Faltavam mais de duas horas para o espetáculo começar no Circo Alegria na quinta-feira (11), instalado há três semanas em Passo Fundo, na Vila Independente, e o palhaço “Cuequinha”, que sem a maquiagem e as roupas do personagem era Daniel Jones Geiss, de 21 anos. Ele estava tranquilo. Vestia uma camiseta e uma bermuda, no clima acalorado para um inverno de julho no Rio Grande do Sul, e não começava um assunto sem dizer que era “uma longa história”. Invadiu a lona do circo, tomou cadeiras e sentou-se próximo à uma cama elástica. A falta de ansiedade poucas horas antes de um espetáculo não lhe tirava o frenesi pelo o que fazia e faria, e era explicada na história de quem, na infância, decidiu que circense seria sua profissão.
Não havia tanto colorido quando começou a falar. A barraca que vende pipoca ainda estava desligada. Não havia música. Nem fantasias. Tampouco maquiagens. Apenas se viam as correntes de luzes acesas, que iluminavam a lona colorida sobre o picadeiro, e as que saiam das janelas dos trailers ao redor.
Ao mesmo tempo em que era um lugar comum, também não era. As crianças têm escola, as contas são pagas, os lazeres são vividos e o trabalho é executado. Porém, com endereços que se mudam em semanas. E foi isso que encantou Daniel.
“É uma longa história”, começou o palhaço, que é natural do Chuí, cerca de 800 quilômetros de Passo Fundo. Ele conta rindo. Tinha sete anos quando uma trupe passou por sua cidade e ele se encantou. Disse que sempre foi brincalhão e logo cativou o responsável pelo circo, de nome “Companhia” e mais alguma coisa que não se recorda, que o chamou para vender maçãs do amor. “Minha mãe não deixou. Falou que eu tinha era que ir pra escola. Mas eu fugia para ir ao circo”, lembra-se. Nesse interim completou oito anos e fala que o mesmo homem lhe ofertou algo que depois virou sina. “Ele [dono do circo] pediu se eu não queria me maquiar de palhaço para vender. E eu aceitei. Meu palhaço se chamava Batoré e nisso eu fiquei até o circo ir embora e ele me convidar para ir junto”.
Daniel era criança, mas como quem sabe o que quer, decidiu ir. O grupo circense, em um posto de gasolina, esperou-o fazer a mochila e fugir de casa, na aventura de fugir com o circo que se passa pelo imaginário de crianças e até adultos.
Seus pais suspeitaram de pronto e não longe de casa a polícia parou a comitiva circense. Ele se escondeu. Mas foi o tempo de uma semana para a polícia invadir um espetáculo em Ijuí e o leva-lo para casa de novo. “Foi uma tunda bem doída”, conta da sua volta para casa, o que não o fez desapegar-se do circo.
Daniel disse que depois a tia chegou a fazer roupas para ele e que em casa brincava de ser palhaço. Entre os 13 e 14 anos, idade que não consegue cravar, é que se entregou de vez a esta arte, unindo-se ao Circo Alegria, onde está até hoje.
3ª geração
Daniel é um dos nomes que sobe ao picadeiro e que faz parte da história atual do Circo Alegria. Mas com uma semelhança que se repete, pode ter sua biografia misturada com a de outro artista pela entrega e paixão pela arte circense. Como disse Maximiliano Pacheco Decuadro, de 31 anos, “você começa brincando e vira profissão”.
Maxi, assim apelidado, é a terceira geração circense da família e está à frente do Circo Alegria. Quando fala sobre a magia do circo deixa os olhos se perderem no brilho das correntes de luzes e aponta o picadeiro como um portal. “Tu cruza a cortina e tudo passa”.
O “tudo passa” que fala são as dores a que todo ser humano está sujeito a provar e viver. O público recebe o espetáculo de cores e luzes e sons, paga por ele, entra e sai sem saber, às vezes, os nomes por de trás das maquiagens e das roupas chamativas. As crianças encantam-se e veem quase que um mundo imaginário a sua frente. Utopia feita por humanos. E Maxi respeita esse quase “conto de fadas” do picadeiro como uma religião. “E é essa a magia”, frisa, sobre o efeito do passar das cortinas.
Ele é natural do Uruguai, seu pai e seu avô também. Com uma história parecida com a de Daniel, o avô de Maxi entrou no circo na infância, e, sem obrigar, levou a família toda.
Max diz que até tentou, por seis meses durante os seus 31 anos, viver em apenas uma cidade. Mas reitera que não conseguiu.
“Em 2001 viemos para o Brasil. A língua foi um pouco difícil, mas no Rio Grande do Sul temos muitas outras coisas em comum. E quando a gente é criança brinca com tudo: trapézio, malabares... acho que não tem alguma coisa que não se faça. Porque quando o circo é de família todo mundo faz tudo”, aponta, detalhando que, quando se fala de circo, acontecem parcerias com outras companhias, chegadas e saídas de artistas e, como foi com o Circo Alegria, a criação de um novo grupo a partir de outro.
