Embora mais da metade dos resíduos produzidos no Brasil seja composta por matéria orgânica, segundo um levantamento feito pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), apenas 1% deste volume recebe o tratamento adequado. O índice representa quase 37 milhões de toneladas de lixo orgânico por ano – um material que poderia ser transformado em adubo e até mesmo biogás, mas que acaba tendo como principal destino os aterros sanitários, onde a decomposição do material traz efeitos nocivos ao meio ambiente, como a geração de gás metano e chorume. Em Passo Fundo, por exemplo, onde a produção de lixo orgânico gira em torno de 40 toneladas por dia, políticas públicas de reaproveitamento são praticamente inexistentes. O destino é um aterro sanitário localizado em Victor Graeff, seguindo os padrões da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Para tentar suprir a lacuna, iniciativas populares têm surgido no país e visam dar um novo destino ao material reciclável, principalmente através da técnica de compostagem. É o caso do centro mantido de maneira independente pelo técnico em reciclagem orgânica e agricultura natural, José Teixeira Belém, de 71 anos. Localizado na Vila Colussi, no interior de Passo Fundo, o espaço de aproximadamente um hectare foi arrendado pelo aposentado há pouco mais de um ano, com o intuito de criar um projeto para reaproveitamento de matérias orgânicas. Segundo a estimativa de José, o centro de compostagem evita que cerca de 15 toneladas por mês tenham como destino o aterro sanitário mantido pelo município. A coleta é feita pelo próprio empreendedor, em restaurantes e residências parceiras. Além de ser transformado em adubo e terra orgânica, que depois são comercializados em sacos de 2 a 30kg, os resíduos servem também para adubar uma horta orgânica que o técnico mantém na mesma propriedade. “É uma maneira de gerar renda extra, mas o valor maior é a vida”, defende.
Processo de compostagem
Dono de um comércio de massas há cerca de 30 anos, no Centro de Passo Fundo, José conta que a ideia de reciclar materiais orgânicos começou como um hobby que expressava o amor à natureza que ele nutria desde jovem. “Eu percebia, no meu comércio, sobrava muito resíduo orgânico. Comecei a estudar técnicas de compostagem e, como um passatempo, passei a adubar meu próprio terreno. No fim, caiu no gosto da vizinhança e eu fui ampliando, pegando materiais de vizinhos... Até que, há menos de dois anos, decidi arrendar um espaço só para isso, onde tenho uma compostadora, uma horta e outras plantações”, resgata.
Na propriedade localizada na Vila Colussi, onde executa o serviço de forma completamente artesanal e com a ajuda de um único funcionário, José mensura capacidade mensal para produção de 12 toneladas de adubo orgânico, uma tonelada de terra orgânica, além de húmus de minhoca. O processo de reciclagem intensiva, segundo ele, começa pela trituração dos resíduos em uma compostadora. Depois, o material é misturado a componentes secos para evitar o excesso de umidade e permitir a fermentação aeróbica. Esse material é mantido em uma com apenas uma porta e janela, onde deve ter sua temperatura estabilizada e a decompostagem começa a acontecer. O aposentado frequenta o espaço diariamente, mexendo no material para garantir que está na umidade e temperatura correta. “Nesse processo de fermentação aeróbica, em que a temperatura pode chegar a 70°C, a maioria dos patógenos e ervas daninhas são eliminados. Depois desse pré-cozimento, ele vai para maturação, onde é neutralizado. Quando pronto, o que era lixo vira um fertilizante natural. É terra do mato, rica em nutrientes. A natureza é capaz de fazer todo esse processo, por meio dos microrganismos”, explica. O processo pode girar em torno de um mês.
Laboratórios
Ao lado do espaço onde acontece a compostagem, José mantém plantações às quais ele chama de “laboratórios”. O espaço é adubado tanto pelo composto que ele próprio fabrica, quanto pelo depósito direto do lixo no solo. “Antes, esse terreno era de soja, ele não era fértil. Eu comecei a fazer alguns experimentos adubando e consegui recuperar a fertilidade. Meu primeiro laboratório foi com mandioca e, logo de cara, tive uma colheita muito boa, que me surpreendeu. Depois, fiz experimentos com repolho. Tudo irrigado apenas com a chuva”, conta. Hoje, a pequena plantação de José já conta com alface, milho, amendoim, batata, feijão, tomate, abóbora. Variedades orgânicas que, nas palavras dele, nasceram de forma crioula, em sua grande maioria. “Eu ia cobrindo a terra com os resíduos que eu coletava e começou a nascer. Eu vou experimentando e vendo acontecer. Hoje, por exemplo, posso ver que na parte da plantação de milho onde eu adubei mais, a planta está mais verde”, exemplifica.
Falta de apoio
Mais que um hobby, a reciclagem de lixo orgânico garante a José um complemento na sua renda mensal. Enquanto um saco de 20kg do composto orgânico que produz custa R$ 20, 20kg de húmus de minhoca custam R$ 30 e 30kg de terra orgânica custam R$ 20. “E é uma maneira de quebrar o ciclo de contaminação que acontece com o descarte de lixo orgânico. É um destino mais harmônico, que ajuda o meio-ambiente e pode gerar emprego. O triste, porém, é que o Poder Público não apoia nenhum projeto desse tipo. Eu, por exemplo, mantenho tudo por conta própria. Alugo o espaço, pago um funcionário, busco o material. Não há nem mesmo uma forma de registrar oficialmente o espaço como recicladora orgânica, não existe uma regulamentação específica. Respondo como produtor rural porque produzo meu próprio adubo”, comenta.
Além de não cobrar nada para coletar o material, a iniciativa de José acaba por beneficiar os restaurantes, inclusive, de forma financeira. Isto porque, embora não fomente projetos de reaproveitamento dos resíduos orgânicos, Passo Fundo segue a Política Nacional dos Resíduos Sólidos e determina que, por conta própria, comércios encontrem uma destinação correta para seus resíduos, como aterros e centros de compostagem, que seguem a legislação ambiental. O descumprimento é passivo de multa. “Pela lei, o correto seria que eles não depositassem o lixo nos containers, por exemplo. Esses espaços são para lixo domiciliar. O ideal é que enviem para centros como os mantidos pelo senhor José, que é um projeto piloto encantador. Caso depositem nos containers, devem estar bem acondicionados e em baixo volume, deixando lugar para os moradores depositarem também e evitando que fique mau cheiro. Se houver denúncia de que esses cuidados não estão sendo cumpridos, fiscalizamos, enviamos uma notificação e caso não seja cumprido o prazo de adequação para descarte correto, o estabelecimento recebe auto de infração”, explica a bióloga do Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAM), Kellen Tolotti Fraga.
A bióloga destaca ainda que, além de evitar penalizações, destinar o resíduo orgânico à reciclagem ajuda a diminuir consideravelmente o passivo ambiental nos aterros sanitários, gera renda aos recicladores e diminui as despesas municipais com a destinação e manutenção de resíduos, que gera aos cofres públicos gastos orçados em milhões de reais. “O trabalho que o senhor José desenvolve só traz benefícios valiosos para o Município”.