na ala psiquiátrica do Hospital São Lucas, da Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Por ser de menor, foi levada pelos pais, de maneira forçada, a buscar o tratamento.
Além do uso de cocaína, que havia começado aos 12 anos, o fato de ser lésbica fez seus pais quererem uma “cura gay” na filha. “A internação veio de surpresa. Eu não sabia o que iria acontecer. Após uma tentativa de exorcismo, um psiquiatra padre fez a internação à força sem diagnóstico, como se a cura gay fosse um castigo. E todos meus problemas eram por isso”, relembra-se.
Na época, Maria morava em Paraí e precisou ficar dois meses internada. Suas lembranças são compartilhadas com rancor. Uma experiência que diz ter-lhe causado traumas que até hoje não são bem lidados por ela.
“Como eu não tinha diagnóstico eu era a única pessoa q não tomava remédios. Não tinha pátio porque era dentro do hospital. Dividi quarto com três pessoas. Tinha medo de dormir e acordar também. Vi minha colega de quarto tendo um surto psicótico e sendo amarrada numa maca por dois dias, ela gritava que queria ir no banheiro, mas os enfermeiros queriam que ela se urinasse. Não tinha recreação. Apenas horários pra acordar, comer, dormir e, se você fosse ‘bonzinho’, poderia ter 15 minutos de banho de sol no estacionamento do hospital”, conta, dizendo sentir-se como uma “cobaia”.
Hoje Maria mora em Passo Fundo, longe da família. Abandonou os estudos e, mesmo tendo passado por uma experiência na qual queriam que saísse “curada”, ela permanece com o uso da droga e não acredita que tratamentos forçados possam ajudar alguém a parar com a droga.
*Nome fictício