“Onde estão todos estes negros?”, perguntou Krisla da Rosa, de 20 anos, ao saber da pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontou para a inédita maioria de estudantes negros e negras em universidades públicas do Brasil. Segundo o levantamento, divulgado em novembro deste ano, 50,3% dos alunos matriculados no ensino superior público do Brasil são negros ou negras. O espanto de Krisla é porque em Passo Fundo ela se sente exceção dessa pesquisa. Na Universidade Federal da Fronteira do Sul (UFFS), em que há apenas o curso de Medicina, ela faz parte do 1.19% de alunos que são negros – ou o mesmo que dizer que está entre o um estudante negro para cada 83,5 estudantes brancos ou entre os quatro estudantes negros dos 334 alunos.
A UFFS tem 90% dos seus alunos oriundos de algum sistema de cotas. Esse percentual para acesso é calculado pelo número de alunos matriculados em escolas públicas no ensino médio do estado. O ingresso, válido apenas pelo Sisu, oriundo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), da prioridade para 90% dos alunos que estudaram integralmente em escolas públicas durante o Ensino Médio. Desse total, 50% são destinados para estudantes com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. E do primeiro total, ainda há a garantia de que as vagas sejam preenchidas por pessoas autodeclaradas negras, pardas, indígenas ou com deficiência. Na UFFS, há também uma medida em vigor que determina, para além da lei de cotas (Lei 12.711 de 2012), que em todas as novas turmas haja uma vaga exclusiva para indígenas.
Apesar disso, negros e negras que buscam o ensino superior público não tem o acesso tão facilitado como o senso comum defende ao falar da política de cotas. Isso porque disputam lado a lado de pardos, indígenas e pessoas com deficiência. O recorte por curso é que deixa mais evidente essa realidade quando, pelo menos em Passo Fundo, são irrisórios diante de uma massa de estudantes brancos.
“Tem certeza que quer cursar medicina?”
Quando Krisla, natural de Alegrete/RS, optou por Medicina, ouviu dos pais uma pergunta que soou estranha: “Tem certeza que quer cursar Medicina?”. Enquanto há vibração em outras casas pela opção do filho em um curso que traz garantias futuras, sua família fez o caminho contrário. Krisla diz que a pergunta foi feita pela busca da certeza. Queriam que ela escolhesse algo por amor, vocação, entrega e não para provar algo ao status quo. Mas a certeza da jovem já estava ali. Quando a mãe, com depressão, cursou Técnico em Enfermagem para tentar entender o que se passava com ela, Krisla fascinou-se pelo corpo humano. As estruturas. O funcionamento. Os órgãos. Com seu sim, é que foi acolhida pelos pais.
Krisla estudou em escolas privadas. Quando terminou o Ensino Médio foi provocada a ir a uma instituição pública. Com o sonho da Medicina, a família não teria como bancar a universidade, embora tenha bancado os primeiros anos. Então terminou os anos obrigatórios e entrou em um cursinho pré-vestibular.
No passado, Krisla não queria tudo isso. O ir à escola era algo pesado para ela. De Alegrete, a família mudou-se para Blumenau/SC. Foi na mesma época em que a mãe teve depressão, em 2008 – um ano antes seu avô e irmão haviam morrido. Lá, a volta das aulas era também a volta das lágrimas no rosto. Sua mãe foi quem a lembrou disso depois de 11 anos. É que Krisla não aguentava mais ser a última escolhida para tudo. Ser a deixada de lado. E também ser a única negra na turma. Faltasse o apoio passado, Krisla nem sabe o que aconteceria. É que sua pele negra ainda a faz ter que provar que pode e é capaz diante da maioria branca que está em todo lugar.
“Cadê os negros que deveriam estar aqui?”
Isabella Gatto Pires, de 24 anos, natural de Santos/SP, tem uma opinião mais incisiva. Ela também cursa Medicina na UFFS. É negra. Mas define: “Em Santos eu não sou tão negra”. O comentário explica o porquê sua inscrição na UFFS é como “parda”. Ela não faz parte dos quatro negros que estão nas estatísticas da universidade. Dos 334 alunos, os que entraram pelas cotas para pardos, negros, pessoas com deficiência e indígenas são 66. Desses, 62 são pardos. Apesar disso, Isabella pergunta: “Cadê os negros que deveriam estar aqui?”
Ela riu quando soube os dados da pesquisa do IBGE. Em Santos, ela também era a única negra na turma da escola. Mesmo assim via mais negros ocupando outros espaços na cidade e por isso não se sentia, o que explica como, “tão negra”.
Até a 8ª série, o 9° ano de agora, estudou em escola particular, na cidade vizinha, Cubatão. Sua mãe, professora, trabalhava em uma escola pública conciliando com a escola privada em que conseguiu bolsa integral para Isabella e a irmã, mais nova. Quando chegou ao 7° ano, sua mãe largou o emprego na escola privada e, logo, Isabella perderia a bolsa. Na época a diretora permitiu que ela e a irmã permanecessem por mais um ano na escola. Então findando o Ensino Médio ela prestou uma prova e ingressou em um Instituto Federal de Cubatão. Para ela, essa mudança foi essencial para ingressar no ensino superior.
