A batida eletrônica retumbava pelo monumental Arthur Ashe Stadium, em Nova York, enquanto flashes de luzes e painéis neon davam a impressão de que a lendária Times Square havia sido transferida para dentro do maior estádio de tênis do mundo. Nas arquibancadas, porém, as pessoas não se enfileiraram para assistir Roger Federer ou Rafael Nadal rebater a bolinha amarela. A rede que conectava, dessa vez, era a virtual entre as telas dos computadores dos cem melhores competidores do jogo Fortnite e os cerca de 1,3 milhão de espectadores que os acompanharam durante os três dias de duelos solo ou em dupla pelo site de streaming gamer Twitch.tv. Os gráficos do gênero battle royale desenvolvidos pela Epic Games, onde os jogadores lutam em espaços que vão se tornando menores até vencerem o confronto com outros adversários, fizeram a ponte área entre a cidade norte-americana e a capital do Planalto Médio. Na bateria de confrontos da primeira edição da Copa do Mundo de Fortnite, o passo-fundense Henrique “kurtz” foi o brasileiro de maior destaque na competição internacional do videojogo.
Aos 14 anos e finalizando o Mundial com 18 pontos, o jovem ficou a poucas posições dos 20 melhores jogadores na modalidade solo da multi-plataforma. “Top 27, poderia ter ido melhor se não tivesse morrido na 2° partida”, comentou, horas depois do término do torneio, em sua conta pessoal na rede social Twitter. Na última queda, “kurtz” eliminou o americano Turner "Tfue”, um dos nomes mais conhecidos no competitivo de Fortnite que decepcionou nos duelos individuais do campeonato realizado de sexta-feira (26) até domingo (28), quando consagrou o também americano Kyle “Bugha” como primeiro campeão mundial de Fortnite. “Você se demonstrou um garoto novo, mas com muito uma intuição objetiva”, felicitou um internauta. O desempenho do gamer despertou a atenção, inclusive, do seu clube do coração. Colorado, o perfil do Internacional de Porto Alegre fez menção ao nome de Henrique desejando-lhe “sorte” e destacando a extensão do feito atingido por ele. Além de Kurtz, mais quatro game players brasileiros disputaram a etapa mundial. Nicollas "Nicks" foi 51º colocado na classificação geral, com 12 pontos; enquanto Leonardo "leleo", o 57º, com 12; Pedro "Lasers", o 71º, com seis; e Igor "drakoNz", o 75º, com cinco.
“Os videogames, a nível social, são vistos como uma perda de tempo ou um convite ao ócio”
Embora os norte-americanos tenham mantido a hegemonia no pódio da primeira competição mundial do jogo, os gamers que representaram, sobretudo, Brasil e Argentina lançaram um foco de luz sobre o celeiro latinoamericano de eSports. “Geralmente, os videogames, a nível social, são vistos como uma perda de tempo ou um convite ao ócio. Isso está mostrando que, além de ser uma atividade inclusiva, onde qualquer pessoa pode jogar e começar a competir com as mesmas possibilidades”, avalia o jornalista argentino, Hernán Mármol, em entrevista concedida à reportagem do Jornal O Nacional. Dos 12 anos desde que começou a atuar no Diário Clarín, os últimos seis estão sendo dedicados por ele às coberturas dos principais acontecimentos e eventos relacionados à editoria de tecnologia com enfoque no ramo de videogames e eSports “ainda quando as competições começaram a ganhar espaço na região”, como comenta. “Tanto no Brasil quanto na Argentina e também no Chile há jogadores destacados, não apenas em Fortnite, mas em League of Legends e Countrer Strike. Nos principais torneios sempre têm latinoamericanos. O potencial da região poderia ser muito maior se as condições econômicas dos países e as estruturas que temos em conexão de rede fossem melhores”, observa. Ao lado do brasileiro “kurtz”, que retornou do Arthur Ashe Stadium com a premiação de 50 mil dólares, o jogador e compatriota de Mármol, Thiago “King” Lapp, aos 13 anos de idade, obteve o melhor desempenho entre os game players da América Latina, no âmbito mundial, ao conquistar a quinta colocação e embolsar o montante de 900 mil dólares.
