Quando a psicanalista Claudia Piccolotto Concolatto recebeu o diagnóstico de uma doença hepática rara, com a necessidade de transplante de fígado, no ano de 2018, a notícia veio acompanhada de uma série de mudanças na rotina dela e de toda a família. À época moradora do município de Marau, Claudia precisou se mudar para a capital gaúcha para tratar os problemas de saúde acarretados pela neoplasia que havia lhe acometido. Foram cerca de dois anos de tratamento até que a psicanalista estivesse em condições de saúde adequadas para entrar na lista de espera por um transplante de fígado – e quando o fez, como é o caso de muitos brasileiros, se deu conta de que a fila poderia demorar muito além do ideal. “Na posição que eu estava, iria demorar muito para transplantar e eu não podia mais esperar todo aquele tempo”, relembra. A história, que poderia ter se arrastado em um desfecho frustrante, encontrou uma solução feliz quando o filho de Claudia, Franco Concolatto, então com 19 anos de idade, tomou a decisão de doar 60% do próprio fígado para a mãe.
O procedimento, chamado de transplante hepático intervivos entre adultos, foi o primeiro do gênero já realizado pelo Instituto do Fígado, Pâncreas e Vias Biliares da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Em junho deste ano, mãe e filho entraram juntos nas cirurgias, realizadas de maneira simultânea e com mais de 12 horas de duração. “Como o fígado se regenera, os médicos consideraram que o transplante com doador vivo era a melhor possibilidade para mim naquela situação. Mas antes mesmo de eu saber que precisaria fazer o procedimento intervivos, lá em 2018, meu filho já tinha dito que poderia ser meu doador, mesmo quando ele ainda nem podia por ser menor de idade. Ele me disse: ‘Mãe, eu não vou doar só por ti. Eu vou doar por todos nós. Vou doar porque te quero aqui com a gente’. Foi uma decisão dele. Isso foi fundamental para que o nosso transplante acontecesse de maneira tranquila”, ela relata.
Significado especial
É por isso que, para Claudia, o dia 27 de setembro tem um significado duplamente especial. A data é não apenas o Dia Nacional da Doação de Órgãos — uma causa pela qual ela vem contribuindo para ampliar a conscientização —, mas também o aniversário de Franco, estudante de Medicina, que completou 20 anos de idade na última segunda-feira. Hoje, pouco mais de três meses depois da operação, Claudia celebra a data com um gostinho especial e conta que a recuperação de ambos não poderia ter sido melhor.
Apesar da complexidade da operação, mãe e filho receberam alta hospitalar em cerca de uma semana e, mesmo com a necessidade de manter alguns cuidados, a psicanalista diz que desde o transplante tem se sentido saudável como há anos não sentia “Eu fiquei três anos passando por procedimentos, cirurgias, internações hospitalares. Minha vida se tornou um pouco limitada. Desde que fizemos o transplante, isso tudo mudou. Já retomei meu trabalho, estou tendo autonomia para fazer tudo que eu fazia antes e tenho um corpo que agora responde às exigências da vida. O transplante é uma coisa transformadora, ele te dá uma nova vida. Ele te dá direito à perspectiva de futuro. É um presente para quem recebe e para todas as pessoas que querem aquele sujeito na vida delas”.
Negativa familiar
Embora seja imprescindível para salvar vidas, a doação de órgãos é um ato que ainda enfrenta inúmeras resistências, seja por desinformação, por estigma ou até mesmo pela falta de comunicação entre os familiares. Isto porque, pela legislação brasileira, registrar o desejo de doar órgãos enquanto ainda em vida não é suficiente para que a doação seja autorizada. A palavra final para doação de órgãos de uma falecida deve partir de familiares da vítima. E é aí que a busca por órgãos encontra seu maior obstáculo.
Conforme explica o coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO4-RS) do HSVP, neurocirurgião Cassiano Crusius, a negativa familiar é a maior causa para a não doação de órgãos após a morte cerebral de um paciente. De acordo com dados da Central Estadual de Transplantes, em 2020, das 379 causas de não efetivação de doação de órgãos em notificações de morte encefálica no Rio Grande do Sul, 138 foram por negativa familiar. “O momento da morte cerebral é muito dolorido para a família. Há muita resistência quanto ao diagnóstico e muitos mitos. Para muitas pessoas, não está claro que, uma vez diagnosticada a morte cerebral, é um quadro irreversível. E, no meio disso tudo, esses familiares ainda precisam pensar em doar ou não. Por isso é tão importante que, ainda em vida, a pessoa deixe explícito seu desejo”.
Ainda de acordo com o coordenador da OPOA, atualmente, 84 pessoas estão na fila de espera pela doação de órgãos na região de Passo Fundo. A maior parte delas (66 pessoas) aguarda por um transplante renal, seguido por transplante hepático (12) e de córnea (6). No entanto, até o momento, apenas nove doações de múltiplos órgãos foram efetivadas na região neste ano. Outros 45 casos em que havia possibilidade de doação, por motivos diversos, não foram realizados. “Ainda está baixo perto do que era antes da pandemia. Em 2019, foram 20 doações. No início do ano passado, quando começou a pandemia do coronavírus e ainda não tínhamos muitas informações sobre o comportamento do vírus, nós zeramos as doações. No segundo semestre, conseguimos retomar, mas fechamos o ano com apenas 11 doações. Agora, com o estudo e a melhor do conhecimento sobre o coronavírus, estamos retomando aos poucos e esperamos fechar o ano com um número melhor, mas ainda precisamos muito dessa conscientização das pessoas sobre a doação”, destaca.