Também com o sonho da Medicina, e com um tio médico, ela idealizou e se matriculou no cursinho. Realizou o desejo. Mas não vê na turma ninguém como ela. “É diferente olhar pro lado e não ter ninguém como você”, diz. Não há professores negros. Nas aulas que faz no hospital, assistida, foi confundida por enfermeira, fisioterapeuta. Única a não ser reconhecida como aluna de Medicina. “E você não tem ninguém para perguntar: isso aconteceu com você?”, desabafa, referindo-se ao racismo velado, já que não soube de estudantes branco que passaram pela mesma situação.
Então mesmo que haja um levantamento estatístico que aponte para a maioria negra no ensino superior público, ela se expressa com desdém por não ver no dia a dia referencias negras.
“Escureceu pra quem?”
Leandro Tuzzin é coordenador acadêmico da UFFS e disponibilizou os dados da universidade. Diante das estatísticas sobre a maioria negra na universidade pública, ele também questionou: “escureceu pra quem?”.
Tuzzin é um dos 17 membros da comissão criada na UFFS que analisa as inscrições por cotas raciais. Pelo menos em Passo Fundo todos os inscritos nessa categoria passam por uma entrevista gravada em que são analisados os fenótipos dos concorrentes à vaga e é perguntado o por que a pessoa se considera parte daquela recorte de cota. Na comissão estão pessoas ligadas ao movimento de negros e negras, do Ministério Público, da Polícia Federal e pesquisadores.
Tuzzin olha para esse cenário e não se anima. Ele não aponta para uma solução palpável para que mais negros ocupem as universidades públicas. Na sua visão, discutir apenas política de cotas não irá “enegrecer” as faculdades, mas sim uma reestruturação nas bases, que tirará o debate do racismo apenas do dia da Consciência Negra e o colocará em todo o ano.
Entenda
Em vigor desde 2012, quando foi sancionada pela presidenta (PT), a Lei 12.711, ou Lei de Cotas, determina uma série de garantias ao acesso às universidades para estudantes de escolas públicas, baixa renda, negros, com deficiência e indígenas. A modalidade foi criada para garantir que a universidade pública e gratuita tenha alunos que realmente não sejam capazes de arcar com os custeios de uma privada, por exemplo, e permitir que o acesso ao ensino superior seja para todas as pessoas, independente de classe social, cor e etnia.
Professor da UFFS e doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mairon Valério esclarece a política de cotas e critica o pensamento contrário. "Ao oferecer uma equalização de oportunidades por meio das cotas que levasse em conta a história dos afro-brasileiros, os setores brancos medianos (principalmente aqueles que investem no capital cultural para ascender) sentiram seus privilégios ameaçados, daí o ódio irracional, a repulsa e a incapacidade de perceber que a ideologia racista é que lhes garantiu uma melhor posição na hierarquia social e não o mito de 'sua capacidade pessoal'. Daí a necessidade de explicar que as cotas nunca 'tirou' vagas dos brancos nas universidades, mas proporcionalmente criou mecanismos que pudessem inserir os afro-brasileiros nestas instituições. Como é que a maioria de negros e pardos no Brasil quase não eram presentes nas universidades? Como explicar? Como resolver o círculo vicioso alimentado pela ideologia racial?"
O Nacional: No dia da consciência negra se falou muito em “dívida histórica” em relação aos negros e negras. O que é essa dívida e onde é sentido esse abismo que ela criou entre negros e brancos?
Mairon Valério: A dívida é de caráter histórico. Os africanos foram escravos no Brasil por mais de três séculos e fomos o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão negra. Nesse processo a poderosa ideologia racial, primeiro de cunho religioso e depois sancionada pela ciência, legitimava a dominação escravista dos africanos e seus descentes. Ao inferioriza-los garantia-se o uso de seus corpos para a produção da riqueza das elites e da classe média no país. A abolição não apagou o racismo e mesmo numa suposta ordem livre a ideologia racial restringiu o acesso dos africanos e descendentes a melhores condições de vida. As exceções confirmam a regra de uma hierarquia racial onde o branco está no topo da pirâmide social e pobreza tem cor (na clara percepção de que os detentores dos meios de produção e os profissionais liberais são majoritariamente brancos em condição desproporcional ao enquadramento étnico da população). O resultado é simples: apesar de termos uma maioria negra e parda no país, empresários, médicos, juízes de direito, diplomatas, etc, são esmagadoramente brancos, o que resulta em instituições dominadas por um olhar branco geralmente assentado no mito da meritocracia e que reforça o estigma da inferioridade racial perpetuando o racismo. Os imigrantes europeus, ainda que pobres, chegavam e eram assentados socialmente por políticas de estado de colonização, e mesmo os que não desfrutavam disso tinham o privilégio de serem vistos com dignidade por conta da ideologia racista presente.
ON: Criada há sete anos, a lei que instituiu a política de cotas ainda é alvo de ataques. Qual é o “atrito” causado por esse projeto e a quem ele "incomoda"? A política de cotas "tira" a vaga de alguém?
