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Gilson Langaro Dipp, magistrado aposentado do STJ e primeiro coordenador da Comissão Nacional da Verdade, em entrevista à Rádio UPF, fala sobre declarações e atos do presidente da República

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Declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre fatos do regime militar mostram desconhecimento, acirram os ânimos de uma sociedade extremamente dividida e não contribuem para a resolução dos problemas econômicos e sociais que o país enfrenta. Esta é a leitura do ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e primeiro coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Gilson Langaro Dipp. 

No início da semana, em entrevista sobre o agressor Adélio Bispo de Oliveira, Bolsonaro atacou o presidente da OAB Felipe Santa Cruz, dizendo que o pai dele, Fernando Santa Cruz, desaparecido durante o regime, fazia parte do movimento Ação Popular. No dia seguinte, terça (30), Bolsonaro chamou de “balela” os documentos sobre os mortos e desaparecidos na ditadura militar. Após questionar a legitimidade da Comissão da Verdade, o presidente anunciou ontem (1º) a troca dos membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Diante das falas do presidente, Dipp falou, em entrevista ao programa Café Expresso da Rádio UPF, sobre o contexto de criação da Lei da Comissão Nacional da Verdade, os atos do presidente, que denominou como “exterminador do presente”, e o papel das instituições neste cenário. Disse que juridicamente a quebra de decoro configura impeditivo para o exercício da profissão, mas não vislumbra “clima político para impeachment”.

Comissão da Verdade
Gilson Dipp: As declarações [em relação à Comissão da Verdade] do presidente da República são lastimáveis. É preconceituosa, de total desconhecimento do que houve. O que mostra que o capitão Bolsonaro certamente não tem nenhuma cultura sequer militar para entender o que foi a criação da Comissão Nacional da Verdade, apesar de ter sido parlamentar à época e ter participado do processo de criação da lei. E diz esses disparates que confundem a população, acirram os ânimos de uma sociedade já totalmente dividida e que gratuitamente, no momento em que era entrevistado sobre outro tema, recompõe a memória de que há mortos e desaparecidos no Brasil no período da ditadura militar e agride a memória do pai do presidente da OAB, que foi um dos desaparecidos.
O que ocorre no Brasil é que a Comissão da Verdade foi a última a ser criada na América Latina, daqueles países que tiveram regimes militares e consequentemente violações dos direitos humanos. A Comissão da Argentina, do Uruguai, do Peru, do Chile já tinham iniciado e praticamente concluído seus trabalhos de apuração da verdade histórica quando foi criada a do Brasil. Porque houve muita resistência de determinados segmentos sociais contra a criação desta comissão. Essa reação, certamente, era das próprias Forças Armadas, que nunca reconheceram formalmente que houve o regime ditatorial e que houve sim violação aos direitos humanos.
Durante a criação da Comissão, foi amplamente debatida essa ideia por vários movimentos partidários, sociais, inclusive com a participação das Forças Armadas no embrião da formação da lei. A lei foi votada, foi aprovada pelo Congresso Nacional e impôs os limites de atuação da Comissão Nacional da Verdade. Ela referiu expressamente como objetivo, a recuperação da memória histórica de um período ditatorial. Recompôs a verdade. Impôs ao Brasil, o dever de divulgar seus resultados para que as futuras gerações não tivessem mais a sensação de poder viver em um regime não democrático. Ela teve um limite porque expressamente se referiu na lei que a Comissão Nacional da Verdade tem de estar obediente ao determinado pela Lei de Anistia. Ou seja, não poderia ser ela o instrumento de ordem penal, de punição, de abertura de processos.
Nesse clima foi criada a comissão. Depois o presidente disse que as nomeações dos integrantes era algo exclusivo da ex-presidente Dilma (Rousseff). Não foi assim. Houve um consenso, houve uma discussão sobre esses segmentos sociais. Foram ouvidas também as Forças Armadas. Eu sei desse consenso, desses nomes que foram escolhidos e foi difícil chegar a um consenso, porque eu fui um dos indicados. Tudo isso se deu de maneira transparente e até com certa dificuldade, pelo momento atual.
Criada a Comissão, ela teve dois anos e meio de intensa atividade. Eu participei dos primeiros quatro meses apesar de ser o primeiro coordenador. Ela teve um trabalho seríssimo de ouvir vítimas da ditadura, familiares de mortos e desaparecidos, ouvir militares. Obteve documentos no exterior, e principalmente os documentos significativos que vieram dos Estados Unidos. Aqui tivemos dificuldade em obter esses documentos principalmente pelas Forças Armadas, que alegavam a destruição de documentos que diziam respeito a fatos que nós perquiríamos e dificuldades inclusive do Ministério das Relações Exteriores do Itamaraty, que é sim um repositório muito grande de documentos. Eu acompanhei, mesmo a distância, a sequência e a finalização da comissão. Consequentemente os seus resultados, e os relatórios demonstram isso, de extrema importância para a história do Brasil e está disponível a quem quiser apreciá-los e estudá-los.


