No dia 27 de março de 2020, o município de Passo Fundo confirmava o primeiro caso de Covid-19. A pandemia, que já havia dizimado milhares de vidas na Europa e outros continentes, se espalhou rapidamente entre os passo-fundenses. Para dar conta da demanda, os hospitais tiveram de adotar uma série de medidas urgentes. Além da preocupação com o agravamento do estado de saúde dos pacientes, o avanço dos casos trouxe uma série de complicações: lotação dos leitos clínicos e de UTIs disponíveis para o tratamento da doença, o risco iminente de contágio das equipes de saúde e, ainda, a falta de respiradores e de medicamentos.
Percorrendo o labirinto de corredores do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), considerado o maior da região norte do Estado, por quase meio século, o superintendente executivo da instituição, Ilário de David vem coordenando as ações de enfrentamento da pandemia, definida por ele como um dos momentos de maior exigência de todos os profissionais que lá atuam.
Ainda que não se possa mensurar apenas em números o tamanho desta missão, eles servem como referência para demonstrar a gravidade da doença. Ao longo dos 18 meses de pandemia em Passo Fundo, o HSVP atendeu 13.698 pessoas, sendo que deste total, 4.945 testaram positivo. Entre os pacientes, 3.677 são moradores de Passo Fundo, (90% deles já deram alta). Os outros 1.268 atendidos residem em 178 diferentes municípios.
Em entrevista ao ON, Ilário revela um pouco dos bastidores nestes 18 meses de trabalho. Ele lembra de momentos decisivos, como a noite em que o Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus do HSVP chegou a emitir uma nota mencionando a situação de catástrofe hospitalar, em razão da falta de medicamentos. Confira abaixo.
ON - Na sua trajetória como funcionário do hospital, o enfrentamento da pandemia vem sendo o momento mais difícil para o senhor?
Ilário de David - Nos meus quase 50 anos de atividade no Hospital enfrentei muitos desafios, como exemplo, em 2009, o enfrentamento da Gripe A (H1N1). No entanto, o momento que estamos passando de pandemia da Covid-19, se não é o mais difícil, com certeza, tem exigido muito dos diferentes profissionais que atuam diariamente no HSVP. Conduzir a gestão das ações para o enfrentamento de tal situação pede organização e manutenção, fluxos de atendimentos especializados, aquisição de insumos, adequação de infraestrutura, compra de EPIs e, o mais importante, o gerenciamento e cuidado com os profissionais da Instituição.
ON - O primeiro caso em Passo Fundo foi confirmado em 27 de março. Quatro meses depois já ultrapassava os três mil. Como foi para a direção do hospital ter de se adaptar para atender uma demanda tão grande de pacientes, em tão pouco tempo?
Ilário de David - Primeiramente, reconhecemos a necessidade de centralizar e direcionar as nossas principais decisões no sentido de priorizar a pandemia da Covid-19. Além disso, criamos o Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus. Na sequência, organizamos e implementamos as medidas de proteção e de segurança de nossos colaboradores, pacientes, familiares e acompanhantes.
Destaca-se que todas estas decisões são constantemente atualizadas seguindo normas técnicas.Também organizamos e implementamos a infraestrutura de atendimento segundo fluxos próprios para a Covid-19. O São Vicente de Paulo de Passo Fundo foi o primeiro hospital filantrópico privado credenciado como referência no atendimento à Covid-19 no Rio Grande do Sul. Adotamos, ainda, desde o início da pandemia, um boletim diário (https://hsvp.com.br/coronavirus/) no nosso site como medida de transparência. O espaço, além de trazer a publicação de todas as nossas ações, informa diariamente os atendimentos da Covid-19. Até agora, mais de 430 boletins diários já foram publicados.
ON - Havia a preocupação de contágio dos profissionais da saúde. Como foi trabalhar essas questões com as equipes?
Ilário de David - Sim, sempre esteve como uma das pautas principais o cuidado constante com todos os profissionais que atuam no São Vicente. Para isto, dentre outras medidas, destacam-se as implementadas pelo Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus, por meio de pacotes de medidas emitidos, comunicados divulgados, resoluções especiais expedidas, fluxos de atendimento construídos, documentos divulgados com orientações de utilização e descarte de EPIs, manutenção da creche para seus colaboradores (com implementação de medidas de proteção e segurança dos empregados da creche e das crianças assistidas) e ambulatórios clínico e psicológico para atendimento de todos os profissionais do Hospital.
ON - Mesmo tomando todos os cuidados, houve muito contágio de funcionários?
Ilário de David - Primeiramente, convém salientar que a pandemia de Covid-19 é considerada, segundo as orientações e definições do Ministério da Saúde, em especial, a contida na Portaria 454, de 20/03/2020, em todo o território nacional, como de transmissão comunitária do Covid-19. Desta forma, não podemos afirmar que todos os empregados que testaram positivo para a Covid-19 tiveram contato com esta doença dentro do Hospital. Tivemos ao longo do tempo empregados confirmados com a Covid-19, porém, manteve-se sempre em números abaixo do comportamento de contágio da população em geral.
ON - As equipes reduziram muito?
Ilário de David - Tivemos, em determinados momentos, absenteísmo acima do comportamento normal, comparando com anos anteriores.
ON - Pessoalmente, como o senhor lidou com essa preocupação?
Ilário de David - Esta foi uma preocupação constante, tendo em vista a necessidade de manter o efetivo de empregados necessário para atender a população de Passo Fundo e Região. Nestes momentos, o Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus realizava reuniões diárias de avaliação e tomada de decisão.