Valério: A lei de cotas incomoda pois admite três coisas que a sociedade brasileira sempre se negou a enxergar:
1) De um lado que somos profundamente racistas apesar de termos criado o mito da democracia racial que afirma que não somos (já que com as cotas estamos reparando uma injustiça histórica derivada da ideologia racista);
2) De outro, desestabiliza essa hierarquia racial/social que restringia o acesso dos afro-brasileiros aos espaços e instituições que oferecem capital cultural (o que permite certa ascensão social na sociedade capitalista);
3)Por fim, aponta para a falácia da meritocracia que, ao nivelar numa espécie de igualdade tábula rasa de todos (brancos, negros, e indígenas por exemplo), garantia de modo hipócrita a hegemonia branca dessas instituições. A ira está justamente nessa possibilidade de quebra dessa hierarquia racial. Anteriormente esses espaços eram restritos e quase exclusivos dos brancos. Com isso, a lógica da exclusão dos afro-brasileiros se reproduzia, pois com o capital cultural de uma formação superior, essa camada privilegiada dentro de uma ordem social estruturada pela ideologia racista garantia profissões, melhores empregos e uma cultura disciplinar que, nessa ordem social, lhes rendiam melhores condições de vida, de estabilidade social, econômica e tempo para investir em mais formação pessoal e na formação de seus filhos. O círculo vicioso se reproduzia e mantinha aquém das oportunidades os afro-brasileiros que historicamente estavam em sua grande maioria na base da pirâmide social (com os piores trabalhos, as piores condições de moradia, ausência da escolarização e a necessidade de trabalhar desde muito cedo para auxiliar em casa, a constante exclusão, a pressão psicológica e inferiorização etc). Ao oferecer uma equalização de oportunidades por meio das cotas que levasse em conta a história dos afro-brasileiros, os setores brancos medianos (principalmente aqueles que investem no capital cultural para ascender) sentiram seus privilégios ameaçados, daí o ódio irracional, a repulsa e a incapacidade de perceber que a ideologia racista é que lhes garantiu uma melhor posição na hierarquia social e não o mito de “sua capacidade pessoal”. Daí a necessidade de explicar que as cotas nunca “tirou” vagas dos brancos nas universidades, mas proporcionalmente criou mecanismos que pudessem inserir os afro-brasileiros nestas instituições. Como é que a maioria de negros e pardos no Brasil quase não eram presentes nas universidades? Como explicar? Como resolver o círculo vicioso alimentado pela ideologia racial?
ON: Segundo dados do IBGE, estudantes negros são, pela primeira vez, maioria nas universidades públicas. Qual o papel da lei que instituiu as cotas nesses índices?
Valério: Esse é um dado interessante. Há aí uma grande oportunidade histórica de embate sério com a ideologia racista da sociedade brasileira. A ampliação da rede universitária brasileira, tanto privada – num primeiro momento nos anos 1990 – e depois pública a partir do século XXI, com a ampliação da rede de universidades e institutos federais gerou condições de absorção maior do contingente populacional no ensino superior e, consequentemente, os afro-brasileiros também começaram a marcar maior presença nesses espaços. Para isso também contribuiu políticas públicas de incentivo, de financiamento estudantil, de bolsa, etc. Já a lei de cotas contribuiu de modo significativo para o acesso especialmente dos afro-brasileiros.
ON: Apesar do aumento, negros ainda são a minoria em determinados cursos. Em Passo Fundo, onde a universidade pública tem apenas o curso de Medicina, há só quatro estudantes autodeclarados negros. Quais cursos os estudantes negros estão ocupando e por que quando se fala de cursos de alta concorrência eles ainda são minoria?
Valério: Há uma presença significativa de afro-brasileiros em diversos cursos nas universidades públicas. Sem dúvida que em cursos de menor concorrência há uma presença mais significativa, como nas licenciaturas, por exemplo. No entanto os outros estão sendo gradativamente ocupados também. No caso de cursos como o de medicina, de alta concorrência, o acesso se dá exclusivamente pelas cotas predestinadas. Isso ocorre pois na livre concorrência os afro-brasileiros sofrem a desvantagem de sua condição estrutural de inferioridade carregada de séculos de racismo. A necessidade de uma escola básica que dê uma formação sólida é uma carência em termos gerais de todos os brasileiros pobres, incluindo aí a maior parte da população afro-brasileira. Quem pode pagar dois ou três anos de cursinho pré-vestibular para um filho concorrer a uma vaga de medicina? Que filho de família negra tem condições de bancar um curso em tempo integral sem um tipo de auxílio? Muitos cursos, por sua natureza, não são nem para filhos de trabalhadores, quanto mais para negros. Com certeza a permanência da hierarquia racial e social explica o fenômeno.
ON: Além das cotas, quais outras políticas de inclusão deveriam ser debatidas e instauradas para minimizar a diferença e permitir amplo acesso de negros nas universidades públicas?
Valério: Acho prioritário neste momento discutir e implantar políticas de manutenção e auxílio aos que entram nas universidades. As dificuldades para estudar, se manter e ter qualidade na formação são as principais carências. Fora isso uma política de renda mínima e obviamente uma revolução na educação pública.