Atos de Bolsonaro
Dipp: A Comissão de Mortos e Desaparecidos [referente às trocas anunciadas ontem por Bolsonaro] não é a Comissão Nacional da Verdade. Porque a Comissão Nacional da Verdade não era comissão de governo, não estava subordinada a interesses desse ou daquele governo. Essa comissão, que foi de mortos e desaparecidos, estava no Ministério da Justiça, foi repassada a Comissão de Direitos Humanos e, pelo que acompanho, ela foi totalmente defasada. Ela foi dizimada em relação aos seus objetivos, que são legais e por resoluções e portarias. Todos os conselhos, não só sobre esse tema, mas tudo que tem participação popular, que é um princípio fundamental, o governo Jair Bolsonaro está exterminando. Eu diria que ele não é o exterminador do futuro, ele é o exterminador do presente.

Impeachment do presidente
Dipp: O conjunto da obra, essa série de atos disparatados, pode ser incluído na lei de 1950, que define os crimes de responsabilidade. Nós poderíamos incluir aqueles que dizem respeito à falta de decoro, a falta de honra e de dignidade no exercício do cargo. Esse é um princípio que está escrito na lei e que pode causar um impedimento. De fato, o Brasil não está preparado, não há clima político, há uma ampla divisão social, segmentos da sociedade estão se gladiando em termos de ideologia, de religiosidade, de interesse econômico, social, que não propicia um ambiente para um processo de impeachment.
O Brasil já está em um ambiente altamente nefasto de divisão, de radicalismo. O Congresso Nacional não teria hoje coragem de avançar num processo desses até porque é um congresso novo. O presidente da Câmara, que é moderado, tem aspirações políticas muito acima do cargo que hoje ele ocupa e ele é o responsável pelo juízo de admissibilidade, ou seja, de início de um eventual processo de impeachment. Ele não faria isso.

Cenário brasileiro
Dipp: Ninguém está servindo de filtro para o presidente. Nem as Forças Armadas, nem o Executivo, nem o Congresso Nacional representado por todas as forças que representam a sociedade, nem o judiciário. Ou seja, há um estado de leniência. Há um estado de estupefação para qualquer medida mais ou menos drástica que se poderia tomar em relação às atitudes do presidente.
Há sempre um nível que possa ser suportado e nós ainda não sabemos. Temos reformas político, econômicas e sociais. O Brasil continua ainda com alto grau de desemprego, a indústria não retomou suas atividades, a desigualdade social aumenta. Nós temos uma política nefasta em relação ao meio ambiente que tem interesse internacional e não é o interesse internacional dito pelo governo.

Papel das instituições
Dipp: As instituições brasileiras estão funcionando. Todos os filtros que poderiam e que deveriam haver em relação aos atos do presidente tem que ser aqueles filtros essenciais e exclusivos do regime democrático. Passa pelo congresso nacional, passa pelo judiciário eventualmente, em especial o Supremo Tribunal Federal, ao Ministério Público, as Defensorias Públicas e ao próprio bom senso dentro do Executivo. E, em especial, dentro das Forças Armadas porque presidente não gaba-se de ser capitão, apesar de ser um capitão que foi praticamente excluído das fileiras do exército exatamente por posições radicais tomadas lá atrás. Nesse conjunto, entra a própria sociedade que, tão dividida, também vai ter um limite de bom senso que vai exigir do presidente que ele atue como presidente de todos os brasileiros, não apenas para um segmento que eu acredito que seja muito menor do que se pensa. Aquele segmento radical da sociedade que acredita e que idolatra o presidente seja o que for que ele diga ou faça.

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