Carlos Brandão recém chegara de Goiana a Passo Fundo. Sentado em um sofá dentro do prédio da reitoria da Universidade de Passo Fundo (UPF), olhava o cronograma das Jornadas de Extensão do Mercosul, que começaram na noite de noite de quarta-feira, dia 6 de novembro, e encerram na noite de sexta (8). Pegou um café que estava sobre a mesa e sorriu. “Posso conversar tomando?”
Mestre em Antropologia e doutor em Ciências Sociais, Brandão está com 79 anos, mas seus estudos sobre Educação Popular começaram muito antes e se misturaram aos de Paulo Freire, patrono da educação brasileira. O próprio termo, “educação popular”, diz ter sido criado por ele, ainda na ditadura militar.
Íntimo de Freire, Brandão diz que após os estudos do pernambucano, a experiência em Angicos e a Pedagogia do Oprimido, criou-se um marco nos estudos sobre educação. “E que não só no Brasil, mas em termos mundiais é muito difícil você pensar em educação sem passar por Paulo Freire”, defende. Durante 45 minutos de conversa, Brandão analisa pontos do legado de Freire, rebate as críticas e ofensivas que querem tirar o posto de patrono de educação do pernambucano e olha para a crescente onda antineoliberal da América Latina. “Gradualmente a sociedade civil, com mais peso no Brasil do que no Chile, vai começar a pagar o preço desse projeto [neoliberalismo]. A não ser que ela esteja muito cegada com o fundamentalismo religioso e cultural, ela vai se insurgir, porque isso será sentido no bolso, na segurança, na vida.”
O Nacional: Existe uma resistência com Paulo Freire, sobretudo por parte das elites e de alas conservadoras. Qual o maior legado que Freire deixou e o que se deve repensar sobre suas ideias para este momento?
Carlos Brandão: Primeiro eu vou falar sobre, vamos dizer assim, essa, não resistência, essa oposição a Paulo Freire. Nós estamos muito contentes porque parece que o tiro saiu pela culatra. Fiquei sabendo que em São Paulo, a editora Paz e Terra, que publica a maior parte dos livros dele, sobretudo Pedagogia do Oprimido, tá felicíssima porque as vendas triplicaram. Um monte de gente que não conhecia Paulo Freire agora quer saber quem é. É Paulo Freire pra todo lado, eu não aguento mais [risos]. Aqui, na Colômbia, em todo lugar. Até na Suíça. E não é só uma questão de estar badalada, mas uma questão de estar sendo repensada com seriedade. Agora, quando me perguntam sobre o legado de Paulo Freire, em vez de fazer aqueles discursos suntuosos, eu gosto de fazer um paralelo com Einstein, guardadas as proporções e diferenças, eu gosto de dizer o seguinte: Quando Einstein descobriu a teoria da relatividade, nada mudou. Quer dizer, não surgiram carros, computadores, máquinas fotográficas por causa da teoria da relatividade. Mas nunca mais o universo pode ser pensado da mesma maneira. Nós vivemos antes e depois da teoria da relatividade. E a mesma coisa Paulo Freire. Por exemplo, o [Rudolf] Steiner criou a Escola Antroposófica, criou a pedagogia Waldorf, e ela está espalhada pelo mundo inteiro. No Brasil tem várias. Maria Montessori a mesma coisa. Tem várias escolas montessorianas. E você não tem nenhuma rede de escolas freirianas. Então o Paulo não deixou um legado que se materializasse. Volta e meia você ouve falar que um colégio aplicou a teoria freiriana. Mas não tem uma rede, como no caso da escola antroposófica. Por isso o paralelo com Einstein. É que não só no Brasil, mas em termos mundiais, é muito difícil você pensar em educação sem passar por Paulo Freire. Quer dizer, Paulo Freire criou, não é tanto uma teoria, o que ele criou foi um sistema de educação. Agente pensa que é só um método, mas é todo um sistema em que ele previa, desde 1960, até uma universidade popular. Então a grande contribuição, o grande legado de Paulo Freire, é ele não tanto como um criador de uma metodologia, de uma escola, mas como o criador de um pensamento, que não é só sobre educação. Paulo Freire é um pensador do homem, da sociedade e deságua na educação. Ou se quiser ao contrário: pensador da educação, que pensa educação como cultura, cultura como política e que aí envolve sociologia, antropologia, filosofia, psicologia, pedagogia. Então esse é o grande legado.
ON: Mas ao que se deve esse movimento contrário a ele, emque se é rechaçado esse legado, quase que como uma negação? Essa resistência seria uma resistência à própria pedagogia do oprimido?
