Em uma madrugada de inverno, no ano de 2009, a química Maria Camozzato teve o sono interrompido pelo violento barulho de um temporal. A intensidade das chuvas, ventos e trovões fez com que a passo-fundense, tomada pela preocupação, começasse a refletir sobre como estariam encarando tais condições climáticas as famílias de baixa-renda do município, vivendo em casas de madeira, repletas de frestas e vulneráveis às adversidades do tempo. “Eu acho que foi uma iluminação divina, é a única conclusão. De repente, me ocorreu a ideia de fechar essas casas com caixas de leite para impedir a entrada de chuva e proporcionar um isolamento térmico”, ela conta. Uma série de testes e um ano de tentativas foram necessárias até que Maria encontrasse um grupo de voluntários dispostos a ajudá-la a tirar a ideia do papel e criar o projeto pioneiro Brasil Sem Frestas, que já ajudou a revestir com embalagens Tetra Pak a moradia de 235 famílias em situação de vulnerabilidade social.
É principalmente neste período de inverno, quando as temperaturas mínimas em Passo Fundo chegam a ficar abaixo de zero, que a demanda pelo serviço aumenta. Conforme Maria, nos últimos meses, os voluntários têm revestido uma média de três casas por semana, em diferentes bairros do município. Há até uma lista de espera para a instalação dos isolantes. “No verão, esse número é bem mais baixo, mas como esse inverno está sendo bem rigoroso os pedidos aumentaram. Felizmente, a equipe de voluntários também aumentou um pouco, então temos conseguido revestir mais espaços, à medida que temos material suficiente”, compartilha. Hoje, cerca de 35 pessoas auxiliam em todas as etapas de execução do projeto. Reunidos em um pavilhão, que serve como sede provisória, eles separam as caixinhas de leite de acordo com a marca, abrem e higienizam o material, cortam as bordas com uma guilhotina e costuram ou grampeiam as caixas umas nas outras a fim de formar o que eles chamam de “chapas”. São essas chapas que são grampeadas nas paredes das residências atendidas. Tudo acontece de forma completamente gratuita.
De acordo com Maria, a eficácia das chapas não se detém somente à obstrução das frestas: enquanto as camadas de plástico das caixas servem para evitar a entrada da chuva e do vento, a camada de alumínio serve também como um isolante térmico, em qualquer época do ano. “No verão, pode diminuir em até 8°C a temperatura dentro da casa. Já no inverno, como a parte de alumínio fica para o lado de dentro, o calor humano ou de objetos como o fogão rebate na chapa e volta para a casa”, comenta. Em alguns casos, fragmentos de embalagens remanescentes servem até para decorar as paredes – as ilustrações são recortadas e transformadas em adesivos. “É uma coisa muito legal porque você utiliza a embalagem como revestimento de parede. Antes, o pessoal fazia apenas o forro para diminuir o calor, mas não usava para revestir. Fomos os primeiros a colocar em prática essa ideia”.
Outro ponto interessante, ainda segundo a voluntária, diz respeito ao aspecto ambiental. Dando uma nova destinação às caixas de leite, o Brasil Sem Frestas evita que toneladas de um material que demoraria 200 anos para se decompor chegue à natureza. “Cada chapa tem 12 caixinhas de leite. Para revestir uma casa inteira, são necessárias cerca de 100 chapas. Então, são 1200 caixas de leite reutilizadas em uma única moradia. Nesse tempo de projeto, nós já reciclamos 20 toneladas de embalagem Tetra Pak. Ou seja, além de levar mais saúde e conforto para as pessoas, a gente também ajuda o meio-ambiente”, explica.
Para mapear as casas que necessitam do revestimento, os voluntários recebem indicações da própria população, que costuma entrar em contato por telefone, e realizam visitas a bairros carentes. “Quando você vai em um bairro, normalmente você não fica só em uma casa, você faz até cinco casas, porque os vizinhos veem e querem também. Mas eu acho que os órgãos oficiais poderiam fazer essa solicitação para a gente quando eles constatam que existem residências precisando. Infelizmente, não há uma solicitação oficial dos órgãos, é raro”.
Um projeto feito por muitas mãos
O que começou como um “trabalho de formiguinha”, nas palavras de Maria Camozatto, ultrapassou as fronteiras municipais e, hoje, tem sido replicado em 27 cidades brasileiras e, mais recentemente, até mesmo na África. “Uma moça de Florianópolis, que conhecia o nosso projeto, viajou para um país da África e visitou uma creche onde ela pensou que seria de grande ajuda confeccionar um forro como o que nós fazemos. Ela então entrou em contato, há cerca de um mês, com um dos nossos multiplicadores e nós passamos todo o projeto técnico e as orientações para ela. Depois disso, eles já puseram a mão na massa e revestiram a creche”, compartilha, orgulhosa. “Esse tipo de coisa é o que nos entusiasma. Daqui um tempo, essa ideia vai se tornar tão corriqueira que as próprias pessoas vão revestir as suas casas, não vão precisar ficar esperando”.
Doações
Interessados em ajudar o projeto por meio de doação de caixas de leite, grampeadores, grampos e roupas podem visitar a sede do Brasil Sem Frestas, na Fagundes dos Reis, n° 97. É neste espaço que as chapas são confeccionadas e onde um bazar é mantido como forma de obter rendas para a manutenção do projeto. “Inclusive, estamos com duas máquinas de costura na nossa sede sem serem usadas porque não temos equipe suficiente. Então, quem for costureiro e puder nos ajudar em forma de serviço voluntário, para costurar as chapas, mesmo que pontualmente, pedimos que nos procurem”, solicita Maria. O telefone para contato é (54) 9 9128-3327.