Em cima de uma moto adaptada para a neve, o passo-fundense Chicco Mattos começou a avançar pelos quilômetros gelados no arquipélago de Svalbard, no extremo norte do Ártico norueguês, para chegar a uma zona inóspita desse território cuja presença humana não era vista há 9 anos. Além do frio extremo que castigava o corpo e congelava parte do rosto, a travessia impôs uma geleira como obstáculo. Enquanto colocava um drone para sobrevoar a área, foi em um aceno de cabeça para a esquerda que o fotógrafo percebeu uma rachadura se abrindo em um imenso abismo azul, mas bastou apenas alguns passos para ele perceber que a fissura, na verdade, havia-o isolado em um pedestal de gelo a 30 metros de altura.
Na companhia de amigos, ele chegou do outro lado sano o bastante para avisar a polícia local sobre a missão bem-sucedida. Vivendo há quase 10 anos na zona mais setentrional do planeta, no ponto em que os meridianos convergem e no último reduto de civilização antes da superfície ser tomada por completo pelas geleiras, a contagem do tempo, para Chicco, tem outro significado. “Nessa época, não tem sol e quase não tem luz”, atestou durante uma conversa com a reportagem do jornal O Nacional, na manhã de quarta-feira (30). “O Natal é uma época aconchegante, que eu gosto muito. Eles não dão tanta importância para o Réveillon como brasileiro”, disse.
No último dia do ano, quando toda a região está mergulhada na obscuridade e só deve voltar a sentir os raios de sol em fevereiro devido à inclinação do eixo terrestre, são os fogos de artifício luminosos e sem som que darão as boas-vindas a 2021 para os 6 mil habitantes de uma ilha vizinha a Lofoten, onde o fotógrafo mora com a esposa sueca, Mia. “Nos mudamos para este povoado, com 350 moradores, no começo do ano. Vamos de carro até lá porque a queima dos foguetes é às 18h. À meia-noite, está todo mundo dormindo”, afirmou Chicco ao confessar a saudade sentida das celebrações brasileiras “com alegria e confraternização” e revelar que as únicas restrições são sobre o número de pessoas, reduzidas a cinco, nessa fenda de vida onde o coronavírus não golpeou com força e os limites do corpo humano são levados ao extremo todos os dias. “Até agora, nunca usei máscara. Quanto mais na natureza, mais liberdade você tem e fica alienado, no bom sentido”, relatou.
Estilo de vida
Circundada por paredões montanhosos, a vida do fotógrafo, no arquipélago banhado pelo Oceano Glacial Ártico, é documentada em dezenas de episódios em um canal de televisão a cabo e na internet. Formado em Relações Públicas, foi mesmo no extremo do planeta, onde só é possível chegar pelo ar, que Chicco reencontrou o amor pelo audiovisual e fez dele profissão. “Eu saí de Passo Fundo em 1998. Quando eu cheguei aqui, anos depois, comecei a trabalhar em um bar. Eu não tinha um centavo”, relembrou ao detalhar o itinerário até chegar ao Ártico após um período vivendo na Austrália, onde conheceu a esposa.
Com uma câmera na mão e uma busca pelo desprendimento material, as capturas começaram a rodar o mundo ao expor a fragilidade da vida selvagem e o espetáculo das auroras boreais, que rasgam o céu polar pelo choque dos ventos solares com o campo magnético da Terra. A sensibilidade das lentes do fotógrafo é transmitida em imagens para emissoras do mundo todo e para uma plataforma de conteúdo em streaming.
Caçar o próprio alimento
Uma vez por ano, Chicco e Mia se agasalham e caminham durante horas em busca de proteína de origem animal. Ao avistar alguma rena em idade permitida para o abate, o disparo vem da arma da esposa, que possui licença para caça de subsistência em território norueguês. É assim, conforme relatou Chicco, que a porção de carne chega à mesa da família. “A carne da caça não é cruel porque tu respeitas o animal. Ele perdeu a vida em segundos, sem sofrimento. É exclusivamente para alimentação e não para lucro”, ressaltou.
Abatido e limpo em cima da superfície gelada, apenas as vísceras e a cabeça do animal não são aproveitadas pelos humanos, como detalhou o fotógrafo. O cheiro e as marcas vermelhas de sangue, no entanto, atraem outros mamíferos carnívoros. “Um urso veio atrás da gente por causa da caça. Eu saí para pegar o cachorro e, quando olhei, ele estava correndo na nossa direção”, lembrou ele. Embora viva em uma ilha cujas temperaturas podem chegar a mais de 15 graus negativos, o tecido leve que vestia naquela manhã, quando a câmera se abriu para o contato em videochamada, revela o aconchego das casas projetadas para suportar o rigor polar. “São duas chapas de madeiras com uma de espuma no meio. As janelas também são duplas e a porta é vedada. Quando minha mãe veio me visitar, disse que passava mais frio em Passo Fundo que aqui”, mencionou Chicco, aos risos, enquanto segurava o chimarrão.