Brandão: Antropólogo tem a mania de pensar uma coisa através da outra. Então vou te responder de uma maneira muito simples: se você percorrer as eras da humanidade e na atualidade os espaços do mundo, você vai ver que Jesus Cristo é pensado desde um deus até um demônio. Ou inexistente, ou um louco. E não tem quem não seja. Pra você ter uma ideia, outro dia via um vídeo sobre o mundo religioso nos Estados Unidos e lá existe uma igreja cristã hitlerista, inclusive com o busto de Cristo e o de Hitler, lado a lado. Eu to dizendo isso, pra dizer que, qualquer pessoa que seja proeminente em qualquer campo, ela tende a ser vista de mil maneiras. E a mesma coisa acontece com Paulo Freire. Ele é uma pessoa que chegou em tal visibilidade não só pelas suas ideias pedagógicas, mas pelas políticas pedagógicas que o tornaram um homem muito controvertido. Porque a grande questão de Paulo Freire, é que Paulo não criou uma pedagogia restrita ao mundo da educação. Ele criou uma pedagogia para que, através da educação, pessoas, conscientizadas, politizadas, se tornassem agentes de uma transformação social. A educação popular que tem origem nos anos 60, é uma pedagogia que, sem nenhum espírito de drama, é regada a sangue, tortura e exílio. Porque pensou-se uma educação associada a todo um projeto de cultura popular com uma proposta transformadora, revolucionária. Então é isso. E não é só Paulo Freire. Quando você lê os livros mais acadêmicos da historia da educação, eles, em geral, passam batidos por experiências pedagógicas, escolares, que representaram uma crítica e uma mobilização contra um status quo. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul, lá em Rio Grande, no século 19, operários espanhóis criaram escolas anarquistas, fechadas a tiros, com prisões e tudo isso, de certa maneira a educação popular tem uma educação semelhante. Nunca foram criadas escolas, como disse, a única experiência concreta dele foi o Mova (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), através do convite da [Luiza] Erundina. Mas uma pedagogia que, por sua vocação política de transformação, não só sofreu no passado, como sofre agora esse ataque. Aliás, muito bobo, porque o tiro tem saído pela culatra.
ON: A pesquisadora Conceição Paludo diz em uma de suas obras que a educação popular passa por um processo de refundamentação. Na ditadura e redemocratização, os brasileiros beberam da fonte da educação popular, o que foi importante sua mobilização. Hoje, parece-se que há um sentimento de esgotamento nesses setores. Quais os desafios da educação popular e dos educadores?
Brandão: Toda a educação popular foi montada em cima de uma visão de classe e de luta de classe. No original da “Pedagogia do Oprimido”, ele [Paulo Freire] fez um esquema, a mão, em que ele fala da teoria da ação revolucionária. Era uma visão revolucionária com cuba como modelo. E uma visão classista. De luta de classe. Mas isso nos anos 60. Eu mesma tinha uma visão classista. Mas agora nós estamos ingressando, já vivendo, a quarta revolução industrial do capitalismo. Todo esse momento de pandominio globalizado do capitalismo, de privatização de tudo, do petróleo até a sexualidade, passa pelo mundo empresarial. Então o que é que acontece, você está vivendo em outro mundo, 50, 60 anos depois, novos dilemas, novas questões. Durante anos, pra mim, 50, 60 anos, questão ambiental era papo de americano, é coisa que não fazia sentido, era conversa pra tirar nosso foco da única questão que importava que era a reforma agrária. A gente combatia até o feminismo. A gente dizia: quando vier a revolução socialista vai acabar tudo, patriarcado, problema de índio, negro, tudo isso vai se resolver. Doce ilusão. Então surgem esses novos dilemas, eles afloram. Se constituem como problemas que têm uma dimensão própria e não se esgotam com uma transformação social. Poucos países são mais devastadores que a China e a Rússia, que cumpriram essa desgraçada função. Então o que acontece: novas questões e novos agentes. E educação popular se reconceitualiza, ela se abre a novas questões, por exemplo, educação popular ambiental, questão feminista. Então se tem essa quarta revolução do capitalismo neoliberal, com todas essas características que a gente já conhece: privatização, sucateamento, fundamentalismo, autoritarismo disfarçado, e a educação popular ela, nesse momento, está mais ou menos situada numa espécie de ponto de balanço. Ela periga de se diluir pra justamente se adaptar a esses novos atores e essas novas questões e se transformar numa pedagogia social. E eu tenho uma visão, mais uma vez de antropólogo, que é a seguinte, querer defender a educação popular, que é um paradigma, querer defender como única educação valida, principalmente dentro da visão freiriana, é cair num fundamentalismo. É fazer exatamente o que a gente critica nos outros. Inclusive nesse governo bolsonarista. Então eu acho que justamente no mundo globalizado como esse, em que o desafios, dilemas e contradições, os ataques são tão plurais, envolve desde as religiões, até a política, mundo militar, indústria, todos os campos... acho que também as nossas respostas devem ser plurais.
ON: Mas hoje é possível pensar uma educação libertadora mesmo com todas as contradições com o sistema?