Sem rotina
Ali são 13 pessoas. Para Passo Fundo, por exemplo, a expectativa é de ficar seis semanas. Há cidades que o tempo é menor, o que não é possível mensurar sempre. Só no Sul do Brasil Maxi calcula rapidamente, sem ter muita certeza, que foram mais de 200 cidades, “fácil”, pelas quais já passaram. Há uma busca antes, em que o filtro é encontrar cidades que não estão com circo ou que não receberam circo recentemente. Depois vem a escolha do terreno. Parte burocrática que envolve aluguel, alvará e outros documentos, e a matrícula da crianças em escolas.
Maxi, que cresceu no ambiente circense, sempre estudou. Mudou várias vezes em cada ano. E, em cada escola, disse que teve que responder como tomava banho, como ia ao banheiro, o que fazia e etc. No Circo Alegria há apenas duas crianças, uma de sete anos, Isabelli, filha da esposa de Maxi, e o Mateo, de 1 ano, filho dele com a esposa, com quem está há três anos.
Morar no circo
Tatiane Pereira, esposa de Maxi, tem 30 anos, e é natural de Caxias do Sul. Antes era podóloga e largou a rotina da profissão para viver no circo. “A única questão foi as crianças viverem longe dos pais”, conta sobre a reação da família.
A distância dos parentes é o que cita como empecilho, dizendo até que “as pessoas [que não vivem do circo] acham que é muito diferente” do habitual, mas que não é.
Os quatro vivem em um caminhão que foi adaptado. Os espaços e os móveis foram todos pensados. O lugar é aconchegante e, no oposto do que parece ao se olhar de fora, não é limitado. Tem cozinha, sala, banheiro e quarto. A casa-caminhão tem móveis embutidos, carpete, e até degraus que levam ao banheiro e ao quarto – com a diferença de se ter de quintal onde a boleia levar.
No passado o circo e a ideia de circo estiveram associadas ao simplismo e à desorganização. “Às vezes acham que a gente fica dormindo o dia inteiro e só acorda para o espetáculo. Mas não é assim. Tem muitas coisas para fazer. Você precisa ser muito organizado para viver no circo”, defende Maxi, contrariando argumentos que já ouviu do senso comum.
Seu pai veio de uma outra geração em que foi preciso dormir em barracas, e por isso ele reconhece as diferenças e as aponta com afinco. E embora a maior parte dos espetáculos sejam à noite – com exceção dos finais de semana – é preciso ocupar o dia para reparos, treino, e questões particulares.
A pequena Isa, que acompanha a conversa, gosta de tudo aquilo. Ela não treina nada especificamente no Circo Alegria, mas consente quando se fala da hipótese de um dia ela voar no trapézio. “Eu queria ter asas de borboletas”, emenda, sobre como o faria. Maxi acrescenta que circo deve ser uma escolha e por isso esperam o momento que ela decida. “Quando você cresce no circo é diferente”, defende, já que Isa tem apenas três anos junto do grupo.
Atrás das cortinas
É que é preciso a maturidade para o picadeiro. Quando Maxi disse que ao cruzar a cortina tudo muda, é porque o artista também sofre.
Seu avô, que deu à família a herança do picadeiro, já entrou em cena minutos após saber da morte de sua mãe, bisavó de Maxi. Dores musculares, mal estar, pouco descanso entre uma montagem de palco e abertura de bilheteria, também. Por de trás do riso do palhaço ou das manobras do trapezista, às vezes, mora uma angustia que nunca é vista pelo público. E nem será. “Você vai dar o melhor de ti para o público. Vai esquecer naqueles minutos”, define Maxi sobre o comprometimento do artista.
A fora há as mudanças de tempo e gerações que pedem a reinvenção do circo. Na infância Maxi viu leões nascerem. O último casal de leão e leoa foi deixado em Passo Fundo junto com um casal de Babuínos – há mais de 15 anos, calcula, última vez que passou pela cidade, com outro grupo. Mudança que também pediu outro tipo de espetáculo. “Hoje os personagens do YouTube, dos desenhos, ocupam o espaço dos animais”, aponta. Segunda reforma do circo que viu, sendo a primeira o fim do circo-teatro, com espetáculos seguidos de uma apresentação teatral, nos circos de rua.
Mas ainda que se veja a metamorfose, permanecem ali as bases do palhaço, do trapézio, do malabares, do riso arrancado da plateia, da atenção a olhos altivos, tiradas de crianças e adultos.
E, embora estivesse incomodado por estar sem sua tinta vermelha já depois das 20h, Daniel maquiou-se embaixo de uma das lâmpadas olhando-se na tela do celular. O espetáculo estava por começar e era hora de se tornar “Cuequinha”, trajado em um macacão roxo e com maquiagem suficiente para esconder até a tatuagem no rosto. Ele ainda não sabia, mas lá fora, três crianças que diziam ter medo de palhaço acreditavam: Ali dentro não teriam.
A magia ia começar.