A conclusão das obras, em 1910, dos 179 quilômetros de extensão do trecho ferroviário Passo Fundo-Marcelino Ramos, representou o início de um processo migratório, de constituição e desenvolvimento de muitos municípios dos entornos. Um século depois, quem passasse pela linha férrea encontraria abandono e vestígios de um meio de transporte que ficou reservado para o passado. Os processos econômicos, políticos e sociais que motivaram o fim do transporte na região, em 1997, foram estudados pela mestra em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Aline Asturian Kerber, em sua pesquisa de Pós-graduação.
Antes de chegar à desativação da linha Passo-Fundo-Marcelino Ramos é preciso percorrer a história de colonização que o trem trouxe no início do século XX. “Nesse período, as matas do Alto Uruguai ainda não estavam inseridas nas configurações econômicas capitalistas, sendo habitadas por populações indígenas e caboclas que produziam para sua subsistência. A ferrovia foi um dos fatores que impulsionou o início da colonização e gerou expectativa de grande desenvolvimento nesses locais. Nos arredores das estações tiveram origem diversos municípios, cujas constituições também estão vinculadas à chegada de migrantes provenientes das chamadas colônias velhas do Rio Grande do Sul e de imigrantes europeus que no início do século XX ocuparam esses territórios em busca de melhores condições de vida e da propriedade da terra”, contextualiza a pesquisadora.
De acordo com Aline, no início, o transporte ferroviário foi explorado por companhias estrangeiras. Isso causava problemas aos olhos do governo gaúcho, já que o valor dos fretes era elevado e os serviços, de baixa qualidade. “Afetava diversos setores da economia gaúcha como a agricultura, pecuária e indústria. O discurso do governo positivista em relação à necessidade de comando pelo Estado era claro, com críticas ao não cumprimento das cláusulas contratuais pelas empresas estrangeiras. Assim, o governo se articulava para encampar e unificar as ferrovias estaduais, antiga aspiração dos positivistas”.
O governo conseguiu estatizar o serviço em 1920, mas a medida acabou não trazendo grandes melhorias. “Ainda na primeira metade do século XX, inicia-se a decadência das ferrovias como principal meio de escoamento da produção e no deslocamento de pessoas em âmbito local e nacional. Os automóveis e caminhões deixam de ser produtos considerados de luxo, apesar de ainda não serem amplamente acessíveis a população”, pontua a pesquisadora.
A partir dos 1950, as rodovias ganham espaço e investimentos de sucessivos governos brasileiros. Aline explica que, ao passo que as ferrovias passam a não mais corresponder às expectativas de desenvolvimento do início do século XX, o momento é marcado por um aumento da interferência federal em setores de infraestrutura e mudanças na estrutura administrativa. Em 1957 é criada a Rede Ferroviária Federal S.A., que acabou incorporando as ferrovias gaúchas naquele período.
Com a Rede Ferroviária Federal, o governo fez novas ações no setor. Ramais que não eram economicamente viáveis foram desativados e estações de menor movimento, fechadas. Ainda, houve uma preferência pelas cargas em detrimento do transporte de passageiros. O trecho Passo Fundo-Marcelino Ramos, por exemplo, encerrou o serviço ferroviário para pessoas em 1982. “Apesar das medidas, o transporte ferroviário continuava a ser deficitário e era nítido que havia uma predominância de políticas governamentais voltadas para as rodovias”, argumenta a historiadora.
Aline salienta que a construção de outros ramais ferroviários ajudou no processo de decadência do trecho. A construção do Tronco Sul, em 1969, entre Lages a Roca Sales, foi uma alternativa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul e fez a estrada por Marcelino Ramos perder movimento. Em 1979, foi construído outro ramal, a Ferrovia L-35 (Ferrovia do Trigo), que ligava Passo Fundo a Roca Sales. “A partir de então o transporte férreo no norte do Rio Grande do Sul passou a ser pensado a partir de Passo Fundo para o centro, para o sul e para a capital do estado, Porto Alegre. Além disso, as melhorias dos acessos asfálticos na região tornavam desleal a concorrência entre trem e caminhão”, analisa, sobre o fim do protagonismo das ferrovias.
Concessão à iniciativa privada
A pesquisadora explica que já nos anos 1980, o movimento no trecho Passo Fundo-Marcelino Ramos decaía e, nos anos 1990, passa a ser inexpressivo.
De acordo com ela, somado ao fato de que o transporte ferroviário perde espaço para as rodovias, há uma combinação de fatores que levam a concessão do serviço à iniciativa privada. Primeiro, há uma influência neoliberal no Brasil. “Uma das características dessa doutrina é a retirada do estado de setores como energia, transporte, comunicações e outros. Foi o governo de Fernando Collor (1990-1992) que deu início à ruptura do modelo até então adotado de grande interferência estatal na economia, iniciando os processos de concessões e privatizações, o que foi acentuado no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)”.
Ainda, em âmbito local, havia entraves econômicos que influenciaram a desativação do trecho. “Os problemas operacionais são apontados desde a construção, com traçados sinuosos, aclives e declives que não permitiam o desenvolvimento de grandes velocidades e o trânsito de composições com muitos vagões, principalmente de Erechim a Marcelino Ramos. Isso, em conjunto com os problemas de conservação do material permanente como trilhos e dormentes, bem como o sucateamento de locomotivas e falta de vagões da VFRGS e posteriormente da RFFSA, condenaram, inevitavelmente, o trecho a uma situação precária”.
Aline ressalta que apesar dos problemas, o governo mantinha o trecho em operação porque a RFFSA cumpria um papel social, como, por exemplo, mantendo os preços dos fretes. “Com a concessão da Malha Sul à ALL e considerando a lógica de mercado, não era mais necessário manter o trecho Passo Fundo-Marcelino Ramos. Entregue à iniciativa privada em situação de quase abandono, não seria o grande capital que recuperaria décadas de falta de investimento estatal em um trecho, de fato, pouco rentável economicamente. A inviabilidade econômica do trecho foi a alegação da empresa para a desativação, apenas três meses após assumi-lo”, analisa.
Na memória dos trabalhadores
Durante a pesquisa, Aline entrevistou antigos trabalhadores ferroviários e ouviu relatos sobre como o transporte marcou a vida das pessoas destas comunidades. Apesar do sentimento nostálgico, da época do trem de passageiros e da idealização destas memórias, também há um tom crítico em relação aos rumos do serviço e a perda de prestígio em trabalhar no setor. “Os ex-funcionários relatam o sentimento de impotência diante do processo de concessão e da falta de apoio da população para tentar impedir o processo. Muitos sabiam que iam perder seus empregos. Portanto, apesar dos trabalhadores sempre se referirem com saudade do tempo em que trabalhavam na ferrovia, há também certa sensação de decepção com os rumos do transporte ferroviário no país e na região”, contextualiza.
A pesquisadora questionou os ex-ferroviários, antes da decisão judicial, sobre a possibilidade de reativação do trecho. Eles consideraram a hipótese muito improvável devido às condições do trecho e do investimento que seria necessário diante de décadas de abandono.