Um hábito mantido por 60% dos brasileiros
Seja na camiseta, cuja tipografia destaca ícones do jogo de ação Bloodborne desenvolvido pelo japonês Hidetaka Miyazaki; na mesa de trabalho, observado pela réplica do personagem Kratos de God of War; ou até mesmo em casa, nas duas prateleiras que servem de morada para inúmeros bonecos em minuatura de figuras do universo geek, o gosto por videogames mantido pelo jornalista Marcus Freitas, aos 34 anos, o acompanha desde os cinco anos de idade quando ganhou a versão nacional do videogame Atari. “Na década de 1990, a pirataria impulsionou muito os jogos. Mesmo não sendo correto, ela alavancou o desenvolvimento porque é um nicho muito caro. Mesmo não sendo original, a pessoa tinha o que jogar, e ela jogava”, observa. Do analógico ao virtual, 66,3% dos brasileiros, assim como Marcus, jogam algum tipo de jogo eletrônico, conforme revelou a 6ª edição da Pesquisa Game Brasil (PGB), divulgada em junho deste ano. “Mesmo na faixa entre os 25 e 54 anos a penetração é bastante elevada (61,9%), contrariando o senso comum de que os gamers são adolescentes. Isso faz sentido com a evolução da indústria e comércio nacional de jogos digitais, presente de modo significativo no país desde o início dos anos 1980”, afirma o presidente da Blend New Research, Lucas Pestalozzi, à revista Forbes. A pesquisa revelou também que as mulheres são a maioria do público gamer, no Brasil, representado 53% dos jogadores no país pelo quarto ano consecutivo.
Entre as plataformas preferidas pelos jogadores, como mostra ainda o estudo, os consoles são utilizados por 73% dos entrevistados. Os computadores aparecem logo depois na preferência de 67%, seguidos dos celulares e tablets que, juntos, representam 56% das plataformas utilizadas pelos gamers. Um quarto dos entrevistados disse, ainda, usar todos os meios para jogar. “O game é algo social. Você pode jogar sozinho, no single player, online, com amigos. Antigamente você ia na locadora. Eu acompanhei toda essa evolução [dos videojogos] e foi bastante rápida. Você não diz que tudo isso aconteceu em menos de 30 anos”, considera Freitas.
Aquilo que ele mantém como gosto e aperfeiçoa durante 6 horas semanais, se transformou em tese científica e uma possível projeção para o futuro da profissão que escolheu. “Meu objeto de pesquisa foram jogos criados a partir de notícias em uma avaliação de quanto o jogo tem de jornalismo e o quanto é, de fato, jogo, a partir de um newsgame sobre a Revolução Farroupilha e outro sobre a corrida presidencial”, explica.
A indústria milionária da 'profissão gamer'
Por hobbie, como denuncia o brilho no olhar de Marcus ao falar sobre o assunto, ou por profissão, que levou os jovens ao campeonato mundial de Fortnite, a indústria dos jogos eletrônicos acolhe uma comunidade estimada em 75 milhões de gamers brasileiros, como mostrou um levantamento do Instituto Datafolha. O faturamento está estimado em 1,5 bilhão de dólares com a venda de jogos, licenciamentos para fabricação de miniaturas, artigos de vestuário e equipamentos necessários para a prática dos games. “Quanto maior o número de pessoas jogando, mais probabilidade de aparecimento de pessoas que se destacam. Então, temos um filão de mercado de gente que pode se tornar gamer profissional”, avalia o coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão Digital da Universidade de Passo Fundo (Gepid/UPF), Adriano Canabarro Teixeira. “As indústrias vão faturar milhões, então elas querem que as pessoas joguem. Um gamer pode ajudar a popularizar os jogos e contratá-lo para ensinar outras pessoas a jogar”, menciona.
A observação feita por Teixeira se reflete, por exemplo, no Mundial de Fortnite, que foi histórico não apenas pelo desempenho do passo-fundense “kurtz” e do argentino “King”, mas também pelas cifras astronômicas colocadas na tela dos competidores. No somatório final, a competição do Battle Royal da Epic Games distribuiu 30 milhões de dólares . Isso configurou a segunda maior premiação da história dos eSports, perdendo apenas para o The International de Dota 2. “Não é mais uma brincadeirinha, virou um negócio”, constata o gamer Marcus Freitas.