Brandão: Eu acho que sempre é possível. Ou seja, essa pergunta que você faz, a gente pode generalizar pensando o seguinte: o Paulo cunhou, não sei se é dele, ou se ele cunhou uma expressão que é símbolo do Paulo, que é a ideia de inédito viável. O inédito viável é a possibilidade de irrupção, de chegada daquilo que é, digamos, inesperado, improvável, impossível, mas que sempre pode irromper. A Marilena Chauí fala que o grande perigo, a grande ameaça que paira sobre nós, e nós abrirmos mãos de projetos utópicos, sonhar e lutar por justiça, que vai de causas indígenas, feminismo, até sociedade socialista com liberdade, e cairmos nas distopia, cair na utopia do capitalismo. Ou seja “o mundo ideal já está realizado”. É esse que ta aí. Que é o mundo do mercado, o mundo apregoado pela mídia. O mundo do Trump, do Bolsonaro. Nós somos portadores da nova era, que não é nem um projeto do futuro, que já é um projeto realizado. O que vocês chamam de utopia são o que nós chamamos de ilusões, daí o ataque a Paulo Freire.
ON: Existem algumas iniciativas de educação popular que conversam com multinacionais. Como tu vês esse tipo de conversa com dois pontos que parecem antagônicos? Há que se tecer uma crítica ou é necessário ter esse tipo de aliado nesse novo momento?
Brandão: Aí é que você vê uma diferença entre o capitalismo central, dos Estados Unidos, Europa, que é o capitalismo civilizado. Quer dizer, nenhum capitalismo é civilizado. O capitalista vende a mãe se der lucro. Mas que pelo menos tem uma visão mais aberta. Não o Trump, que é uma excrecência da historia. Mas por exemplo, existe o capitalismo que ainda prevalece na Europa e o capitalismo do século passado, que é o nosso. Agora acabou de haver o fórum Paulo Freire na Suíça, e eles têm uma plena consciência de que uma pedagogia freiriana não os amaça, como também ela pode ser apropriada, de alguma maneira. Enquanto no Brasil não. Porque no Brasil você tem uma visão do capitalismo do século 18. Estamos vivendo um tripé da perversão. Que é um capitalismo privativo, globalizado, imperialista, depois o autoritarismo militar que, de forma disfarçada, está vindo nesses projetos de educação, de controle, de vigilância, e o fundamentalismo extremamente retrógrado, que está vindo não só por essas igrejas neopentecostais eletrônicas. Então estamos debaixo desse tripé do mal: autoritarismo, capitalismo neoliberal e fundamentalismo, atacando por todos os lados, ideologia, educação, religião. Coisa que você não tinha na ditadura. A ditadura era muito mais inteligente. Muito mais repressiva, inclusive era uma guerra, um combate ao comunismo, mas sem o mesmo grau de repressão, um estado totalitário capitalista, talvez mais perverso. Não o Bolsonaro. O Bolsonaro é um boneco de recado. Quem ta por trás do Bolsonaro, sem dúvida, tem um projeto de América Latina, talvez de mundo, de se estabilizar. Mas ao mesmo tempo você vê que toda a América Latina esta se sacudindo.
ON: Da pra se dizer que há crescido o movimento antineoliberal na América Latina?
Brandão: Sempre existiu, inclusive, muito forte entre artistas, intelectuais. Dessa vez está tendo um problema, não sei se chamaria de uma frente a todo esse tripé de autoritarismo, neoliberalismo e fundamentalismo, mas uma frente que ainda não mobilizou setores populares. Parece que está todo mundo se resguardando, mas acredito que seja uma coisa episódica. Eu tenho uma visão, vide o que acontece no Chile, de que a politica pública, ou as politicas públicas desse projeto são não só anti-populares, como antissociais. Gradualmente a sociedade civil, com mais peso no Brasil do que no Chile, vai começar a pagar o preço desse projeto. A não ser que ela esteja muito cegada com o fundamentalismo religioso e cultural, ela vai se insurgir, porque isso será sentido no bolso, na segurança, na vida.
ON: Mas no Brasil parece que esse momento não chegou ainda.
Brandão: Pois é. Aqui no Brasil, eu penso que, mesmo sobre aparência de uma espécie de macrocontrole, já que não temos nem o fantasma do socialismo soviético, o capitalismo está cavando sua tumba. Porque não vai dar. Esse projeto, em termos de sucateamento de natureza, de inclusive competição entre eles... o Trump, por exemplo, está pouco ligando pra América Latina. O problema dele é um problema de hegemonia, um problema de oposição politica da Rússia, relação comercial com a China. Então a briga de foice é lá em cima. A gente ta só, levando os ponta-pés. Eu não teria condição, leitura, pra fazer uma análise política. Mas esse acontecimento no Chile, embora pareça pouca coisa, porque começou com aumento da passagem de ônibus, foi só o estopim. E agora estão pedindo a renúncia do presidente que esta arriando as calças pra tudo. Agora o povo diz “não, não basta”, “a gente quer você e seu sistema”. Então você vê que em cada país é uma coisa. Na Bolívia é completamente diferente, é contra o Evo [Morales], que é um cara de movimentos indígenas. No Equador foi muito forte, que inclusive foi a mesma coisa, o governo recuou de tudo. Então lá no Equador é índio, no Chile, classe média. E eu tenho quase certeza que o pessoal no Brasil está sentindo. Realmente essa politica é uma política universal. Aqui na América Latina é uma política universal e de periferia, porque lá, pelos menos, eles estão trabalhando nos termos deles, aqui estamos trabalhando nos termos que eles nos impõe. Eles: as grandes corporações, as multinacionais.