Para além de um paradigma ainda estabelecido no jornalismo que presume a imparcialidade, quiçá frieza e indiferença, do repórter no trato com suas histórias e pessoas, é preciso que exista sentimento e emoção. Isso porque contar uma história exige confiança, em especial de quem viveu, direta ou indiretamente, os fatos.
Antes de continuar esse relato, sinto-me na obrigação de explicar dois jargões da profissão aos que não são do meio. Chamamos de fonte pessoas que, periodicamente, nos passam informações. Há também os personagens, ou cases. Estes são pessoas que contam suas histórias, geralmente para reportagens especiais. São os sujeitos de alguma história. E todos somos.
Na profissão, é comum que o jornalista tenha contato mais próximo de uma fonte do que de um personagem – que ele pode ter conversado uma vez na vida. Porém, alguns personagens nos atravessam com suas histórias. Este é o caso do seu Ivo Ferrão, vereador emérito da cidade de Passo Fundo. Eu conversei com seu Ivo umas três vezes, no máximo. A primeira vez para agendar entrevista, a segunda para ouvir sua história e a última quando ele ligou para me agradecer pela reportagem.
Apesar desse mínimo contato, sempre guardei carinho e admiração por ele. Por sua história. Especialmente porque ele me ajudou a resgatar a memória de uma ruína que existe na Avenida Presidente Vargas. A estrutura era do frigorífico Planaltina, que, na segunda metade do século XX, estimulou o desenvolvimento urbano da região São Cristóvão, gerou muitos empregos e acabou batizando o bairro Planaltina. Apesar do abandono, aquele prédio é um lugar de memória.
Falar de memória é também abordar as noções de tempo e provocar uma reflexão sobre a relação entre passado, presente e futuro com a história. O conceito de lugares de memória, ao qual me apropriei acima, foi proposto pelo teórico francês Pierre Nora. Ele é associado ao que na academia se chama de movimento da Nova História – estudo sobre memória e identidade– e também à História do Tempo Presente – que observa fenômenos sociais e históricos a partir de rupturas e permanências temporais.
O conceito de Nora se refere a monumentos, processos físicos, museus, arquivos históricos, dentre outras estruturas e documentos. A carcaça do antigo Frigorífico Planaltina é um destes lugares de memória. Mas, como bem afirmam os autores que escrevem sobre o tema, a memória não é somente espontânea. Somos nós, os sujeitos do presente que a produzimos. Para tal tarefa, é preciso de pessoas como seu Ivo Ferrão, um personagem de Passo Fundo.
Ivo trabalhou por cerca de 20 anos no frigorífico, começou como operário, foi chefe e recebeu prêmio por arriscar sua vida para salvar a de outros colegas. Saiu de lá quando se elegeu vereador, na década de 70.
O relato dessas pessoas é imprescindível para produzir e publicar reportagens, que também são lugares de memória. Esta reflexão é uma forma singela de homenagear Ivo Ferrão, que como diz uma fonte minha “teve a infeliz ideia de partir”. Ele faleceu na noite de terça-feira (7), no Hospital de Clínicas. O jornalismo não precisa ser apático. Obrigada pela confiança e pela contribuição para a memória local. Aos amigos e familiares, meus sinceros sentimentos pela perda.