ON - O senhor permaneceu trabalhando presencialmente?
Ilário de David - Sim, exceto por um período lá no início da pandemia da Covid-19, em que permaneci em sistema de home office.
ON – Chegastes a se isolar dos familiares durante algum período?
Ilário de David - Não, mantive e mantenho os cuidados de proteção diária quanto a Covid-19, em especial, como distanciamento social e uso de máscara e álcool gel.
ON - A partir do aumento dos casos, o índice de óbitos disparou. Em agosto de 2020 tivemos o primeiro grande pico das mortes. De que maneira esse aumento das mortes refletia dentro do hospital?
Ilário de David - Na atividade profissional em hospitais, temos contatos com a vida e a morte. Lidar com a morte nunca é algo fácil. Neste período de pandemia da Covid-19, dado o momento singular, fica ainda mais difícil lidar com isto.
ON - A falta de leitos e respiradores também foi uma preocupação constante durante esse período?
Ilário de David - Sim, especialmente, no momento inicial da pandemia da Covid-19, em março de 2020. Lidamos com a necessidade de aquisição e falta de recursos financeiros e de disponibilidade de ventiladores pulmonares mecânicos microprocessados no mercado. Desenvolvemos um conjunto de ações estratégicas, que resultaram em doações de equipamentos e de recursos financeiros para a sua aquisição.
ON - O HSVP ficou com a capacidade máxima esgotada, trabalhando no limite. Mais do que aumentar o número de leitos, havia a falta de profissionais. Como a direção conseguiu resolver essa equação?
Ilário de David - Durante quase todo o período crítico, lidamos diariamente com a superlotação das áreas de atendimento da Covid-19 (UTIs e Postos de Internação Clínica) com o constante dimensionamento e alocação de recursos humanos, materiais, equipamentos, instalações e medicamentos. Diante disso, foram desenvolvidas estratégias para atender a demanda de pacientes e de cuidado com os profissionais do hospital.
ON - No dia 25 de março deste ano, o Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus do Hospital São Vicente de Paulo emitiu uma nota sinalizando uma catástrofe hospitalar, em razão da falta de medicamentos. Gostaria que o senhor contasse um pouco sobre os bastidores desse dia. A angústia de chegar a tal ponto e a decisão de elaborar a nota. Era uma situação que já vinha se desenhando?
Ilário de David - Em março de 2021, com base no sistema de monitoramento diário do estoque de medicamentos do Hospital, identificamos a iminente falta de medicamentos utilizados em pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), especialmente, no tratamento da COVID-19. Naquele momento difícil, procuramos manter a calma e a serenidade na busca da melhor solução, de forma prudente e ágil. O Comitê Especial de Gerenciamento de Crise para Enfrentamento ao Coronavírus do Hospital São Vicente de Paulo de Passo Fundo (RS), comprometido com a segurança, assistência e boa prática médica, se reuniu em conjunto com a Diretoria Executiva da Instituição e decidiu pela importância de alertar as autoridades competentes sobre o fato, na busca de apoio na solução.
ON - Foi a forma de garantir o medicamento para quem já estava internado?
Ilário de David - Foi importante diante do cenário de dificuldades daquele momento. Além disso, realizamos diversas ações na busca de doações e aquisição de medicamentos que começaram a gerar impacto positivo mas, este cenário melhorou à medida que, através de importações, conseguimos restabelecer gradativamente o nível do estoque desses insumos.
ON - Esse foi o pior momento para o senhor ao longo da pandemia ou da sua própria carreira?
Ilário de David - Sim, foi um momento extremamente desafiador para mim e toda a equipe do Hospital.
ON - Como era ir para casa pensando na possibilidade de os pacientes ficarem sem medicamento?
Ilário de David - Era angustiante, mas procurei manter a calma e serenidade, sabendo que ao meu lado existia uma equipe altamente qualificada e comprometida com o Hospital e com a Comunidade de Passo Fundo e Região.
ON - Como está a situação atual no hospital, com a redução dos casos?
Ilário de David - Neste momento, estamos retomando a normalidade de nossos atendimentos eletivos gradativamente, restabelecendo o fluxo normal de assistência à população de Passo Fundo e Região. Com os diferentes momentos de pandemia, a estrutura inicial passou por variações. Hoje, em setembro de 2021, graças a uma queda nos números de internações, contamos com 1 UTI de internação, totalizando 10 leitos, 1 posto de internação clínica, totalizando 28 leitos e 1 posto de pronto atendimento, totalizando 10 leitos.
ON - Qual a leitura que o senhor faz da pandemia para os próximos meses, e qual a grande lição deixada por ela?
Ilário de David - Ainda é preciso manter condutas de cuidado, pois a pandemia da Covid-19 ainda não acabou. Provavelmente, vamos permanecer convivendo com a doença por algum tempo, talvez alguns anos. Se vacinar é uma medida importante, assim como seguir os protocolos de distanciamento social, uso de máscara e álcool gel. Aproveito para solicitar, através deste importante espaço, o apoio da comunidade para juntos zelarmos pela saúde de todos.
ON - Alguma história ou momento vivido nesse período que tenha lhe marcado de maneira mais especial?
Ilário de David - Vários momentos vivenciados nesse período deixaram marcas. Um deles foi a escassez de medicamentos no mercado farmacêutico, especialmente, os utilizados em pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), em março deste ano. A situação será lembrada por mim, pela Instituição e por todos os administradores de hospitais do Brasil.